A vez da bagatela

Supremo enfrenta explosão de número de casos de baixo potencial ofensivo

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14 de agosto de 2022, 9h23

Em abril, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal absolveu um reincidente condenado por furtar quatro desodorantes e dois aparelhos de barbear, no valor total de R$ 114,36. Em maio, a ministra Rosa Weber extinguiu a ação penal de um homem que havia furtado dois xampus, avaliados em R$ 20. Em julho, o ministro Luiz Edson Fachin concedeu de ofício Habeas Corpus a um homem que tentou furtar fios de cobre, que foram posteriormente devolvidos à concessionária de energia elétrica. E, também em julho, o ministro Ricardo Lewandowski absolveu um homem que foi preso por estar em local impróprio para pesca, com material para a prática, sem ter, no entanto, retirado do mar um peixe sequer.

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STF aplicou o princípio da insignificância
em casos de furto de fraldas, cabos e fios citadelle

Casos como esses não são exceções no STF. Julgamentos relacionados a furtos de pacotes de fraldas, fios de cobre em estado de sucata, itens de higiene, alimentos e bens de primeira necessidade viraram rotina para a corte suprema do país. E todos os casos tiveram o mesmo fundamento para absolvição ou trancamento da ação penal: o princípio da insignificância.

Esse princípio, também conhecido como da bagatela, não está previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de criação da doutrina e da jurisprudência, fontes responsáveis por aperfeiçoar a aplicação das leis. Ele tem como objetivo não penalizar furtos pequenos, de baixo valor, normalmente de bens de primeira necessidade. Mais do que absolver a pessoa, a aplicação do princípio da insignificância remove a tipicidade material do ato delituoso, extinguindo, assim, o próprio delito.

O STF estabeleceu quatro requisitos que devem ser observados, cumulativamente, para aplicação do princípio da insignificância. São eles: mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; grau reduzido de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

 

Sendo assim, a corte considera que delitos cometidos com violência ou grave ameaça não podem ser objeto de aplicação do princípio da insignificância, ainda que a lesão ao bem jurídico tenha sido inexpressiva.

Acervo robusto
Embora o STF tenha deixado claros os pressupostos exigidos para aplicação do princípio da insignificância, o STF continua recebendo ações que deveriam ter sido trancadas nas instâncias inferiores, o que só faz crescer seu já robusto acervo.

De acordo com dados da plataforma Corte Aberta, do STF, o número de processos que tramitam na corte e foram catalogados como Habeas Corpus, recurso em Habeas Corpus e princípio da insignificância é de 1.120, quantia que só aumenta, mas não por falta de julgamentos: em 2020, os ministros julgaram 3.795 processos; em 2021, 4.012; e, nos primeiros sete meses de 2022, já foram julgados 2.273 processos do gênero, mais da metade do total de 2021.

Para o criminalista Fernando Gardinali, sócio do escritório Kehdi & Vieira Advogados, "recentemente, o MPF divulgou levantamento sobre quantidade de Habeas Corpus em que se requereu a aplicação do princípio da insignificância e chama a atenção, aqui, que o primeiro lugar é de furtos simples. De todo modo, conectando a isso um caso emblemático, no fim do ano passado, de uma mulher que ficou presa por ter furtado Coca-Cola, macarrão instantâneo e suco em pó, me parece ser possível perceber, sim, um aumento de casos, possivelmente causado pela crise econômica do país".

O levantamento citado por Gardinali é referente ao ano de 2020. De acordo com o trabalho, a maioria dos casos enviados às cortes superiores refere-se a crimes de furtos simples e qualificados. Em seguida, aparecem delitos como contrabando ou descaminho.

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O advogado destaca ainda que, em razão de o Brasil ter retornado ao mapa da fome, com 60 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, "em um ato de desespero, muitas pessoas acabam cometendo pequenos delitos para garantir itens de pequena necessidade, que não deveriam sequer ser penalizados, mas amparados pelo serviço social".

A (não) jurisprudência
A discrepância dos julgados nos estados e a chegada dos casos às cortes superiores têm diversos motivos, segundo o vice-presidente jurídico-legislativo da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, Flávio Wandeck.

"Atribuo o fato de haver muitos processos envolvendo a matéria nos tribunais superiores a dois fatores: a) descumprimento reiterado da jurisprudência dos tribunais superiores pelo Tribunais de Justiça (há julgados do TJ-MG que alegam que o princípio sequer existe);  b) dificuldade dos próprios tribunais superiores de estabelecer uma jurisprudência mais estável sobre a aplicação do princípio da insignificância aos reincidentes. Enquanto alguns ministros são mais rígidos em aplicar o princípio aos reincidentes (Kassio Nunes, André Mendonça, Barroso, Luiz Fux e Alexandre de Moraes), outros são mais flexíveis (Rosa Weber, Gilmar Mendes, Dias Toffoli). Essa discrepância de entendimentos gera reflexos nas instâncias inferiores".

Wandeck, que também é defensor público de Minas Gerais nos tribunais superiores, lembra também que o investimento nas Defensorias Públicas, principalmente nas comarcas no interior, promoveu o acesso à Justiça a quem, até então, era desassistido.

"Sem dúvida há uma maior expansão e capilaridade das Defensorias Públicas. Só no último concurso da DP-MG tivemos um acréscimo de mais de cem defensores na carreira. Falo de Minas, mas quase todas as Defensorias expandiram seus quadros. Isso se reflete num maior atendimento da população e na identificação de ilegalidades que acabam chegando, pela via dos recursos ou dos Habeas Corpus, aos tribunais superiores".

Custo da tramitação
Dados também do portal Corte Aberta mostram que esses processos, quando chegam do STF, levam cerca de cem dias para serem julgados, em média. Ocorre que esse tempo é contado apenas a partir de quando chegam ao Supremo. Antes disso, os processos já passaram pelas instâncias inferiores todas. E, enquanto isso, o réu pode passar todo esse tempo aguardando o julgamento privado de liberdade.

Outro problema dessas ações é o custo para o Estado. Um estudo elaborado pela Defensoria Pública da União mostra que é desproporcional o valor gasto para arcar com o processamento e a execução dos casos de furto no Brasil. Estimativas conservadoras indicam que cada ação custe ao Estado R$ 6,4 mil.

O defensor público federal e secretário-geral de Articulação Institucional (SGAI) da DPU, Gabriel Travassos, ressalta que defender a descriminalização ou a não privação de liberdade de pessoas autoras de pequenos furtos não significa defender sua impunidade.

"Salientamos que o Direito brasileiro possui outros mecanismos eficazes e menos custosos para a reprovação, prevenção e, sobretudo, reparação do dano causado pelo ilícito".

Efeito ricochete
O encarceramento de pessoas que cometem crimes de baixo potencial ofensivo pode criar uma cadeia de problemas: sobrecarrega o já sobrecarregado sistema carcerário, gera custos para o Estado e ainda pode fornecer mão de obra para o crime organizado.

Wilson Dias/Agência Brasil
Segundo especialistas, presídios podem ser a porta de entrada para o crime organizado 
Wilson Dias/Agência Brasil

"É importante que os Tribunais de Justiça, dos estados, percebam os impactos sociais do princípio da insignificância. ele é importante para o desencarceramento, ele é importante para evitar injustiça, ele é importante para reduzir a aplicação do Direito Penal a casos pouco importantes. É importante lembrar que o aumento do encarceramento, o aumento de pessoas presas, só faz crescer o crime organizado e crescer direta e indiretamente  a insegurança", destacou o advogado e professor de Direito Penal na USP Pierpaolo Cruz Bottini.

Esse é o mesmo entendimento de Flávio Wandeck.  "Esse tipo de caso promove encarceramento, gasto de recursos públicos desnecessários com o sistema prisional e o sistema de Justiça, e sobrecarga de processos os tribunais superiores, que têm de se debruçar sobre casos que não deveriam chegar até eles", disse o defensor. "Creio que a solução passe por resolver (ou ao menos aprimorar) os dois primeiros fatores: uma estabilidade maior na jurisprudência dos tribunais superiores e o estabelecimento de meios de obrigar os Tribunais de Justiça a seguirem os entendimentos firmados. Porém, não acredito em solução para ambos a curto prazo".

Bottini lembra que tentou aplicar o princípio no início de sua carreira, mas sem sucesso. "Tribunais dos estados têm mais dificuldades para reconhecer o princípio da insignificância. Eu lembro do primeiro caso em que atuei como advogado, era um Habeas Corpus em que usei o princípio da insignificância no Tribunal de Justiça de São Paulo, e o desembargador à época disse que aquele princípio era insignificante, e não seria sequer analisado como argumento. Os tribunais superiores, e o Supremo Tribunal Federal, em especial, têm uma importância fundamental para solidificar não apenas o princípio, mas os critérios e para definir os casos em que ele será aplicado".

Situações semelhantes às narradas por Bottini são enfrentadas por diversos advogados e defensores públicos pelo Brasil afora. E foi por isso que a Defensoria Pública da União propôs ao STF a edição de uma súmula vinculante para que os tribunais do país parem de negar de forma arbitrária a aplicação do princípio da insignificância.

A inicial da DPU destaca o problema social produzido pelo encarceramento de pessoas que cometeram pequenos delitos. "Ao contrário do que poderia indicar um pensamento açodado e distante da realidade prisional do país, o encarceramento de pessoas que praticaram pequenos furtos, ou a pesca famélica de alguns peixes em período de defeso, por exemplo, deve ser evitado para que tais pessoas não se vejam nas mãos de criminosos e facções, tão presentes no sistema penitenciário brasileiro", diz o documento.

Segundo a DPU, é necessário que o STF se pronuncie e edite uma súmula vinculante sobre o tema. Assim, os tribunais inferiores não poderão desobedecer o entendimento da corte. A DPU propõe como tese da súmula vinculante o seguinte texto:

"O princípio da insignificância decorre da Constituição da República, sendo aplicável ao sistema penal brasileiro, quando preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada".

O pedido da DPU está em tramitação no STF.

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