Opinião

Análise de julgados: rol do artigo 11 da Lei de Improbidade agora é taxativo?

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24 de fevereiro de 2022, 19h11

No último dia 21, a 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reformou sentença de primeiro grau que condenava prefeito municipal por atos de improbidade administrativa que teriam violado princípios administrativos, conforme o artigo 11, caput e inciso I, da Lei 8.429/92, bem como ocasionado prejuízo ao erário por culpa grave, nos termos do artigo 10, inciso V, da mesma lei, absolvendo o requerido com base nas modificações implementadas pela Lei 14.230/2021 na Lei 8.429/92 [1].

A ação, proposta pelo Ministério Público, questionava suposta utilização indevida da "máquina administrativa para angariar votos", com violação do artigo 73, §10, da Lei nº 9.504/97. Em sentença, o juiz de primeiro grau acolheu as teses inicias e julgou procedente o feito, fundamentando que, de fato, o réu teria praticado atos ímprobos "na forma dos artigos 11, caput e inciso I, e 10, inciso V, da Lei Federal nº 8.429/92".

Em sede de recurso de apelação, no entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que, pelo advento da Lei 14.230/2021, o rol do artigo 11 da Lei 8.429/92 passou a ser taxativo, de modo que somente as hipóteses dos incisos configuram improbidade na modalidade lesão de princípios, sendo que essa modificação, por ser mais benéfica ao réu, ostentaria aplicação retroativa, nos termos do artigo 5º, XL, da Constituição Federal:

"Com a nova redação do caput do artigo 11, passou-se a exigir expressamente que os atos de improbidade administrativa atentatórios aos princípios da Administração Pública sejam caracterizados por umas das condutas descritas em seus incisos, alterando a redação original que previa tais condutas com caráter exemplificativo…
Portanto, com a alteração do caput do artigo 11 e a revogação de seu inciso I, não há mais se falar em ato de improbidade administrativa pela conduta anteriormente subsumida a tais normas, aplicando-se retroativamente a norma mais benéfica ao Requerido".

No mesmo sentido, foram adotadas as alterações da Lei 14.230/2021 para afastar a condenação pela infração ao artigo 10 da Lei 8.429/92, eis que penalidades haviam sido impostas pela presença de culpa grave nas condutas do réu em prejuízo do erário  e como já abordamos em outros artigos publicados aqui na ConJur [2] [3], a modalidade culposa não mais configura improbidade administrativa, sendo necessária a presença de um dolo específico do agente.

Para além de um precedente importantíssimo, é bem de ver que não é isolado. Outros dois julgamentos recentes do tribunal paulista, mas de câmaras diferentes, andaram na mesma esteira de fundamentação.

No último dia 18, por exemplo, a 8ª Câmara de Direito Público da corte paulista [4] julgou recurso de apelação em ação de improbidade que questionava possível irregularidade e desvio de finalidade praticados por prefeito municipal na nomeação de agentes para cargos comissionados. Para o Ministério Público, esses atos estariam adequados no artigo 11 da Lei 8.429/92.

Nos termos do acórdão, porém, "de acordo com a nova redação do caput do artigo, o rol das aludidas hipóteses passou a ser taxativo; e nenhuma delas condiz com o caso", de modo que até mesmo o interesse de agir do Ministério Público restou afetado pela reforma da lei, uma vez que "os fatos imputados aos réus não são aptos a resultar em condenação deles por improbidade administrativa falecendo utilidade ao processo em que se postulava tão somente a aplicação das correspondentes penas, inviabilizada pela mudança legislativa".

Em arremate, no último dia 15 a 3ª Câmara de Direito Público do tribunal paulista já havia enfrentado situação semelhante, assinalando igual entendimento: de que o artigo 11 da Lei de Improbidade não mais ostenta rol exemplificativo de condutas, configurando violação de princípios, para a Lei 8.429/92, apenas os casos elencados em seus incisos [5].

No precedente, a 3ª Câmara de Direito Público defendeu que o "princípio da retroatividade da lei sancionadora mais benéfica é aplicado para todo o direito sancionador, seja ele administrativo ou penal"  afastando argumentos de opositores da retroatividade da Lei 14.230/2021 no sentido de que o instituto estaria limitado ao Direito Penal.

A decisão pontuou que a reforma do artigo 11 da LIA denotaria, no caso concreto, "ausência de tipicidade legal entre a conduta praticada… e a nova redação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei Fed. nº 8.429, de 02/06/1.992), com as alterações promovidas pela Lei Fed. nº 14.230, de 25/10/2.021, diante da perda do caráter exemplificativo do caput".

Ou seja: o julgado assentou que nem mesmo o caput do artigo 11 justifica, hoje, a imputação de improbidade por afronta de princípios, o que, até a reforma legislativa, era demasiadamente comum.

Mas não é só: o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, assim como o TJ-SP, pode anotar que "a partir da vigência da Lei 14.230/21, o ato de improbidade previsto no art igo11 deve se enquadrar em uma das condutas previstas nos seus incisos, não sendo mais possível a condenação por meio de tipos abertos de violação aos princípios da administração" [6].

Não há como deixar de reverenciar as conclusões desses precedentes, em especial os do Tribunal de Justiça de São Paulo, todos emanados por câmaras diferentes  indício contundente do firmamento de uma jurisprudência pela corte.

De fato, as alterações da Lei 8429/92 pela Lei 14.230/21 implementaram espécie de abolitio criminis no sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa, que desqualifica os atos não previstos no rol atual do artigo 11 da LIA como condutas ímprobas.

É de prevalecer, nesses casos, o princípio da legalidade, sob o viés da tipicidade (artigos 5º, II e XXXIX, e 37, caput), segundo o qual "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

Importando esse preceito do Direito Penal, podemos afirmar que não se fala na existência de atos de improbidade por lesão de princípios fora do rol fechado do artigo 11 da Lei 8.429/92.

Nas palavras de Greco [7]: "A lei é a única fonte do Direito Penal quando se quer proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção". Assim, somente a lei, em sentido estrito, tem a autoridade para definir crimes  no caso, atos de improbidade , e determinar suas respectivas penalidades (nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege: não há crime sem lei e, consequentemente, não há pena sem lei).

Outro fator que milita em prol desses precedentes e minora entendimento contrário é a própria mens legislatoris que deu à luz a Lei 14.230/2021: ao longo da edição e votação da norma, diversos legisladores em entrevistas defenderam esse rol taxativo, aliás, não apenas do artigo 11, mas também dos artigos 9º e 10.

Veja, nesse sentido, o próprio site do Senado, que no quadro expositivo de reformas da Lei 8.429/92 assim dispõe: "Rol taxativo — As condutas consideradas como improbidade são apenas aquelas listadas no texto da lei. Antes, a lista era considerada exemplificativa" (Fonte: Agência Senado [8]).

Todas essas nuances são fortes indicativos de um início muito promissor para a formação de uma jurisprudência no sentido de taxatividade das condutas ímprobas por violação de princípios administrativos (rol fechado do artigo 11 da LIA), ante a reforma procedida pela Lei 14.230/21, entendimento com o qual se alinha este subscritor.

 


[1] TJ-SP; Apelação Cível 1000388-26.2018.8.26.0204; relator (a): Ana Liarte; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Foro de General Salgado  Vara Única; Data do Julgamento: 21/02/2022; Data de Registro: 21/02/2022.

[4] TJ-SP;  Apelação / Remessa Necessária 1000751-52.2017.8.26.0655; relator (a): Bandeira Lins; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Várzea Paulista  1ª Vara; Data do Julgamento: 18/02/2022; Data de Registro: 18/02/2022.

[5] TJ-SP; Apelação / Remessa Necessária 1000924-82.2015.8.26.0417; relator Kleber Leyser de Aquino; 3ª Câmara de Direito Público; Julgamento: 15/02/2022; Registro: 15/02/2022.

[6] TRF-5 — Ap: 00012068620154058103, relator: DESEMBARGADOR FEDERAL THIAGO BATISTA DE ATAIDE, Data de Julgamento: 23/11/2021, 2ª TURMA.

[7] GRECO, Rogério, Curso de Direito Penal: parte geral, volume I, 19. ed.  Niterói, RJ: Impetus, 2017.

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