Opinião

Extinção da forma culposa de improbidade administrativa é opção legislativa acertada

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5 de fevereiro de 2022, 14h13

Atento à imposição do artigo 37, §4º, da Constituição Federal, o Poder Legislativo editou, no ano de 1992, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), que dispõe sobre aspectos de Direito material e processual e, sobretudo, regra em três momentos sobre os tipos punitivos: 1) o artigo 9º, que discorre sobre os atos de improbidade por enriquecimento ilícito; 2) o artigo 10, que dispõe sobre os atos de improbidade que geram dano ao erário; e 3) o artigo 11, que fala sobre os atos de improbidade que violam os princípios que regem a Administração Pública.

Dessas três espécies punitivas, apenas o artigo 10 permitia a configuração de improbidade por conduta culposa — aquela em que o agente conduziu suas ações com imperícia, negligência ou imprudência, mas sem o propósito de gerar algum resultado danoso ao patrimônio público.

Desde sua edição, a norma foi alvo de algumas modificações que, no entanto, foram pontuais, singelas do ponto de vista estrutural, de modo que a essência da Lei de Improbidade Administrativa vinha se mantendo, até o advento da Lei 14.230/2021, que alterou radicalmente a Lei 8.429/92.

Tivemos a oportunidade de abordar algumas dessas alterações em outros dois artigos, publicados aqui na ConJur, com temas como a jurisprudência em formação na matéria de prescrição intercorrente em improbidade administrativa [1] e os principais temas e jurisprudências do STJ afetados pela Lei 14.230/2021 [2]  dois pontos que têm gerado bastante tensão entre o Ministério Público e os advogados de defesa.

Mas outro ponto bastante controvertido é a extinção da modalidade culposa de improbidade administrativa, antigamente possível por conduta negligente, imprudente ou imperita do agente que trouxesse prejuízo ao erário (artigo 10 da Lei 8.429/92).

Com o advento da Lei 14.230/2021, para fins de imputação de atos de improbidade administrativa, passou-se a exigir, tanto para a elaboração da petição inicial (artigo 17, §6º, inciso II, da LIA) quanto para a prolação de sentença condenatória (artigo 1º, §§1º, 2º e 3º, e artigo 17-C, inciso I, da LIA), a demonstração de um dolo específico em atingir finalidade ilícita. A modalidade culposa foi totalmente extirpada de nosso ordenamento jurídico. Agora, apenas o dolo específico configura improbidade.

Daí, o argumento dos críticos é de que essa extinção da forma culposa favorece a impunidade e enfraquece o combate a corrupção. Porém, a crítica é desprovida de fundamento e, a bem a verdade, vem desacompanhada da evolução da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria.

Isso porque a jurisprudência da corte superior já vinha desde 1999 moldada no sentido de que os atos de improbidade reclamam a existência dos elementos má-fé e deslealdade às instituições, ocultando-se dos interesses públicos, assentando que "a lei alcança o administrador desonesto, não o inábil, despreparado, incompetente ou desastrado" [3].

Sob essa perspectiva, a crítica acaba sem chão, visto que é absolutamente impossível relacionar um ato culposo com um ato imbuído de má-fé. Quem age de má-fé, assim o faz de propósito. É intelectualmente impossível vincular um ato culposo (sem intento) com uma conduta desonesta ou desleal (que pressupõe uma vontade). O agente corrupto está ciente da reprovabilidade de seus atos, e mesmo assim os pratica de forma voluntária. O agente inábil, por sua vez, não tem essa consciência e vontade, o que o induz a uma ação desprovida de má-fé ou desonestidade.

Noutras palavras: ao extirpar a modalidade culposa de improbidade, o legislador não favoreceu a impunidade, eis que puníveis, de fato, são apenas aqueles atos munidos de desonestidade, não verificáveis em condutas de sujeitos inábeis, despreparados, incompetentes ou desastrados.

Em favor dos argumentos desse subscritor, no bojo da ADI 6.678/DF, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) contra os incisos II e III do artigo 12 da Lei nº 8.429/1992 (redação original), o ministro Gilmar Mendes proferiu medida cautelar para estabelecer que a sanção de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade culposos que causem dano ao erário, identificando "vício de inconstitucionalidade substancial decorrente do excesso de Poder Legislativo" com "violação ao princípio da proporcionalidade…".

No mesmo sentido, cabe reverenciar o posicionamento da corte paulista em recentíssimo julgado de relatoria da desembargadora Silvia Meirelles [4], ao firmar que "a Lei de Improbidade não serve para punir o mau administrador, mas, sim, o administrador ímprobo", sendo que "o entendimento supracitado… encontra-se em consonância com a recente alteração operada na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230/2021, que, inclusive, extirpou a forma culposa do cometimento de tais condutas, em razão da clara incompatibilidade da culpa com a exigência de má-fé para a caracterização de ato ímprobo".

Noutro aspecto, é bem de ver que embora as condutas culposas não mais configurem improbidade administrativa, ainda são plenamente sancionáveis em outras esferas, a exemplo da administrativa, através de processo administrativo disciplinar, e na esfera cível para fins de ressarcimento ao erário.

Inclusive, há expressa permissão legal no artigo 17, §16, da LIA, no sentido de convolar a ação de improbidade em ação civil pública de ressarcimento, quando identificada uma conduta culposa e não dolosa, de modo a resguardar o erário e não permitir que uma ação, ainda que sem dolo, mantenha um prejuízo ao patrimônio público. Desse modo, a violação ao erário não passará em branco, havendo ainda inúmeros outros caminhos possíveis para sua recomposição.

Lado outro, a Lei 14.230/21 trouxe também a imposição de criação de mecanismos que visem a extirpar a possibilidade de haver condutas culposas (erro grosseiro) no âmbito da Administração Pública, através do estimulo a qualificação e capacitação dos agentes públicos e políticos que atuem com prevenção ou repressão de atos de improbidade administrativa (artigo 23-A, da LIA).

De todo esse panorama, emerge acertada a opção legislativa que extinguiu a modalidade culposa de improbidade do artigo 10 da Lei 8.429/92, e plenamente compatível com a evolução da jurisprudência do STJ sobre a matéria, a demonstrar a fragilidade das críticas em sentido oposto, principalmente ante a existência de outros mecanismos que militam em prol da segurança do erário contra atos destituídos de má-fé.

 


[3] REsp 213.994-0/MG, 1ª Turma, relator ministro Garcia Vieira, D.O.U. 27.09.1999.

[4] TJSP; Apelação Cível 0001531-22.2015.8.26.0059; relator (a): Silvia Meirelles; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro de Bananal — Vara Única; Data do Julgamento: 25/11/2021; Data de Registro: 25/11/2021.

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