Opinião

Lesões no corpo de Armando inocentam Álvaro do crime do castelinho da rua Apa

Autor

  • Marcus Rogério Oliveira dos Santos

    é auditor fiscal tributário do município de São Paulo professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos na área fiscal e mestre em Direito Tributário pela FGV Direito-SP e em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

15 de março de 2023, 17h19

No artigo publicado em 2 de abril [1], discorri sobre a inexistência de provas que pudessem incriminar Álvaro César dos Reis como autor do crime do castelinho da rua Apa. No segundo texto, publicado em 15 de agosto [2], tratei das divergências entre a narrativa do crime em sua reconstituição, elaborada pelo Laboratório de Polícia Technica, relativamente às lesões produzidas por arma de fogo no corpo de dona Maria Cândida, assim como expus a versão de que havia dois atiradores com armas de fogo distintas no castelinho, na noite de 12 de maio de 1937, pois, apesar de não haver sido feita a necrópsia no corpo da anciã, falha inescusável no trabalho de investigação e perícia criminal, lembramos que houve um projétil que fragmentou-se ao colidir com o piso do hall após transpassar o corpo de dona Candinha, o qual apresentou características do calibre .32, seja pela sua massa, seja pelo diâmetro do orifício de saída no corpo da anciã. Nesse mesmo texto, mencionamos que "a análise dos ferimentos em Armando auxilia a refutar a hipótese de que somente os familiares estiveram presentes no Castelinho na fatídica noite". Neste texto fundamentarei essa afirmação.

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Castelinho da rua Apa, na região central de SP
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Para percorrermos a trajetória que justifique o título deste artigo, é necessário descrever os dois ferimentos em Armando provocados por arma de fogo, conforme descrição no laudo cadavérico [3]: o primeiro disparo atingiu a "região precordial, um centimetro para baixo do mamelão deste lado, com cerca de nove millimetros de diametro de bordos contundidos, deprimidos, e chamuscados, circundados por zonas de esfumaçamento, com aureola equimotica, representando orificio de entrada de projectil de arma de fogo (bala)". 

Quando Armando recebeu esse disparo, estava agachado, pois o projétil que o atingiu na região precordial foi encontrado na prateleira mais baixa da estante de livros e o orifício de entrada do projétil em sua camisa não coincide com o orifício de entrada desse mesmo projétil em seu corpo.

O segundo disparo acertou sua "região epigastrica à esquerda da linha mediana de forma circular, com cerca de nove millimetros de diametro, de bordos contundidos e deprimidos, e chamuscados, circundados ambos por zonas de esfumaçamento, com aureola equimotica, representando orificios de entrada de projectis de arma de fogo (bala)".

Verifica-se, conforme a descrição das lesões, que nos dois orifícios de entrada dos projéteis havia zona de chamuscamento e de esfumaçamento, o que indica disparo a curta distância. A sequência dos disparos é a que foi apresentada, porque o projétil que atingiu a região epigástrica transpassou seu corpo e ficou encravado no piso de madeira do escritório, sendo que Armando somente poderia receber esse disparo após estar caído no chão.

Lembramos também da controvérsia instaurada entre o Gabinete Médico Legal e o Laboratório de Polícia Technica, sendo que o primeiro afirmava que Armando cometeu suicídio, fato que consta em sua certidão de óbito, enquanto o laboratório insistiu em sua tese equivocada de que o suicida e autor do crime era Álvaro. Lembramos que a correlação entre o suicídio e a distância dos disparos continha um pressuposto equivocado, que era a consideração apenas de que somente os três familiares estavam no castelinho na noite do crime, fato refutado pela análise das trajetórias dos projéteis, no artigo publicado em 15 de agosto de 2022.

Alguns elementos chamam a atenção: segundo o jornal O Correio de São Paulo [4], a mão direita de Armando cheirava fortemente à pólvora. Isso implica que Armando pode ter disparado uma arma de fogo. Então seria Armando o autor da tragédia?

Santos [5] observou os ferimentos produzidos em Armando nas fotos em jornais da época e cotejando-os, verificou na região precordial uma extensa mancha de sangue, enquanto o disparo na região epigástrica não aparece sangue algum. É sabido que o primeiro disparo foi fatal, atingindo seu coração, conforme mencionamos.

Fotografias dos jornais Correio Paulistano [6] e A Gazeta [7] mostram o corpo de Armando ainda no escritório, porém com uma rotação em relação à sua posição original e verificam-se várias manchas de sangue na parte posterior da camisa dele, próximas a sua região lombar no contato com o piso desse aposento, demonstrando que o projétil atingiu vaso sanguíneo com volume relevante.

Há uma pergunta a ser feita: por que o segundo disparo sofrido por Armando não tem sinal de sangue em seu orifício de entrada? Porque Armando recebeu esse disparo quando não tinha mais batimento cardíaco.

A ausência de pressão no vaso sanguíneo impediu a saída de sangue no orifício de entrada do projétil, pois o fluido estaria sujeito apenas à ação da gravidade, escoando pelo orifício de saída do projétil correspondente. Isso explica a ausência de sangue nesse ferimento. Mas por que atingi-lo após estar morto? Lembre-se de que a mão direita de Armando cheirava fortemente à pólvora. Conectando esse elemento com a ausência de sangue relativa ao orifício de entrada do segundo projétil que o atingiu, concluí que o autor do crime pegou a mão de Armando já sem vida e fez o disparo contra o corpo dele, a fim de que, pelo menos, um dos familiares apresentasse sinal de pólvora na mão.

Isso implica que nenhum dos familiares disparou arma alguma. Destarte, Armando não pode ser o autor da tragédia na noite de 12 de maio de 1937. Esse ato só é compatível com o contexto de que nem ele, nem Álvaro haviam disparado arma alguma. Essa foi a forma que o autor dos disparos encontrou para incriminá-lo, mas a autoridade policial embarcou em outra versão que demonstramos não ser verossímil, sequer, antes mesmo de considerarmos os vestígios presentes no corpo de Armando. Nem Álvaro poderia ter cometido tal ato, porque a posição de seu corpo fora adulterada após receber os dois disparos na região precordial.

Reunindo os elementos dos três textos [8], afirmamos que nenhum dos três familiares disparou arma alguma. A pistola Mauser C 96 utilizada pertencia a Álvaro. Somente alguém muito próximo a ele para ter acesso à arma. O disparo na região epigástrica, após Armando não apresentar mais sinais vitais, resultou da intenção de incriminá-lo como autor da tragédia, deixando sinais de pólvora, os quais foram mencionados na reportagem, mas omitidos do laudo e no exame de corpo de delito.

Santos [9] afirma que o crime foi uma ação rápida, pois não foram encontrados sinais de luta, nem as vítimas esboçaram qualquer movimento de defesa, pois não há ferimentos causados por projéteis em suas mãos ou antebraços. O mesmo autor afirma que a posição do corpo de Álvaro fora modificada, após ele receber os dois disparos fatais, ou seja, a forma como estava o corpo dele quando a autoridade policial ingressou no castelinho, a qual fora registrada no laudo e fotografada, já havia sido adulterada por aquele que cometeu o crime.

O rastro do sangue que saiu dos dois orifícios de entrada dos projéteis que o atingiram na região precordial demonstram que logo após receber os disparos, Álvaro não estava deitado, mas encostado provavelmente no batente da prova do escritório e permaneceu assim por um tempo, conforme aponta o sangue escorrido dos orifícios de entrada na região precordial.

A posição das suas mãos também indica que o corpo sofrera alterações pelo executor do crime. Santos [10] também verificou que a posição de seu corpo na clássica foto do paralelismo dos corpos dos dois irmãos é incompatível com a trajetória dos projéteis que o atingiram, os quais produziram os vestígios de tiro na parede e nas molduras do quadro do hall.

A partir deste ponto, não há mais dúvida de que Álvaro jamais poderia ter sido o autor do crime do castelinho. Armando também não disparou arma alguma. Tampouco dona Maria Cândida. As provas reclamam as presenças de outras pessoas na cena do crime.

Vimos que todos os elementos apresentados convergem para a direção de que Álvaro não foi autor da tragédia. Restou flagrante as omissões do trabalho de investigação, de modo que os poucos elementos registrados apontam para a sua inocência, quando considerados integrados em um contexto, a exemplo do que foi escrito nos três textos.

Santos [11] afirma que o autor da tragédia tinha um conhecimento sobre cena de crime, a ponto de causar adulterações, como retirar duas cápsulas do escritório e inseri-las no hall; o disparo na região epigástrica de Armando para que ficassem sinais de pólvora em sua mão; limpar as digitais na arma Mauser C 96, e; utilizar a arma de Álvaro, tendo propalado com antecedência de que ele estaria em um suposto estado neurastênico, em razão de um empreendimento que (jamais) causaria a ruína patrimonial de sua família, demonstrando com este ato a premeditação do crime e anúncio da tragédia que ocorreu.

O risco patrimonial do empreendimento denominado Palácio do Gelo fora desmentido na época do crime, pelo jornal Diário da Noite, de 13 de maio de 1937, pelo próprio diretor dessa sociedade de responsabilidade limitada. Quem seria a pessoa que iniciou a propalar o boato sobre a (imaginária) neurastenia de Álvaro? Como tal boato se espalhou em seu círculo de amigos e parentes sem que ninguém se opusesse? Tal pessoa, para dar credibilidade a esse boato, deveria ter grande proximidade com Álvaro.

Não havendo risco patrimonial, como está comprovado que esse risco inexistiu, não há como Álvaro estar neurastênico. O boato pode indicar a presença de um mandante do crime, o qual pode ter forjado um cenário para que Álvaro fosse indicado como o culpado da tragédia, tanto é assim que a sua arma foi utilizada no crime.

A existência de dois atiradores que dispararam em sentidos quase opostos nos faz cogitar sobre a existência de um mandante. Mas aquele que realizou os disparos com a arma de Álvaro quis incriminar Armando, ao pegar sua mão e disparar contra o corpo dele, na região epigástrica, após não ter mais sinais vitais. Por qual razão?

A complexidade do contexto probatório nos remete a um possível desvio na execução do crime, pois a intenção inicial seria incriminar Álvaro e durante a execução optou-se por incriminar Armando. Uma possível justificativa seria a existência de erros não previstos e que ocorreram na execução da conduta criminosa.

Há dois fatos que, separadamente considerados, ou até mesmo juntos, poderiam justificar o desvio da execução do iter criminis inicialmente planejado: o primeiro, é o fato de Álvaro ter sido atingido com dois disparos na região precordial, fato que torna o suicídio bastante questionável, conforme foi objeto de pergunta em entrevista ao delegado que presidiu a investigação, no jornal Folha da Manhã, na edição de 14 de maio de 1937.

A pistola Mauser C 96 é semiautomática e o autor do disparo poderia não estar familiarizado com ela de modo que proferiu dois disparos na região precordial de Álvaro, ao invés de um; o segundo fato, foi o atirador com revólver ter disparado contra dona Maria Cândida, pois assim haveria dois tipos de munição presentes na cena do crime e apenas uma arma fora encontrada, fato que refutaria a tentativa de imputar a autoria do crime a Álvaro. Pode haver outra razão de índole subjetiva e que é, até o presente momento, desconhecida por nós. Esses dois fatos impedem que a tragédia seja imputada a Álvaro, remetendo necessariamente a presença de alguém, além dos familiares encontrados mortos.

Porém, não bastou o desvio na execução do crime. O trabalho de investigação repleto de falhas ao se desconectar dos elementos de prova por meio de induções lógicas que partiram de pressupostos equivocados, assim como a presença de lacunas inescusáveis no laudo que relatou o crime, como a não realização da necrópsia no corpo de dona Candinha para apurar o tipo de projétil que atingiu a anciã, assim como outras relatadas por Santos [12], favoreceram a impunidade dos executores do crime.

Como houve a morte do agente apontado pela autoridade policial como autor do crime, a punibilidade restaria extinta. Destarte, não haveria qualquer intervenção do Ministério Público, órgão que dificilmente apresentaria a denúncia, em razão de um trabalho de investigação repleto de falhas e tampouco haveria o controle judicial, uma vez que não haveria denúncia. Tais fatos contribuíram para que Álvaro fosse apontado como a autor da tragédia somente pela autoridade policial e pela imprensa da época. Restou demonstrado, nos três textos, que é chegada a hora de declarar a inocência de Álvaro e colocá-lo no rol das vítimas do crime do castelinho da rua Apa, como medida da mais cristalina justiça.


[1] Álvaro César dos Reis não é o autor do crime do Castelinho da Rua Apa. CONJUR. Publicado em 2 de abril de 2022.

[2] Divergência de narrativa na reconstituição: o crime do Castelinho da Rua Apa. CONJUR. Publicado em 15 de agosto de 2022.

[3] Documento expedido pelo Gabinete Médico Legal.

[4] O Correio de São Paulo, de 13 de maio de 1937.

[5] Santos. Marcus Rogério Oliveira dos. Uma nova versão do crime do Castelinho da Rua Apa. Julho.2022

[6] Jornal de 13 de maio de 1937.

[7] Edição de 13 de maio de 1937.

[8] Os textos são aqueles indicados nas notas de rodapé 1 e 2 e o presente texto.

[9] Santos. Marcus Rogério Oliveira dos. Op cit.

[10] Santos. Marcus Rogério Oliveira dos. Op cit.

[11] Santos. Marcus Rogério Oliveira dos. Op cit.

[12] Santos. Marcus Rogério Oliveira dos. Op cit.

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  • é auditor fiscal tributário do município de São Paulo, professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos na área fiscal e mestre em Direito Tributário pela FGV Direito-SP e em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

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