Direito civil atual

O Supremo Tribunal Federal e o julgamento do caso Aída Curi — parte 3

Autor

  • Elimar Szaniawski

    é advogado professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná professor do Programa de Pós-graduação em Direito Pós-doutorado Doutorado e Mestrado da UFPR e doutor em Direito pela mesma instituição.

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24 de maio de 2021, 16h15

Nesta oportunidade concluiremos a coluna dedicada à análise do julgamento do caso Aída Curi pelo Supremo Tribunal Federal. A primeira parte foi publicada, no espaço "Direito Civil Atual", em 26/4/2011. A segunda parte foi publicada em 10/5/2021.

ConJur
4) A falta da adequação da ação intentada pelos autores
Consoante vimos supra, os irmãos de Aída Curi intentaram no Juizado de 1º grau, do Estado do Rio de Janeiro, ação de indenização por danos morais contra Globo Comunicações e Participações S/A, após a exibição do programa "Linha Direta" que tratou do assassinato de Aída.

Aída Curi, não ré, ou acusada criminalmente, no processo que deu origem ao recurso extraordinário. Ela não praticou nenhum fato desabonador, muito menos criminoso, muito pelo contrário, Aída Curi foi vítima de seus algozes e a eles pertenceria, após o cumprimento das penas que lhe foram impostas, o direito ao esquecimento. A legitimidade para invocar o direito ao esquecimento pertence aos réus Ronaldo Guilherme de Souza Castro que cumpriu sua pena, a Cássio Murilo Ferreira da Silva, por ser menor de idade na época, sendo considerado inimputável, foi encaminhado ao Serviço de Assistência ao Menor e Antônio Joãos de Souza que foi condenado por um primeiro júri e, posteriormente, absolvido por um segundo júri, dele não se tendo mais notícias, desde a prolação da sentença.

Com o cumprimento da sentença pelo primeiro condenado, com a aplicação das medidas socioeducativas ao segundo condenado, por ter sido menor inimputável e ao terceiro, por ter sido absolvido, surge para eles o direito de se ressocializarem e de restaurar sua imagem-atributo perante a comunidade. Assim, caberia a eles o exercício do direito ao esquecimento e não à Aída, nem aos seus familiares, por não ter sido ela a autora de fatos desabonadores ou criminosos que maculassem a família e a sociedade.

Portanto, é incabível a aplicação do direito ao esquecimento a favor da memória de Aída Curi, por absoluta falta de adequação da ação de esquecimento e, consequente ilegitimidade, dos seus irmãos de Aída, nos termos do artigo 17, do Código de Processo Civil.

Aída Curi morreu. Conforme dicção do artigo 6º, do Código Civil, a existência da pessoa natural termina com a morte. Morta a pessoa, cessaram os direitos inerentes à ela, mormente à sua personalidade. Cessam, igualmente, as diversas manifestações da personalidade, sendo, porém, admissível a livre utilização da imagem da pessoa, de sua voz, ou de algum dos aspectos de sua vida privada, desde que a utilização não se constitua em ofensa à memória da pessoa falecida [1]. Poderá, porém, ocorrer a existência de efeitos reflexos que venham a atingir os familiares e pessoas ligadas ao morto, ofendendo seus sentimentos quando, então, apesar da extinção do direito geral de personalidade pela morte da pessoa, a proteção em relação à sua honra, à sua boa fama, à sua boa imagem-atributo, deverá persistir contra os atos ou a divulgações desnecessária de fatos que atentem contra aspectos privados e pessoais do falecido.

Embora o direito à liberdade de imprensa e de expressão e de formação da opinião pública, seja uma das principais liberdades públicas tuteladas pela Constituição, a liberdade de expressão não se constitui em um direito absoluto ou ilimitado.

Os princípios éticos que informam a liberdade de imprensa impõe limites à publicação ou à divulgação de fotos ou imagens de pessoas falecidas, vítimas de acidentes, assassinatos cruéis ou mortes brutais, que impliquem em afronta à honra ou à imagem-atributo e, principalmente, à boa memória do defunto, se constituindo, neste caso, a matéria jornalística em um atentado contra o direito à boa memória da pessoa falecida.

O emprego de imagens chocantes pela mídia, sem qualquer respeito à ética jornalística, que despreza o sentimento dos familiares e o respeito pela boa memória da pessoa falecida, se constitui em um atentado ao seu direito geral de personalidade.

Dessa maneira, os irmãos de Aída Curi seriam titulares do direito à preservação da boa memória de Aída Curi, nos termos do parágrafo único, do artigo 20, do Código Civil, combinado com o inciso III, do artigo 1º, da Constituição, e da Súmula 221, do STJ, mas não do direito ao esquecimento que, na presente espécie, é incabível. No presente caso, caberia o ajuizamento de uma ação inibitória, cumulada com busca-e-apreensão do material de gravação do programa, mais perdas e danos morais, visando a preservação da boa memória e da imagem atributo de Aída Curi.

O Supremo Tribunal Federal não acolheu a equivocada tese de violação ao direito ao esquecimento, requerido pelos irmãos de Aída Curi, contra a Rede Globo, uma vez ser incabível a invocação dessa categoria de direito de personalidade a favor de Aída Curi, merecendo, por essas razões, o recurso interposto o desprovimento.

5) A extrusão do direito de personalidade ao esquecimento pelo Supremo Tribunal Federal
Por razões de limitações impostas ao presente trabalho, não iremos desenvolver discussões em relação ao mérito da pretensão indenizatória dos autores contra Globo Comunicações e Participações S/A embora, segundo nossa percepção, desapareceu o interesse do público a essa informação devido ao transcurso de 50 anos da ocorrência do crime e pelo desconhecimento dos fatos ocorridos pelas novas gerações. Se acrescente que o fato delituoso não possui interesse histórico e nem era a vítima uma pessoa pública. Faltou no julgamento uma autêntica ponderação de interesses e valores a serem postos em causa.

O interesse do presente trabalho consiste em analisar a extrusão do direito de personalidade ao esquecimento do direito brasileiro, pelo Supremo Tribunal Federal, através do julgamento do Recurso Extraordinário de nº 1010606, que considerou "incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais".

Cabe recordar que o direito ao esquecimento é reconhecido como direito de personalidade no direito comparado, há mais de 50 anos, a exemplo, do direito alemão, (recht auf Vergessenwerden), do direito italiano, (il diritto all’oblio) e do direito norte americano, (the right to oblivion), sendo o direito ao esquecimento sancionado como um direito europeu, pela Corte Europeia dos Direitos do Homem em 13/5/2014.

Cumpre assinalar que o direito ao esquecimento merece temperança, devendo ser analisado e ponderado caso a caso.

O Superior Tribunal de Justiça admitiu o direito ao esquecimento, embora não tenha mencionado essa expressão, no caso denominado "Chacina da Candelária" [2]. A decisão é objeto de recurso extraordinário com agravo — ARE nº 789246 —, no Supremo Tribunal Federal, não tendo havido julgamento até o presente momento.

No caso Ainda Curi, entendemos haver um equívoco no julgamento do Supremo Tribunal Federal ao declarar expressamente ser o direito ao esquecimento incompatível com a Constituição, remetendo os interessados a se valer de outras medidas judiciais, em caso de excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação.

O exercício do direito ao esquecimento prescinde da prática de excessos ou abusos pela mídia. O direito ao esquecimento tem por finalidade permitir àquele que cometeu um crime ou um fato social desabonador e que tenha cumprido sua pena, possa ver esquecido, pela sociedade, o fato delituoso praticado no passado, permitindo e facilitando sua ressocialização e o início de uma nova vida, como um indivíduo útil à sociedade.

O direito ao esquecimento consiste em um direito geral de personalidade vinculado no direito à honra, à imagem-atributo e à privacidade, que visam preservar a dignidade da pessoa humana.

A pessoa que quer recomeçar sua vida tem o direito de não ter revolvidos os fatos que macularam sua vida pretérita, o permanente revolver pela mídia sensacionalista, de fatos sem maior interesse público, são prejudiciais, tanto para a pessoa que passa a ser vítima dessa perseguição, quanto para a própria sociedade.

A Constituição, embora não contemple um dispositivo específico, destinado a tutelar a personalidade humana, reconhece e tutela o direito geral de personalidade por meio do princípio da dignidade da pessoa, que consiste em uma cláusula geral de concreção da proteção e do livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Essa afirmação decorre do fato de que sendo o princípio da dignidade um princípio fundamental diretor, segundo o qual deve ser lido e interpretado todo o ordenamento jurídico brasileiro, se constitui a categoria dignidade da pessoa na cláusula geral de proteção da personalidade, uma vez ser a pessoa natural o primeiro e o principal destinatário da ordem jurídica [3]. Logo, o direito ao esquecimento se encontra amparado no inciso III, do artigo 1º, da Constituição.

O direito ao esquecimento consiste em um direito geral de personalidade, sendo que todos os direitos da personalidade são direitos fundamentais. O § 2º, do inciso LXXVIII, do artigo 5º, da Constituição, determina que os direitos e garantias expressos na Constituição "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", estando, por tanto, o direito ao esquecimento implicitamente previsto pela Constituição.

Verifica-se, pois, que a decisão do Recurso Extraordinário de nº 1010606, que afirma ser o direito ao esquecimento incompatível com a Constituição brasileira, se constitui um equívoco.

6) Conclusão
Pelo exposto, se constata alguns pontos a serem destacados.

O primeiro diz respeito ao equivoco da ação interposta pelos autores e seu direcionamento para a invocação do direito ao esquecimento quando, para o presente caso, essa ação se mostra incabível. Poderiam, os autores, ter-se valido da ação inibitória, com pedido liminar de busca e apreensão, cumulada com indenização por danos morais, destinada a preservar a dignidade e a boa memória de Aída Curi.

O segundo ponto a ser destacado é a falta do interesse em agir dos autores pela ausência de adequação da ação ao esquecimento interposta. Estão ausentes os pressupostos de admissibilidade.

O terceiro ponto se refere à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de suprimir o direito geral de personalidade ao esquecimento, do sistema jurídico brasileiro, incorrendo em um equívoco, diante da dicção do inciso III, do artigo 1º, combinado com o § 2º, do inciso LXXVIII, do artigo 5º, da Constituição brasileira, que informam, a nível constitucional, o direito ao esquecimento.

Isso posto, nos resta agora a responder nossa indagação inicial: a decisão proferida pelo STF, no Recurso Extraordinário, sob nº 1010606, conhecido como Caso Aída Curi, se constitui em um equívoco ou em um retrocesso no direito brasileiro?

A resposta só pode ser no sentido de que a decisão proferida pelo STF, no citado recurso extraordinário, a qual determina que "é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais", se constitui em um equívoco, diante das ponderações acima apresentadas, ao mesmo tempo em que, também, se constitui em um grave retrocesso ao desenvolvimento das liberdades e garantias fundamentais e dos direitos de personalidade no Brasil.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).

Referências bibliográficas
Constituição da República Federativa do Brasil, In https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/566968/CF88_EC105_livro.pdf.

De Cupis, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Lisboa, Livraria e Editora Morais, 1961.

Pontes de Miranda, F. C. Tratado de Direito Privado, t. II, VII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1971.

Supremo Tribunal Federal Recurso Extraordinário nº 1010606, In http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5091603&numeroProcesso=1010606&classeProcesso=RE&numeroTema=786. Acesso em 17.02.2021.

VIª Jornada de Direito Civil, promovida pelo CEJF, realizada em 2013, em Brasilia.

Tribunal Federal Constitucional. BVerfGE 35, 202, Lebach. In http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv035202.html. Acessados em 21.01.2016.

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. nº 1.334.097 – RJ (2012/0144910-7). Rel.: Min. Luis Felipe Salomão. Publ. DJe em 10.09.2013. In www.conjur.com.br. Acessado em 23.10.2018.

Szaniawski, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela. S. Paulo RT, 2005.


[1] De Cupis, Adriano. Os Direitos da Personalidade, p. 142. No mesmo sentido, Pontes de Miranda, F. C. Tratado de Direito Privado, t. VII/64 e 135.

[2] STJ. RecEsp. nº 1.334.097 – RJ (2012/0144910-7). Rel.: Min. Luís Felipe Salomão. Publ. DJe em 10.09.2013. In www.conjur.com.br. Acessado em 23.10.2018.

[3] Szaniawski, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela, p. 137.

Autores

  • é advogado, professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, professor do Programa de Pós-graduação em Direito, Pós-doutorado, Doutorado e Mestrado da UFPR e doutor em Direito pela mesma instituição.

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