Opinião

Tribunal do Júri, feminicídio e o quesito genérico absolutório

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8 de março de 2024, 16h18

Práticas tradicionais, habituais ou modernas que violam os direitos das mulheres devem ser proibidas e eliminadas. Promovida em Beijing, 1995, a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, em sua Plataforma de Ação, item 224, estabeleceu que a violência contra as mulheres constitui ao mesmo tempo uma violação aos seus direitos humanos e liberdades fundamentais e um óbice e impedimento a que elas desfrutem desses direitos.

No recém-julgado RHC 229.558 AGR/PR, fruto de um agravo interposto pelo Ministério Público em face da decisão monocrática do ministro Nunes Marques, que concedeu a ordem para restabelecer a decisão absolutória proferida pelo Tribunal do Júri (quesito genérico), restou decidido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que, ainda que fundada em eventual clemência, a decisão do júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso teria competência para perdoar.

Para uma melhor compreensão do julgado no v. acórdão de 46 páginas, houve a sintetização em dez tópicos:

  1. Embora os critérios extralegais possam ser considerados na absolvição pelo júri, isso não implica que a decisão seja imutável apenas por causa do quesito genérico, que permite aos jurados votar sem a obrigação de fundamentar suas escolhas;
  2. Embora os jurados do Tribunal do Júri não sejam obrigados a explicar suas decisões, é importante que haja uma análise da racionalidade mínima por trás delas, a fim de garantir uma justiça adequada e evitar arbitrariedades;
  3. A introdução de novas formas de absolvição através do quesito genérico não significa que essas formas sejam indefinidas ou ilimitadas. Pelo contrário, elas devem ser identificáveis e estar dentro dos limites estabelecidos pela legislação e jurisprudência;
  4. Mesmo que uma absolvição seja baseada em clemência por parte do júri, isso não pode resultar no perdão de crimes que estão além da autoridade do Congresso Nacional para perdoar, especialmente em casos de crimes hediondos;
  5. Na ausência de clareza sobre a causa da absolvição ou de evidências que a justifiquem, o tribunal superior tem o poder de ordenar um novo julgamento para garantir que a justiça seja feita e que os direitos das partes sejam respeitados;
  6. Especificamente no caso do feminicídio, onde a clemência não pode ser permitida, essa hipótese não deve ser considerada como justificativa para negar o recurso de apelação, uma vez que a gravidade desse tipo de crime requer uma análise cuidadosa e imparcial;
  7. É responsabilidade do Tribunal de Apelação analisar as possíveis razões de absolvição, mesmo que extralegais, quando solicitado pelo Ministério Público, a fim de garantir a integridade do processo judicial e a aplicação adequada da lei.
  8. A participação democrática do júri é fundamental para o sistema de justiça, mas essa participação não deve resultar em decisões arbitrárias, especialmente em questões sensíveis como gênero e raça, onde há o risco de preconceito e discriminação.
  9. A recomendação do CNJ ressalta a importância de os tribunais seguirem a jurisprudência da Corte IDH em casos de violações de direitos humanos, garantindo assim uma aplicação mais consistente e eficaz dos direitos fundamentais.
  10. Além disso, as leis brasileiras devem ser alinhadas aos tratados internacionais de direitos humanos, conforme estabelecido na Constituição Federal, para garantir a proteção dos direitos humanos e a promoção da justiça em todos os níveis do sistema jurídico.

No caso concreto, embora tenha reconhecido a materialidade e autoria dos crimes, o Conselho de Sentença entendeu por absolver o réu no quesito genérico (artigo 483, inciso III, do CPP); aliás, diga-se que o réu confessou a prática delitiva e que a defesa se utilizou da tese de que o delito fora cometido por uma “paixão doentia”.

Tema nº 1.087 e a legítima defesa da honra

Não podemos esquecer que há pendência de análise do Tema nº 1.087 da Sistemática da Repercussão Geral, no qual se trata sobre “a possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em  julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos”.

Spacca

Restou-se consignado que a controvérsia dos autos mais se assemelha à questão discutida no julgamento da ADPF nº 779 – DJe 6/10/23, no qual o Pleno da Corte, por unanimidade, firmou o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional e que não fere a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri o provimento de apelação que anule a absolvição fundada em quesito genérico, quando, de algum modo, possa implicar a repristinação da odiosa tese da legítima defesa da honra.

Se a soberania dos veredictos fosse utilizada, no presente caso, como escudo à submissão a novo julgamento, haveria o risco de implicar, de algum modo, a repristinação da tese da legítima defesa da honra, ainda que sob o pretexto de “paixão doentia”.

Recomendação do CNJ

Durante a 61ª Sessão Extraordinária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Plenário deliberou recomendar aos tribunais que sigam a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e deem prioridade ao julgamento de processos decorrentes das condenações impostas ao Estado brasileiro por essa corte.

Essa recomendação também abrange a necessidade de os magistrados considerarem tratados e convenções de direitos humanos em suas decisões, bem como garantir que a legislação brasileira esteja alinhada com esses instrumentos internacionais.

Um dos pontos destacados foi a importância de os tribunais de apelação controlarem a racionalidade das decisões proferidas pelos júris, identificando as causas de absolvição. Caso necessário, os tribunais podem determinar a realização de novo julgamento.

Isso se torna particularmente relevante em casos de crimes hediondos, como o feminicídio, que não podem ser passíveis de clemência.

A recomendação do CNJ reforça princípios já estabelecidos tanto na legislação brasileira quanto nos tratados internacionais de direitos humanos. A Constituição Federal prevê que direitos e garantias presentes em tratados internacionais assinados pelo Brasil possam complementar os direitos expressos na própria Constituição.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, por exemplo, tem valor supra legal  no Brasil desde 1992, quando foi incorporada à legislação brasileira por meio do Decreto nº 678/1992. Essa convenção protege a população contra a discriminação por diversos motivos, incluindo raça, cor, sexo, religião e origem nacional ou social.

A Corte IDH, que existe desde 1979, é responsável por interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos e julgar casos envolvendo conflitos entre cidadãos e Estados-parte. Ela emite sentenças, monitora a execução de suas decisões e pode determinar medidas cautelares aos Estados. Sua jurisdição abrange 20 países, com uma população total de 560 milhões de habitantes.

Esses princípios são aplicáveis em situações concretas, como o caso de um réu acusado de homicídio qualificado por feminicídio.

Se a decisão do júri for contrária às provas apresentadas nos autos e não houver fundamentos válidos para a absolvição, os tribunais de apelação podem determinar novo julgamento. Esse é o caso mesmo diante de crimes graves, como o feminicídio, que não devem ser sujeitos a clemência ou anistia.

Conclusão

O aumento dos casos de feminicídio no Brasil é uma questão preocupante, conforme expresso pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Essa entidade alerta para a necessidade de implementar medidas para prevenir esses crimes, garantir investigações e julgamentos justos, e oferecer proteção e reparação integral às vítimas.

Dados recentes revelam um aumento nos casos de feminicídio em 2022 em comparação com o ano anterior. Essa tendência contraria a redução geral no número de homicídios, destacando a urgência de ações eficazes para enfrentar esse problema persistente.

De todo exposto, a absolvição pelo Tribunal do Júri em razão do quesito genérico não é mais soberana e pode ser impugnada — reformada por novo julgamento — com a justificativa de que os jurados decidiram de forma contrária às provas dos autos.

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