Opinião

A questão de gênero em favor da trabalhadora rural: do discurso à prática

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

11 de janeiro de 2024, 11h26

O segurado especial, como já se viu, é vítima de inúmeros pré-juízos inautênticos, isto é, falácias que se manifestam através do senso comum, conforme lições do jurista Lenio Streck (juristas, afastem-se do senso comum!). No caso das mulheres, a situação é ainda mais preocupante. É sobre isso que pretendo escrever hoje — e adianto desde já.

As trabalhadoras rurais são tratadas como uma extensão do marido, e dele dependem, até mesmo, quando o trabalho é exercido prioritariamente pela mulher. A mesma dogmática que reproduz essa (triste) realidade garante que não é segurado especial o membro de grupo familiar que possui outra fonte de rendimento.

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Em tese, portanto, a qualidade de segurado especial de quem postula o benefício não pode ser descaracterizada pela circunstância de (um) outro membro do grupo familiar exercer atividade de outra natureza ou obter fonte diversa de recursos. Não obstante, não raras as vezes, o trabalho da mulher é desconsiderado sob o argumento de que “dispensável” para o sustento da família, em razão de o marido ter outra fonte de rendimentos.

Não pretendo comentar a verdadeira “radicalização” da ideia de trabalho “indispensável à própria substância e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar”. Já fiz isso em outra oportunidade [1]. A sua aplicação por subsunção cria uma singularidade excludente, mormente para mulheres e crianças. Concordamos com Eros Grau, quando aduz que “algumas questões reclamam o manejo de noções, e não somente de conceitos”. É assim no futebol, digo, o juiz que estudar somente as regras do jogo não vai entender aquilo que faz parte do próprio jogo, logo, o contato físico será sempre um problema!

Para uma análise mais aprofundada do que está acontecendo no próprio judiciário, precisamos refletir sobre o pensamento que ainda influencia o nosso comportamento e, consequentemente, as decisões judiciais.  Sem a consciência crítica da ação dessas ideias sobre o nosso comportamento, somos todas vítimas indefesas de uma concepção que nos domina sem que possamos sequer esboçar reação, como advogados ou cidadãos.

Já se falou muito em machismo que, conforme Jane Lucia Wilhelm Berwanger, “contamina as estruturas sociais e causa diversas implicações no trabalho e na condição feminina”. A jurista é quem melhor tratou do assunto: “[…] o tempo em que somente o homem tinha direitos foi dando lugar a uma época em que há reconhecimento da atividade da mulher trabalhadora rural, que já trabalhava tanto quanto o homem, mas não era considerada segurada perante a Previdência Social. Essa transformação era impensada há algum tempo, tendo em vista que o trabalho da mulher, especialmente no campo, era considerado secundário; hoje ele está plenamente incorporado ao ordenamento jurídico. Ademais, a Constituição Federal e a lei conferem direitos iguais aos trabalhadores de ambos os sexos” [2].

Tal concepção foi largamente internalizada no discurso, como se verifica na decisão da desembargadora federal Gisele Lemke: “Quando se trata de mulheres, a prova se torna ainda mais difícil, pois se sabe que quando existiam documentos, estes eram lançados em nome do chefe da família onde, há certo tempo, era o único membro familiar a possuir direito à aposentadoria, de modo que deixar de atribuir-lhe a qualidade de trabalhadora rural em face da inexistência de documento em nome próprio, qualificando-a como tal, redunda em grande injustiça com as mulheres ativas neste tipo de trabalho árduo em que trabalham tanto quanto ou muitas vezes ainda mais que os homens” [3].

Agora, não é necessário olhar muito longe para perceber que a questão ainda não foi suficientemente aprendida. A divisão secular do trabalho, que relega às mulheres o trabalho invisibilizado e desvalorizado na casa e no cuidados dos filhos, ainda se faz muito presente. Jessé Souza explica que não refletimos acerca dessas hierarquias, “assim como não refletimos sobre o ato de respirar” [4].

De algum modo, essa hierarquia perversa está na cabeça de alguns julgadores — e não por mal. Tanto é assim que só se discute a (in)dispensabilidade do trabalho rural da mulher, ou seja, quando o homem possui outra fonte de rendimento isso é transformado num obstáculo para o reconhecimento do direito da mulher. Assim, tomando como exemplo a situação de uma mulher que se casou com um funcionário público e continuou trabalhando na agricultura, com os pais. Não se trata de oportunismo, mas tal situação muito bem traduz a diferença no tratamento entre homens e mulheres.

O pedido de reconhecimento, como tempo de serviço rural, foi julgado improcedente, em razão de o marido possuir outra fonte de renda. A partir disso, muitas questões podem — devem — ser colocadas: o trabalho da mulher é menos importante do que o do homem? A mulher que casa com algum segurado urbano não terá direito a postular o reconhecimento do labor rural? E se fosse o contrário…

A 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região vem analisando a situação das seguradas especiais à luz do Protocolo de Gênero do CNJ, que assim disciplina:

A homens e mulheres são atribuídas diferentes características, que têm significados e cargas valorativas distintas. O pouco valor que se atribui àquilo que associamos culturalmente ao ‘feminino’ (esfera privada, passividade, trabalho de cuidado ou desvalorizado, emoção em detrimento da razão) em comparação com o ‘masculino’ (esfera pública, atitude, agressividade, trabalho remunerado, racionalidade e neutralidade) é fruto da relação de poder entre os gêneros e tende a perpetuá-las. Isso significa dizer que, no mundo em que vivemos, desigualdades são fruto não do tratamento diferenciado entre indivíduos e grupos, mas, sim, da existência de hierarquias estruturais. (…) Em famílias rurais que operam sob o regime de economia familiar, por exemplo, por mais que o trabalho agrícola de mulheres seja fundamental para a subsistência familiar, ele não tem valor de mercado por estar intimamente conectado ao trabalho doméstico e ser difícil separar essas duas modalidades. Torna-se difícil, portanto, para essas mulheres provar o exercício da atividade rural, o que gera impactos negativos no seu reconhecimento jurídico e, consequentemente, na concessão de benefícios previdenciários [5].

Na prática, contudo, tal orientação não tem alcançado as mulheres referidas no exemplo supramencionado.

Para José Antonio Savaris: “O que importa – e é apenas o que importa – é se estamos diante de um trabalhador que efetivamente exerce a atividade de produção rural com desiderato de comercialização, ainda que nem sempre esta seja possível”. Na sequência, o juiz e professor admite a possibilidade de algum membro da família possuir outra fonte de renda: “Se, de outra forma, o produto do labor rural significar parte de renda familiar, o que se dá na hipótese de um dos membros da família possuir outra fonte de rendimento, tanto melhor para a família e para o trabalhador rural que, só por esta razão, não será penalizado com a descaracterização de sua condição de segurado especial” [6].

Note-se que é possível ao segurado especial exercer sua atividade rural em regime individual, no interior de uma família que não retira apenas da terra o seu sustento, sem precisar comprovar a indispensabilidade do trabalho, logo, não há razão para se traçar qualquer distinção entre regime individual e de economia familiar, importando apenas a prova do efetivo trabalho rural, individual ou em grupo. A tipificação do segurado especial se encontra no artigo 11, VII, da Lei 8.213/91, sendo que o trabalho pode ser exercido de duas maneiras, vale dizer: individualmente ou em regime de economia familiar. O conceito de regime de economia familiar vem estampado no artigo 11, §1º, da Lei 8.213/91 que, assim, expressa: “Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes”.

A essa altura já se faz possível perguntar: só é possível exercer atividade rural em regime individual aquele que não possui família?  Não se precisa buscar a resposta correta no primeiro enfrentamento da questão ou, ainda, no terceiro parágrafo de um artigo, logo, vamos supor que o trabalho rural pode ser feito por apenas uma pessoa (sozinha), mesmo que inserida num grupo familiar, sob pena disso constituir um obstáculo para o seu direito e/ou à constituição de uma família com alguém da cidade (se me entendem a ironia).

O trabalho rural, sem compromisso com o regime, precisa ser indispensável à própria subsistência? Posso dizer que no regime individual não apresenta importância a circunstância de o trabalho rural não ser indispensável à subsistência, tampouco o fato de existir outra fonte de renda?

A resposta nos permite cruzar os pontos, ou seja, se é possível ao segurado especial exercer sua atividade rural em regime individual, no interior de uma família que não retira apenas da terra o seu sustento, sem precisar comprovar a indispensabilidade do trabalho, então não há mais razão para traçar qualquer distinção entre regime individual e de economia familiar, importando apenas a prova do efetivo trabalho rural, individual ou em grupo. Talvez seja essa a resposta correta, considerando, ainda, que o benefício de aposentadoria por idade rural não visa apenas proteger o agricultor, mas implementa um programa de combate ao êxodo rural, com vistas à segurança alimentar e à redução da pobreza.

Fica fácil presumir que, para quem trabalha sozinho, o trabalho rural é indispensável. O mesmo não se pode dizer de quem trabalha na roça, mas o cônjuge possui outra fonte de rendimentos (leia-se: decorrente de atividade urbana). Seja como for, os problemas que prevaleceram e que temos hoje de enfrentar estão relacionados ao conceito de regime de economia familiar, que exige para a sua configuração a indispensabilidade do trabalho rural, não apenas à própria subsistência, mas ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar, em condições de mútua dependência e colaboração. Na verdade, isso passou a ser um problema quando se começou a confundir esses conceitos com os de dependência econômica e, até mesmo, miserabilidade — o caráter assistencial do benefício é outro pré-juízo inautêntico.

Neste nível, o tempo de serviço rural efetivamente exercido durante o período em que outro membro da família percebia R$ 3.000 é considerado dispensável. O dito sempre carrega o não dito, algo como: “nesse período o segurado trabalhou porque quis”. A aposentadoria por idade rural, negada por conta do não reconhecimento desse tempo, também é dispensável para o segurado? Vamos supor que a segurada venha a se divorciar do marido: como recuperar o tempo de labor rural perdido em razão do casamento? Tem-se, aqui, um quadro de alta complexidade e perigo para muitos segurados que tiveram a (in)felicidade de encontrar (casar ou se unir) com algum segurado urbano. E se ele recebesse apenas 1 salário mínimo? Vale o critério de ¼ da renda per capita do grupo familiar? Posso deduzir despesas?

À luz da própria “colaboração” que nos fala a norma, devemos valorizar o trabalho da mulher e colocá-lo numa perspectiva de complementação da renda familiar, com proposição para a estabilidade e bem estar da família, e não como uma espécie de hobby, um capricho. O presente artigo representa uma tentativa de lançar melhor luz sobre o tema. Uma aposentadoria por idade negada a uma trabalhadora rural não constitui apenas uma restrição perpétua ao benéfico, mas um dano a toda uma visão social!

 

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Bah1: SCHUSTER, Diego Henrique. Pré-juízos (in)autênticos: trabalhador rural agora precisa ser magro? In: Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 5 jun. 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-jun-05/diego-schuster-trabalhador-rural-agora-magro/>. Acesso em 07 jan. 2023.

Bah2: BERWANGER, Jane Lucia Wilhelm. Segurado especial: novas teses e discussões. Curitiba: Juruá, 2018. p. 150.

Bah3: TRF4, AC/RN 5012679-07.2019.4.04.9999/RS, 5ª T, Relª. Juíza federal Gisele Lemke, j. em 16/07/2020.

Bah4: SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. p. 22-23.

Bah5: Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf>. Acesso em 07 jan. 2023.

Bah6: PEDILEF n.º 2004.81.10.01.1325-5, Rel. José Antonio Savaris, DJ 12 fev. 2010.

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    é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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