Direito Comparado

10 anos sem Antonio Junqueira de Azevedo: uma homenagem

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

13 de novembro de 2019, 18h02

Spacca
No último dia 10 de novembro, completaram-se 10 anos do falecimento de Antonio Junqueira de Azevedo, professor titular de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo) e um dos mais importantes civilistas de língua portuguesa do último quartel do século XX e início do século XXI. A notícia de seu falecimento em 2009 foi publicada em diversos veículos especializados, mereceu uma nota de pesar do ministro Dias Toffoli (seu aluno nas Arcadas)1 e um obituário no jornal Folha de S. Paulo,2 o que não deixa de ser significativo de sua relevância para o Direito e para a sociedade.

Antonio Junqueira de Azevedo era descendente da tradicional família Junqueira, cujas origens remontam ao Brasil Colônia, figurando dentre seus mais famosos expoentes o Barão de Alfenas, nobilitado pelo imperador D. Pedro II em 1848. Embora um paulista orgulhoso de suas raízes, ele costumava lembrar das ligações com Minas Gerais e, nos últimos anos, tentava recuperar informações sobre sua ancestralidade italiana e indígena.

Egresso do tradicional Colégio São Luís, graduado em Direito no Largo de São Francisco (onde ingressou em 1957), doutorou-se em 1967 (com uma tese sobre Direito Processual Civil) e, em 1974, publicou sua tese de livre-docência “Negócio Jurídico: Existência, validade e eficácia”, com sucessivas reimpressões.3 Em 1986, é empossado no cargo de professor titular de Direito Civil, após aprovação em concurso público, e, em 1990, assumiu o cargo de diretor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

Algumas características do professor Junqueira, como era tratado por todos que o conhecíamos, ressaltam-se a ponto de merecerem algumas notas especiais.

A primeira delas era sua qualidade como docente. Suas aulas eram disputadíssimas. O nível de rigor e de qualidade eram elevados na graduação e na pós-graduação. Ele sempre afirmava – à semelhança do ministro Moreira Alves – que o professor nunca poderia perder o vínculo com a graduação. Era pelo convívio com os discentes, especialmente dos primeiros anos, que se renovava a docência e a vitalidade que nunca poderia deixar de acompanhá-la. Lembro-me que, nas vésperas da vigência do Código Civil de 2002, a Tv Globo fez uma série de matérias sobre as alterações introduzidas na legislação. A reportagem foi à Faculdade de Direito para entrevistar o professor Junqueira, um declarado adversário da nova codificação. Os estudantes acompanharam as câmeras e o jornalista com indiferença. Finda a gravação, eles saltaram para perto do professor e começaram a tirar dúvidas sobre o conteúdo da aula. O apelo da mídia era menos sedutor do que a interlocução com o docente.

As aulas na pós-graduação, na qual era assistido pelos professores João Alberto Schutzer del Nero e Fernando Campos Scaff (hoje chefe do Departamento de Direito Civil), eram disputadíssimas, ainda que marcadas pela rigidez do sistema de avaliação, que compreendia, além da nota pela participação e pelo trabalho escrito, uma prova dissertativa sobre todo o conteúdo ministrado no semestre. Alunos de todo o Brasil matriculavam-se nos créditos do professor Junqueira. Aquelas aulas lembravam o ideal da Faculdade de Direito como um centro formador da consciência da brasilidade, ao exemplo da Universidade de Coimbra (nos séculos XVIII e XIX) e a Faculdade Nacional de Direito (antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ), em parte do século XX.

Para além do brilho das exposições e do prestígio de assistir aulas com o já reconhecido grande civilista, essa atração de alunos de origens tão distintas era determinada por outra característica do professor Junqueira: o senso de profundo amor a São Paulo (e sua Universidade) e ao Brasil. O equilíbrio entre esses sentimentos de paulistanidade e brasilidade não é vulgar. Ele afirmava que a Universidade de São Paulo não pertencia mais aos paulistas. Ela se convertera em uma instituição do Brasil. Esse mesmo civismo levou-o a concorrer ao cargo de vice-governador do Estado de São Paulo, na chapa de Francisco Rossi, que foi ao segundo turno e terminou derrotada por Mario Covas.

Esse último fato ilumina uma terceira característica: sua capacidade de aproximar-se da vida do cidadão comum, de compreender a realidade muita vez singela do mundo não acadêmico e de se mimetizar sem perder sua aura aristocrática. Quase sempre de terno e gravata, com os (já saídos de moda) jaquetões (que usou até a morte de seu alfaiate), ele conseguia se equilibrar em uma conversa refinada com um catedrático estrangeiro com o mesmo carisma com que dialogava com um artesão ou um caseiro.

Essa permanente contradição (ou complexidade) do professor Junqueira também se percebia em uma quarta característica: uma certa mundivivência sincrética. Digamo-lo assim à falta de expressão melhor. Seus discursos de posse na titularidade de Direito Civil e na direção da Faculdade de Direito da USP expõem um homem com concepções aristodemocráticas, como a defesa de que a federação deveria ser revista ou que as eleições para o Parlamento deveriam ser alteradas para dar vez a um modelo que recrutasse uma elite de legisladores. Ao mesmo tempo, ideias como a defesa de cotas na universidade e da preservação dos interesses dos mais fracos eram ouvidas por seus alunos muito antes de sua conversão em conteúdo de programas partidários. Essa capacidade de transitar por campos muita vez tão antagônicos levou-o a ser eleito diretor da Faculdade com amplo apoio dos estudantes, em sua maioria situados à esquerda do espectro político, como os então jovens calouros Dias Toffoli (ministro do STF), Alexandre de Moraes (ministro do STF e professor associado da Faculdade de Direito da USP) e Floriano de Azevedo Marques Neto (hoje diretor da Faculdade de Direito da USP).

Um ar melancólico e contemplativo contrastava com um dinamismo notável e um tom visionário. Lembro-me de, em 2001, ele imaginar um grande projeto de comentários digitais ao Código Civil, com verbetes curtos (ao estilo dos comentários breves italianos), disponíveis na internet. Ainda no alvorecer da digitalização do conhecimento (jurídico) e quando não se imaginava a destruição do mercado tradicional de livros, ele já pensava em um modelo que permitisse atingir um número infinitamente maior de destinatários. A concepção da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, seu grande projeto como gestor acadêmico, foi outra prova desse dinamismo tão pouco perceptível após um contato inicial com o professor Junqueira. Seu sonho tornou-se realidade e, com o infatigável trabalho do professor Ignacio Poveda Velasco (que depois o sucederia na direção da nova Faculdade), a unidade de Ribeirão Preto rapidamente tornou-se em uma referência de qualidade para o ensino jurídico brasileiro. O professor Junqueira deixou a maior parte de sua biblioteca, em um total de 12 mil livros, para a Faculdade de Direito de Ribeirão Preto.

Esse contraste, sob outra óptica, pode-se identificar em uma visão ácida sobre o futuro do Direito Civil, como a presente em um texto de 1975, republicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo em 2014.4 O sugestivo título “O Direito Civil tende a desaparecer?” é autoexplicativo. De outro lado, porém, o profundo amor ao Direito Civil exalava de textos nos quais ele criticava severamente o personalismo ético5 e ao neoconstitucionalismo.6 Esses dois últimos temas passaram a ocupar enormemente as atenções (e as preocupações) do professor Junqueira. Em atenção a um legado que dele recebi, deles cuidei – com inferior qualidade a seus textos – em minha tese de livre-docência de 2017, na qual ele figura como grande homenageado7.

Uma sexta e última característica recai em sua aversão a manuais e cursos, bem como à grafomania que terminou por se instalar na literatura jurídica nacional. Ele publicou poucos livros. Além de sua tese de livre-docência, a tese de titularidade nunca foi editada em versão comercial. Dele temos duas coletâneas, que reuniram a maior parte de seus artigos e pareceres, além de publicações esparsas em obras coletivas.8 Essa foi uma crítica que ele sempre recebeu: a baixa quantidade de fontes escritas que permitissem chegar a seu pensamento. Como resultante disso, provavelmente, o aumento significativo do interesse por suas aulas e conferências. Se não era possível lê-lo, tentava-se ouvi-lo.

Nossa última conversa presencial foi em julho de 2009. Nosso aniversário coincidia na mesma data e tínhamos uma tradição de troca de telefonemas ou de um almoço em São Paulo. Fui a seu encontro e, em sua casa (que também era seu escritório), conversamos sobre os mais diversos assuntos. A situação política do país, as possibilidades de nomeação de seu ex-aluno, o então advogado-geral da União, Dias Toffoli, para o STF (algo que ele via com grande orgulho), e seu último texto, sobre a presença do Direito Civil nos Evangelhos.9 Ele estava muito melancólico e muitos temas transcendentais foram tocados, a ponto de eu perder o voo e ter de retornar no dia seguinte a Brasília. Ele parecia saber que os tristes sucessos de novembro, que o levariam pelas mãos da Pálida Operária ao descanso final. Católico fervoroso como ele, tenho certeza de que sua acolhida nos céus foi generosa, como generoso ele foi com seus contemporâneos.

10 anos passaram-se. A perda do convívio, da influência e da liderança do professor Junqueira não foram maiores do que aquelas sentidas por todos quantos o conhecemos e nos tornamos seus admiradores. A todos nós, cada um a seu modo, cabe o dever de alimentar essa memória tão importante para o Direito Civil e para uma visão generosa de São Paulo e do Brasil.


1 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-nov-11/morre-antonio-junqueira-azevedo-professor-aposentado-usp. Acesso em 10-11-2019.

2 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1311200938.htm. Acesso em 9-11-2019.

3 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed., atual. de acordo com o novo Código civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002), 7. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2010.

4 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. O Direito Civil tende a desaparecer? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 70, p. 197-210 1975. A versão reeditada pode ser encontrada aqui: http://direitocivilcontemporaneo.academia.edu/REVISTADEDIREITOCIVILCONTEMPOR%C3%82NEORDCC.

5 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil: em favor de uma ética biocêntrica. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, p. 115-126, jan./dez. 2008.

6 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. O direito ontem e hoje: crítica ao neopositivismo constitucional e à insuficiência dos direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, n. 102, p. 579-590, jan./dez. 2007.

7 Disponível em segunda edição: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito Civil contemporâneo: estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2019.

8 A título de exemplo: JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009.

9 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Os quatro evangelhos e o Direito Civil. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, p. 133-144, jan./dez. 2009.

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    é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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