Diário de classe

O juiz das garantias e a limitação hermenêutica na interpretação conforme a Constituição

Autor

3 de dezembro de 2023, 10h12

Um tema recorrente nas aulas do professor Lenio Streck, na disciplina de Hermenêutica Jurídica ministrada na Unisinos, é acerca dos limites da interpretação judicial na visão de diversas teorias do direito. Mais recentemente tratávamos sobre o tema da interpretação no contexto anglo-saxão e nos debruçamos sobre o autor Antonin Scalia, que desenvolve uma defesa à interpretação textualista do ordenamento legal. Para este autor o que importa ao magistrado é o texto legal. E ponto. A proposta textualista de interpretação legal possui muitos problemas, pois reduz o sentido da norma apenas ao texto legal, como se fosse possível uma hermenêutica apenas dos significados ordinários das palavras 1. Contudo, no Brasil, existe situações em que o tribunal pretende se arvorar da função legislativa de editar leis e impor modificações legais sem qualquer legitimidade. Me refiro ao caso do juiz das garantias. É uma espécie de anti-Scalia.

Colunas recentes o professor Lenio Streck 2 3, em diálogo com o Antonio Pedro Melchior 4, expressaram suas inquietações epistemológicas com o julgamento das ADIns 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 que tratam sobre a Lei 13.964/2029 a debatida “Lei do juiz das garantias”. O instituto da interpretação conforme a constituição tem como principal utilidade “salvar o texto legal”, preconizada na Lei 9.868/1999, deixando claro que a tarefa do poder judiciário não é apenas de “legislador negativo” fruto de uma concepção ultrapassada. A Constituição Federal é o fundamento último de validade do sistema jurídico, nisso está a base da interpretação conforme. Busca-se evitar a eliminação total o dispositivo legal do sistema jurídico, definindo qual interpretação deve ser tida como indevida (porque incompatível com a norma constitucional).

Acontece que a interpretação conforme não pode transformar o juiz em legislador positivo, resultando no absurdo julgamento sob relatoria do ministro Fux acerca do juiz das garantias: por maioria, declarar a inconstitucionalidade da expressão “recebimento da denúncia ou queixa na forma do artigo 399 deste Código” contida na segunda parte do caput do artigo 3º-C do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, e atribuir interpretação conforme para assentar que a competência do juiz das garantias cessa com o oferecimento da denúncia.

Quanto aos limites da interpretação conforme, podemos elencar dois: “(i) o respeito ao sentido literal da lei e (ii) o fim objetivo que o legislador buscou quando da feitura desta, mas sempre tendo como norte a Constituição.” 5 Em relação ao primeiro, fazemos a ressalva quanto à falácia do “sentido literal da lei”, deixando claro que a diferença ontológica entre texto e norma que norteia o processo hermenêutico. Já em relação ao segundo, é importante trazermos como um dos limites ao processo interpretativo das cortes judiciais a impossibilidade de inovar no ordenamento jurídico. Ora, claramente quando o legislador aprovou por votação que o juiz das garantias deve ser responsável por acatar a denúncia a razão foi evitar a “contaminação” do juiz da instrução. Na exposição de motivos do PL 4.981/2019 consta que:

Fatos recentes trouxeram à tona a importância da garantia da imparcialidade do juiz criminal. Acreditamos que a atuação escorreita dos magistrados pode ser contaminada por sua atuação prévia na fase de investigação. Nessa fase, drásticas medidas são tomadas em desfavor dos investigados, tais como prisões cautelares, buscas e apreensões e interceptações telefônicas. É até natural que o juiz que acabou por deferir essas medidas, tomadas sem contraditório algum, se veja, em alguma medida, comprometido com a hipótese em investigação, com a tese da acusação por assim dizer. 6

A Crítica Hermenêutica do Direito, do professor Lenio Streck, é um importante escudo de proteção quanto às superinterpretações no judiciário. Seguindo ensinamentos de Gadamer e Heidegger, quanto ao modo como percebemos os fenômenos no mundo, o professor Lenio afirma que interpretar — que sempre também há aplicação — é vislumbrar o sentidoda norma:

Dito de outro modo, a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, as sentenças construtivas, etc., seja o nome que se dê nos diversos tipos de normas extraídas dos textos, somente ganham forma em face da inexorabilidade da plurivocidade sígnifica com que se revestem os textos jurídicos, os quais, muito embora por vezes apareçam como claros, uma vez contextualizados no interior do conjunto de normas do sistema (não esqueçamos que o ser é sempre ser-em), perdem o sentido de base, para receber um atribuição de sentido (Sinngebung) que refoge, em muitos casos, daquele mesmo significado de base. 7

Contudo, existe limite à interpretação do sujeito, pois há uma tradição que o precede e uma natural barreira de pré-compreensões que limitam o quanto se pode dizer de um texto. Os ministros, ao modificarem o texto legal se substituem ao Congresso democraticamente votado e tomam para si uma competência no exercício do poder político que é de outrem. Um dos cernes do constitucionalismo moderno é a limitação do poder pelo direito.

O estrago está feito e as coisas podem piorar com o acirramento das tensões entre legislativo e judiciário. Recentemente, a PEC 08/2021 que limita as decisões individuais dos ministros do STF foi aprovada no Senado e seguirá para a Câmara. Alguns ministros já criticaram publicamente a proposta de emenda constitucional. Essa reforma pode ser lida como uma retaliação do legislativo dominantemente conservador ao tribunal.

De nada adiante criticarmos o textualismo de Scalia quando, no Brasil, ainda imperam posturas voluntaristas nos tribunais. Há muito o professor Lenio e todos do Dasein (Núcleo de estudos hermenêuticos) denunciamos o desprezo dos magistrados brasileiros à responsabilidade na interpretação.


1 Para mais, ver em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-30/senso-incomum-isto-textualismo-originalismo-afinal-interpretar/

2 https://www.conjur.com.br/2023-ago-22/lenio-streck-juiz-garantias-tres-amores/

3 https://www.conjur.com.br/2023-jul-06/senso-incomum-juiz-garantias-interpretacao-desconforme-constituicao/

4 https://www.conjur.com.br/2023-ago-18/antonio-pedro-melchior-assassinaram-juiz-garantias/

5 CICCONE, Stefano Maria; TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Jurisdição constitucional comparada. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. P

6 Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8006589&ts=1674175865426&disposition=inline&_gl=1*1xf7ls9*_ga*MTQ4OTE1NDUxMS4xNjkyNjM3Mjg1*_ga_CW3ZH25XMK*MTcwMTAzOTk4OC4xMy4wLjE3MDEwMzk5OTEuMC4wLjA. Acesso em: 26 de nov. 2023

7 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p 447.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!