Opinião

É inadequada a cobrança de IPTU em contratos de arrendamento portuário

Autor

  • Marcela Bocayuva

    é advogada mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago) estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

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11 de julho de 2024, 9h22

A conceituação dos serviços regidos pelo microssistema do direito portuário, há muito, vem sendo alvo de debates acalorados no Congresso, nos tribunais e na doutrina. Uma das discussões mais importantes nessa seara é a adequação da aplicação do sistema tributário conforme a natureza jurídica das atividades portuárias desempenhadas em se tratando de exploração das instalações por empresa arrendatária, como a incidência do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana.

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Porto, exportação

A aplicação do IPTU nos contratos de arrendamento vai de encontro com a própria natureza do serviço de exploração das instalações portuárias, que é essencialmente serviço público. Esse, ao fim e a cabo, é um fator que dificulta o incentivo dos investimentos do setor e reduz a atratividade, uma vez que é capaz de alterar até mesmo o valor das licitações, tornando-se um limitador da concorrência e da competitividade.

A aplicação do sistema tributário nesses casos, embora o propósito seja positivo, é um meio absolutamente inadequado para alcançar o escopo que se almeja, tanto sob o aspecto formal quanto o material, uma vez que tem o condão de trazer mais prejuízos que ganhos ao setor portuário ao trazer consigo motivos de desestímulo a investimentos na área.

O Brasil, de acordo com o Ministério da Infraestrutura, representa expressiva relevância no setor portuário mundial, uma vez que tem 36 portos públicos organizados e mais de 250 Terminais de Uso Privado (TUPs), cuja administração recai diretamente à União, no caso das Companhias Docas, ou exercida de forma delegada a municípios, estados ou consórcios públicos.

Segundo o relatório de Avaliação Concorrencial da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o setor portuário brasileiro é responsável por 98% das exportações do país e mais de 92% das importações em termos de volume. Além estar positivamente relacionado com crescimento do PIB.

Por essa razão, tais atividades são tidas como indispensáveis catalisadoras do processo de desenvolvimento econômico e social do País, além de fomentar o comércio exterior. É o que se depreende também da correlação do desempenho do setor portuário no plano interno com a melhora de posição do Brasil no ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial dos últimos anos.

Nesse sentido, a Constituição estabelece que é de titularidade da União a exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres. O referido poder-dever, não obstante, pode ser exercido de forma direta ou indireta — mediante autorização, permissão e concessão.

A norma constitucional de escalão superior estabeleceu expressamente que a exploração de atividades relacionadas aos portos ostenta status de serviço público, independentemente de se concretizar de forma direta ou indireta. A relação entre as premissas constitucionais e as normas de escalão inferior é de deferência, portanto é a partir dos parâmetros conferidos pela Constituição que a legislação infraconstitucional deve conformar o seu âmbito de incidência.

Sabendo disso, ainda que em se tratando de arrendamento portuário, é lícito à empresa arrendatária executar as funções típicas do serviço público que lhe foram delegadas, inclusive para terceiros. Por esta razão, a antiga Lei de Portos de nº 8.630/1993 continha diversas atribuições típicas da concessão de serviços públicos. Cabe mencionar, por exemplo, as cláusulas de reversão de bens, bem como as de metas de qualidade e de padrões de serviço.

À luz da legislação vigente à época restou claro que o arrendamento no direito portuário não corresponde com o arrendamento propriamente dito consubstanciado no Código Civil, denominado “locação de direito público”.

Consiste, em realidade, em modelo de subconcessão sui generis, tendo em vista que, ao arrendatário, são impostos deveres típicos de contrato de concessão.

Ato contínuo, tendo por objetivo precípuo sanar as deficiências na infraestrutura portuária brasileira percebeu-se uma tendência do legislador em recrudescer o mecanismo de delegação de competências como instrumento garantidor de maior celeridade, objetividade e precisão na administração pública. O setor aquaviário, inclusive, entende o instituto como corolário do melhor desempenho das funções do Estado, com potencial de desafogar ou descongestionar a administração.

Fiscalizar contratos de arrendamento

Em 2018, foi expedida pelo extinto Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil a Portaria nº 574, que transferiu a responsabilidade de gerir e fiscalizar os contratos de arrendamento às respectivas autoridades portuárias, inclusive com poderes de deflagrar procedimento licitatório, desde que presentes elementos de conveniência e oportunidade da administração, bem como demonstrada a capacidade técnica para tanto, além da submissão à apreciação da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

Para promover a manutenção do mencionado propósito, a Lei nº 14.047 de 2020 foi responsável por promover alterações à Lei nº 12.815/13 no tocante às cláusulas essenciais dos contratos, com o objetivo de se fazer uma distinção entre os contratos de concessão e os de arrendamento, retirando aquelas referentes à previsão de reversão de bens e aos métodos de verificação do padrão do serviço, as quais impunham a aplicação do regime de direito público. O que, por si só, não retira a qualidade de serviço público das atividades desempenhadas em contrato de arrendamento, já que, ainda assim, tais contratos devem respeitar os princípios que regem a administração pública do artigo 37 da CF.

O referido marco regulatório, portanto, envidou esforços para possibilitar uma maior abertura de mercado, de modo a aumentar a prospecção da concorrência entre portos públicos e privados e de proporcionar tarifas portuárias mais vantajosas, elevando- se, assim, os graus de competitividade e de eficiência.

Para tanto, diversas transformações no setor passaram a ocorrer, especialmente, por meio do movimento de progressiva desestatização dos portos públicos do país, a exemplo do Porto de São Sebastião (SP); do Porto de Itajaí (SC); da Companhia das Docas do Espírito Santo (ES); da Companhia das Docas da Bahia (BA) e, por fim, do Porto de Santos (SP). Até o presente momento, as parcerias com o setor privado têm por enfoque o processo de interligação dos modais ferroviários e rodoviários com os portos.

O país, portanto, caminha para o sentido de se instaurar os preceitos do modelo de Landlord Port, que se traduz em sistema híbrido de administração, em que há o equilíbrio entre as iniciativas privadas e públicas, conferindo maior autonomia à autoridade portuária.

Não obstante todos esses esforços, a referida atividade portuária continua se tratando de hipótese de serviço público de prestação não obrigatória pelo Estado, a qual, não sendo prestada diretamente, compele o Estado a promover-lhe a execução por outros meios, ainda que por intermédio de terceiros, podendo sempre retomá-los conforme sua conveniência e oportunidade.

O conceito de serviço público retira seu fundamento de validade da própria Constituição, portanto, deve-se interpretá-lo, não de modo restritivo, mas de modo a concretizar os princípios da administração pública. A aparente implementação de regime econômico concorrencial no âmbito do setor portuário é, em verdade, uma forma de se concretizar os princípios da administração pública por meio da ponderação de princípios, considerando que o objetivo último dos serviços públicos é garantir a fruição de direitos fundamentais.

É por esta razão que a atividade sempre será de natureza de serviço público e não de atividade econômica em sentido estrito, não importando se é exercida no âmbito de portos públicos ou privados. O Estado, nessas hipóteses, atuará como garante. Impor obrigações implícitas ao arrendatário seria considerado como motivo de desequilíbrio econômico e financeiros nos contratos.

Autores

  • é advogada, mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT), certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard, especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago), estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

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