Opinião

Exame de corpo de delito e o retrocesso na jurisprudência do STJ

Autor

  • Manoel Franklin Fonseca Carneiro

    é juiz de direito no TJDFT pós-graduado em Direito Animal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe) e Universidade Internacional (Uninter) e em Direito Processual Civil nas Cortes Superiores pela Faculdade Mackenzie professor de Direito Animal na OAB-DF conferencista e palestrante.

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10 de julho de 2024, 7h05

Trajetória da jurisprudência do STJ e sua recente alteração

A oscilação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão da prova pericial no processo penal permite entendimentos divergentes nas instâncias inferiores e acarreta decisões contraditórias e injustas [1], que afetam a credibilidade da justiça porque, não raras vezes, ferem o senso comum do que é justo, merecendo o tema uma discussão mais ampla e sua uniformização segundo as exigências de uma sociedade cada vez mais informada e crítica, o que parece se refletir com mais intensidade no Poder Judiciário, especialmente em face das decisões das cortes superiores, em função da sua projeção e formação de precedentes.

Segundo o artigo 158, do Código de Processo Penal, nas infrações que deixarem vestígio será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado, sendo que a inobservância desse mandamento acarreta a nulidade prevista no artigo 564, inciso III, letra “b”, do referido Código, e da simples leitura do artigo já se percebe que não há hierarquia ou nenhuma outra diferenciação entre o corpo de delito direto e o indireto, sendo que eventual diferenciação faz parte de uma corrente de pensamento divergente [2], sem estudo convincente desses institutos, mas que ainda tem significativa expressão nos nossos tribunais.

Segundo o anterior entendimento da 6ª Turma do STJ, capitaneada pelo ministro Rogério Schietti, “a falta de exame de corpo de delito direto não é suficiente para invalidar a condenação, sobretudo quando é possível a verificação da materialidade por outros meios probatórios[3], tendo assim decidido em caso de homicídios, consumados e tentados, por meio cruel praticado por um detento contra vários outros, ateando fogo nas celas, reafirmando entendimento que vem mantendo desde o ano de 2018, no julgamento de habeas corpus em caso de crime de mau trato a cão [4], no que foi recentemente seguido pelo ministro Ribeiro Dantas [5], que transcreveu na ementa do seu julgado o pensamento do ministro Schietti.

Essa corrente de pensamento tem também o apoio da 5ª Turma do STJ, como se vê no, no julgamento do HC 837.993/MS [6], ministro Reynaldo Veloso, em decisão unânime do colegiado, que considerou prescindível o exame de corpo de delito quando houver perícia indireta ou outros elementos de prova, em julgamento assim fundamentado, verbis:

“…o exame de corpo de delito direto, por expressa determinação legal, é indispensável nas infrações que deixam vestígios, podendo apenas supletivamente ser suprido pela prova testemunhal quando o delito não deixar vestígios, se estes tiverem desaparecido ou, ainda, se as circunstâncias do crime não permitirem a confecção do laudo”.

“O art. 182 daquele codex prevê que o juiz não está adstrito ao laudo; logo, na interpretação sistêmica das normas, à prova pessoal e material deve-se dar idêntico valor dentro das circunstâncias do caso concreto em análise. Tanto é assim que o art. 155 da lei adjetiva assegura a adoção da livre convicção ou da persuasão racional, que não estabelece valor entre as provas, de forma que nenhuma prova se sobressai à outra. Pertinente a lição de Paulo Rangel sobre a questão: “… conferir aos crimes desse jaez a imprescindibilidade de exame de corpo de delito direto laudo pericial, importando na desconsideração das demais provas produzidas no decurso da persecução penal, ensejaria a desfiguração do sistema da livre persuasão racional, confinando os magistrados à apreciação superlativa de uma única prova ante as demais, por mais suficientes que sejam, capazes de sustentar o decreto condenatório.

No Supremo Tribunal Federal também temos um importante julgamento nesse sentido, da lavra do e. ministro Ricardo Lewandovski [7], que decidiu afirmando que “a inquinada nulidade decorrente da falta de realização do exame de corpo de delito não tem sustentação frente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que não considera imprescindível a perícia, desde que existentes outros elementos de prova”, citando precedentes daquela corte, dentre os quais destacamos o HC 74.265/RS, relator ministro Ilmar Galvão, citado na ementa do acórdão, dentre outras no mesmo sentido [8].

No entanto, esse correto entendimento jurisprudencial sofreu um retrocesso, tendo o STJ, neste ano de 2024, estabelecido um requisito para a desnecessidade do corpo de delito direto ou indireto, que seria a existência de situação excepcional que dispensasse a confecção do laudo pericial, conforme se vê em recente decisão monocrática do ministro Jesuíno Rissato, invocando um de seus julgados e outros precedentes daquela corte, verbis:

“No caso, o Tribunal de origem reconheceu a incidência da qualificadora da escalada tão somente com apoio na prova oral e em filmagens, nada mencionando acerca da existência de situação excepcional que dispensasse a confecção do laudo pericial, disso advindo o afastamento da qualificadora, em sua forma tentada, nos termos da jurisprudência desta Corte.3. Agravo parcialmente provido” (AgRg no REsp n. 2.067.232/RS, relator ministro Jesuíno Rissato, 6ª Turma, j. 2/4/2024, p.10/4/2024).

Esse entendimento parece estar se consolidando no STJ, como se vê na decisão monocrática do e. ministro Jesuíno Rissato, no AREsp 2.554.,944/DF (j. 28/6/2024, p. 2/7/2024), em que foram invocados outros precedentes do STJ no mesmo sentido, todos julgados no ano em curso, exigindo a realização de exame de corpo de delito, direto ou indireto, para as infrações que deixem vestígios, aceitando a dispensa de perícia somente em situações excepcionais que justifiquem a não confecção do laudo pericial [9], caracterizando assim um indesejado retrocesso no entendimento antes dominante, mitigando o princípio de inexistência de nulidade se não houver prejuízo [10], o que exige algumas reflexões.

Exame de corpo de delito direto e indireto na doutrina e na casuística forense

O exame de corpo de delito consiste na emissão de um laudo pericial atestando a materialidade do delito, diferenciando o artigo 158, do CPP e a doutrina os exames de corpo de delito direto e indireto, sendo o primeiro aquele que é realizado diretamente na vítima ou no objeto da infração e, o segundo, como o exame feito por perito em documentos, tais como exames feitos por médicos ou veterinários que prestaram atendimento às vítimas, vídeos, fotos e prova testemunhal, exigindo sempre o trabalho do perito, havendo ainda uma corrente mais progressista que admite que o exame de corpo de delito indireto possa ser feito pelo magistrado, através do seu poder de livre apreciação da prova (CPC, artigo 155 c/c 182), sem necessidade de perícia.

“Exige-se, para a infração que deixa vestígios, a realização do exame de corpo de delito, direto ou indireto, isto é, a emissão de um laudo pericial atestando a materialidade do delito. Esse laudo pode ser produzido de maneira direta – pela verificação pessoal dos peritos – ou de modo indireto – quando os profissionais se servem de outros meios de provas. Note-se que, de regra, a infração que deixa vestígio precisa ter o exame de corpo de delito direto ou indireto (que vai constituir o corpo de delito direto, isto é, a prova da existência do crime atestada por peritos). Somente quando não é possível, aceita-se a prova da existência do crime de maneira indireta, isto é, sem o exame e apenas por testemunhas” (Nucci, Guilherme de S. Curso de Direito Processual Penal. Disponível em: Minha Biblioteca, 21ª edição. Grupo GEN, 2024).

O professor Renato Brasileiro de Lima [11] examina muito bem o tema, afirmando que, se para o conceito de exame de corpo de delito direto não há dúvidas na doutrina e na jurisprudência, o mesmo não corre para a definição do que seja o exame do corpo de delito indireto, havendo uma corrente que entende ser o exame de corpo de delito indireto um exame pericial e não se confunde com o mero depoimento de testemunhas, devendo haver laudo do perito sobre documentos, depoimentos e outras provas que atestem a materialidade do delito, e uma outra corrente que entende não haver a necessidade de perito, bastando a livre apreciação pelo magistrado de documentos e outras provas, tais como fotografias, prontuários médicos e prova testemunhal.

Reprodução

Destarte, o exame de corpo de delito pode ser direto ou indireto, não havendo nenhuma ordem de preferência ou hierarquia entre aqueles, como se lê no caput do artigo 158, do CPP, subdividindo-se o exame de corpo de delito indireto em duas hipóteses: a primeira, com a obrigatória participação do perito; e, a segunda, mais progressista, entendendo suficiente a livre apreciação da prova pelo magistrado (CPP, artigo 155 c/c 182), como já entendido pelo STJ, mas no entanto essa última corrente vem perdendo força na jurisprudência recentíssima daquela corte, que está entendendo o corpo de delito indireto sem a participação do perito, e às vezes até mesmo com realização da perícia, ter como requisito situação excepcional que justifique a não elaboração do laudo.

Assim, o atual entendimento da jurisprudência do STJ caminha, embora distante de ser pacificada, no sentido de aceitar o corpo de delito, direto ou indireto, confeccionado por perito, mas, quanto à livre apreciação da prova pelo magistrado, nas infrações que deixem vestígios, somente em casos excepcionais, em que haja justificativa para a não elaboração do laudo pelo perito, o que torna imperiosa a realização do laudo pericial, preferencialmente o laudo de exame direto, para que o jurisdicionado não fique à mercê das correntes de pensamento adotadas pelos julgadores, devendo exigir-se da autoridade policial que cumpra seu múnus insculpido no artigo 6º, inciso VII, do CPP, determinando de ofício a realização do exame de corpo de delito direto e outras perícias que sejam necessárias à apuração da infração.

Nesse contexto, o que tem se verificado na casuística forense é que existem dois crimes que têm incidência mais frequente dessa questão: o crime de furto qualificado por destruição ou rompimento de obstáculo (CP, artigo 155, § 4º, inciso I); e o crime de maus tratos a animal (artigo 32, da Lei 9.605/98). No primeiro caso, seria suficiente que o juiz, na fundamentação da condenação, justificasse que não foi possível realizar a perícia porque a vítima declarou que não poderia ficar com a porta da sua residência ou do seu estabelecimento comercial destruída até que fosse realizada a perícia.

No entanto, nos crimes de maus tratos a animais, há pouco espaço para justificar a ausência do laudo direto, o que tem ocasionado absolvições indesejadas em casos graves, caracterizados por elevada culpabilidade do agente e intenso sofrimento do animal, não raras vezes resultando na sua morte, mutilação ou invalidez, causando revolta na comunidade e descrédito da justiça, pelo que devem as autoridades policiais realizar ou serem instadas pelo Ministério Público a realizar o exame de corpo de delito direto ou, na impossibilidade, o exame de corpo de delito indireto, neste último caso apresentando justificativa para a não realização do exame direto, tal como, v.g., a falta de um IML Veterinário estruturado, falta de recursos humanos e outras situações específicas de cada caso concreto.

Conclusão

 Nas infrações que deixam vestígios é essencial a realização do exame de corpo de delito, direto ou indireto, mas é imperioso entender que o corpo de delito indireto, quer seja confeccionado por perito ou realizado somente pela livre apreciação das provas pelo magistrado, só está sendo aceito pela jurisprudência do STJ em situações excepcionais que justifiquem a ausência do laudo direto, e, por isso, as autoridades policiais devem ser instadas a cumprir seu dever legal e realizar o exame pericial direto em casos da espécie, o que geralmente só tem sido feito em crimes contra a vida ou a integridade física de pessoas, sendo negligenciada para outros casos, tais como qualificadora de crime de furto por destruição ou rompimento de obstáculo e nos crimes de maus tratos a animais, evitando-se futura nulidade e, na segunda hipótese, também a absolvição de culpados, impactando negativamente a imagem da justiça e abalando a necessária confiança nas instituições públicas.

 


[1] TJ-SP; proc. 1518960-22.2023.8.26.0228; Fórum Central Criminal Barra Funda; 16ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo; sentença assinada digitalmente em 08-01-2024, em que a magistrada absolveu o réu, em crimes de maus tratos a dois cães, por inexistência de laudo pericial, sem analisar as provas dos autos.

[2] STJ; AgRg no HC n. 797.375/MG, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 26/9/2023, DJe de 29/9/2023.

[3] STJ; AgRg no HC n. 763.428/MG, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 19/6/2023, DJe de 22/6/2023.

[4] STJ, Ag em REsp 1077377/MG, decisão monocrática; relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 23/3/2018, DJe de 04/4/2018.

[5] STJ, AgRg no AREsp n. 2.438.225/MG; relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 27/2/2024; DJe 1/3/2024.

[6] STJ; AgRg no HC n. 837.993/MS, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca; 5ª Turma; julgado em 26/9/2023; DJe de 29/9/2023.

[7] STF, RHC 1712.700; 2ª Turma; relator min. Ricardo Lewandowski; julgado em 23/8/2019; DJe 03/9/2019.

[8] STF, HC 117.465; HC 108.463.

[9] STJ; AgRg no REsp n. 2.089.552/RS, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 18/3/2024, DJe de 21/3/2024; e STJ; AgRg no REsp n. 2.086.408/RS, relator ministro Teodoro Silva Santos, 6ª Turma, j.4/3/2024, DJe de 7/3/2024.

[10] O princípio do pas de nullité san grief, insculpido no art. 563, do Código de Processo Penal, está consolidado na jurisprudência do e. STF (HC 240382 AgR, rel. ALEXANDRE DE MORAES, 1ª Turma, j. 05-06-2024, p. 10-06-2024).

[11] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. Ed. Ver. Ampl. E atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020; p. 731-732.

Autores

  • é juiz de Direito no TJ-DF, titular da 1ª Vara Criminal da RA do Gama, pós-graduado em Direito Processual nas Cortes Superiores pela Faculdade Mackenzie de Direito do Distrito Federal e especializado em Direito Animal pela Esmafe/Uninter-PR, professor de prática forense, escritor, conferencista e palestrante da causa animal, a maioria em caráter de voluntariado, já tendo sido agraciado pela Câmara Legislativa do Distrito Federal com Moção de Louvor pela defesa dos animais no DF.

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