Opinião

Lei 14.758/2023 e cuidados paliativos oncológicos: foco em qualidade de vida

Autor

  • Francisco Christovão

    é advogado atuante na área da saúde sócio-administrador do escritório Francisco Cristóvão Advogados Associados pós-graduando em Direito Médico e da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e pós-graduado em Direito da Aduana e Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) Campus Itajaí autor de artigos jurídicos e membro consultivo da Comissão de Direito da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional do Estado de Santa Catarina (OAB-SC).

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9 de julho de 2024, 11h21

A dor que pacientes com câncer enfrentam é uma experiência profundamente angustiante e debilitante. Essa dor pode se manifestar em qualquer estágio da doença, muitas vezes como o primeiro e único sintoma, e pode variar de intensidade dependendo do tipo de câncer e do estado do paciente. Ela é frequentemente causada pela compressão dos órgãos e ossos pelo tumor, além dos procedimentos invasivos e tratamentos como cirurgias, radioterapia e quimioterapia.

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A dor oncológica não deve ser vista como algo normal, pois é um sinal de que algo não está certo no corpo e precisa ser adequadamente tratada para evitar impactos negativos nas sessões de terapia e na qualidade de vida do paciente.

Além da sua presença constante, a dor oncológica varia em intensidade e duração, podendo ser desde intensa e de curta duração até persistente por longos períodos. Essa dor pode incluir episódios disruptivos, que surgem de forma súbita e intensa, que podem não responder aos analgésicos convencionais.

A identificação precoce e o tratamento adequado da dor são cruciais para proporcionar alívio e conforto aos pacientes. A negligência no manejo da dor pode agravar o sofrimento e comprometer ainda mais a saúde física e mental dos pacientes.

Além da dor, os tratamentos contra o câncer, como a quimioterapia, podem causar uma série de efeitos colaterais que degradam ainda mais a qualidade de vida dos pacientes. A quimioterapia, ao atacar tanto células cancerígenas quanto células saudáveis, pode resultar em problemas como a queda de cabelo, dores musculares, náuseas, vômitos, e alterações na pele e unhas. Esses efeitos colaterais não apenas impactam fisicamente o paciente, mas também têm um efeito psicológico devastador, afetando a autoestima e o bem-estar emocional.

Os procedimentos invasivos e o constante manejo dos sintomas colaterais podem transformar a vida dos pacientes e das pessoas ao seu redor, criando um ambiente de sofrimento contínuo e desgaste emocional.

Lei 14.758 e política de prevenção e controle do câncer

Diante dos inúmeros percalços que os pacientes oncológicos enfrentam, torna-se evidente a necessidade de uma legislação que aborde não apenas a prevenção e o tratamento do câncer, mas também o manejo adequado da dor e dos efeitos colaterais dos tratamentos. Uma política que assegure cuidados paliativos de qualidade é crucial para minimizar o sofrimento e garantir a dignidade dos pacientes oncológicos.

Neste contexto, a Lei nº 14.758, de 19 de dezembro de 2023, é um marco significativo, instituindo a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer. Essa legislação não só consolida práticas essenciais para garantir um tratamento digno e livre de sofrimento desnecessário aos pacientes oncológicos, mas também estabelece diretrizes cruciais para o cuidado paliativo de qualidade.

Além disso, a legislação consolida práticas que já vinham sendo incentivadas para garantir um tratamento digno e livre de sofrimento desnecessário.

A nova legislação transforma em lei o que anteriormente estava disposto na Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018, do Ministério da Saúde. Essa resolução estabelecia diretrizes para a organização dos cuidados paliativos no âmbito do SUS, com base em cuidados continuados integrados. Conforme o artigo 2º da referida resolução, “cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, visando a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, por meio da prevenção e alívio do sofrimento. Isso é alcançado através da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”.

Tratamento humanizado ganha respaldo legal

O avanço incorporado pela Lei nº 14.758/23 reflete a importância de se ter respaldo legal para tais práticas, assegurando que os cuidados paliativos não estejam apenas associados ao fim de vida, mas também a medidas terapêuticas menos incisivas que promovam a qualidade de vida de pacientes buscando a curabilidade. Assim, a Lei nº 14.758 não apenas reforça as diretrizes previamente estabelecidas, mas também amplia o entendimento e a aplicação dos cuidados paliativos no tratamento oncológico, assegurando que todos os pacientes, independentemente do estágio da doença, possam receber um tratamento digno e humanizado.

Os cuidados paliativos são fundamentais nos tratamentos oncológicos, focando não só no prolongamento da vida, mas principalmente na mitigação da dor e sofrimento, garantindo a qualidade de vida e a dignidade humana do paciente (artigo 1º, III da CRFB/88), além de evitar tratamentos degradantes (artigo 5º, III da CRFB/88).

Ou seja, ao contrário da mera prolongação da vida, os cuidados paliativos se concentram na minimização da dor física, psicológica e espiritual, alinhando-se com os princípios de humanização da saúde.

Em sua obra sobre a implantação dos cuidados paliativos no SUS, a doutora Fernanda Schaefer enfatiza que “os cuidados paliativos trazem a noção de cuidado a uma medicina extremamente tecnicizada, preocupando-se com o doente, e não com a doença. A medicina paliativa permite atribuir prioridade ao que é ética e medicamente justificável, não ao que é medicamente possível. Não se trata de abandonar o doente, mas de oferecer conforto quando a morte é iminente” (SCHAEFER, 2019, p. 40).

É muito importante destacar que não existe abandono do paciente, prática inclusive vedada pelo código de ética médico (artigo 36 Resolução CFM nº 22/2018). O que existe é uma abordagem que visa mitigar dores e trazer maior dignidade para os pacientes.

Ortotanásia

Também, os cuidados paliativos não podem ser confundidos com ortotanásia, apesar de estarem intimamente ligado a ela como prática de evitar dor e sofrimentos desnecessários. Isso porque a prática de ortotanásia consiste em permitir que a morte ocorra de forma natural, sem intervenções que prolonguem a vida artificialmente, respeitando a dignidade do paciente.

Essa abordagem encontra previsão na Resolução nº 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que autoriza a limitação ou suspensão de tratamentos que prolonguem a vida de doentes terminais, garantindo cuidados necessários para aliviar o sofrimento.

Para a ortotanásia, o evento morte deve ser uma condição inevitável ao quadro clínico da paciente portador de doença incurável, é o pressuposto crucial para o protocolo de ortotanásia, que só se concretiza com a vontade expressa do paciente, ou na sua impossibilidade do seu representante legal (artigo 41, parágrafo único, Resolução CFM nº 22/2018).

Sobre o tema, importante o ensinamento da dra. Fernanda Schaefer (SCHAEFER, 2019, p. 39): “A ortotanásia, portanto, não busca a morte, porque esse processo já está estabelecido. Visa, sim, a permitir a aceitação do fim da vida intermediada por cuidados que garantam conforto físico, psíquico e espiritual ao paciente, impondo-se a proporcionalidade dos tratamentos médicos”.

Princípios

Inclusive, o artigo 12 da Lei nº 14.758/2023 estabelece que os cuidados paliativos para pacientes com câncer devem estar acessíveis em todos os níveis de atenção à saúde, no âmbito da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. Este artigo se baseia em princípios essenciais que orientam a prática desses cuidados.

Spacca

O inciso I do artigo 12 da Lei nº 14.758/2023 estabelece como princípio proporcionar alívio para a dor e outros sintomas que possam comprometer a qualidade de vida do paciente. Por sua vez, os incisos II e IV desse mesmo artigo destacam a importância de reconhecer a vida e a morte como processos naturais, e de evitar a adoção de medidas para apressar ou adiar a morte. Esses princípios têm como objetivo evitar práticas que encurtem a vida, como a eutanásia, e prevenir o prolongamento excessivo da vida sem benefícios terapêuticos, conhecido como distanásia, visando sempre a qualidade de vida do paciente.

Os princípios delineados nos incisos II e IV do artigo 12 são fundamentais para proteger os pacientes contra práticas que possam abreviar a vida (eutanásia) ou prolongá-la de maneira inadequada (distanásia). A legislação é clara ao indicar a abstenção a essas práticas, garantindo que os tratamentos sejam focados no alívio do sofrimento e na preservação da dignidade do paciente durante todo o curso da doença.

A eutanásia é estritamente proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo considerada um ato antijurídico conforme o artigo 121, §1º do Código Penal, que trata do homicídio. Essa conduta é penalizada mesmo quando há consentimento do paciente, refletindo a posição legal de que qualquer forma de eutanásia, com o intuito de abreviar a vida de uma pessoa, é vedada e sujeita a sanções legais.

A distanásia, por sua vez, é uma prática desproporcional que busca evitar a morte a qualquer custo, muitas vezes à custa da qualidade de vida do paciente, prolongando a dor e o sofrimento em vez de proporcionar uma vida digna. Nas palavras da doutora Fernanda Schaefer (SCHAEFER, 2019, p. 39): “A distanásia não prolonga artificialmente a vida, e sim prolonga o processo de morrer, reduzindo a vida apenas a sua dimensão biológica, dissociada de qualquer análise qualitativa”.

Em contraste, os cuidados paliativos não têm como objetivo abreviar a vida (eutanásia) ou estendê-la indefinidamente (distanásia), mas sim melhorar a qualidade de vida do paciente. Esses cuidados focam no alívio do sofrimento, na gestão eficaz da dor e dos sintomas, e no apoio emocional e espiritual, proporcionando uma abordagem mais humana e digna para pacientes com doenças graves.

Como destacado por Cantarino, Pimentel e Cabral (2020, p. 91): “Obstinação terapêutica, que possui a possibilidade de ser interpretada como distanásia, visa o prolongamento da vida por meio da aplicação de tratamentos desproporcionais em pacientes terminais, sem agregar benefícios relevantes. Em contrapartida, os Cuidados Paliativos confrontam esse procedimento, atuando como uma alternativa humanizada para a distanásia, já que trazem luz à melhora da qualidade de vida do paciente de forma individual, sem seguir padrões e protocolos comuns a todos“.

Além disso, a Lei nº 14.758/2023 reforça a importância de oferecer terapias eficientes e menos invasivas para melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Os artigos 3º e 7º destacam a necessidade de incorporar tecnologias avançadas e alternativas terapêuticas mais precisas, baseando-se nas recomendações de órgãos governamentais e avaliações econômicas. Essas diretrizes asseguram que os pacientes recebam tratamentos que minimizem os efeitos colaterais e o sofrimento, promovendo uma abordagem centrada no bem-estar do paciente durante todo o curso da doença.

Sobrevida

A escolha pelos cuidados paliativos não se restringe ao respeito pelo final de vida, mas também pode visar a curabilidade. O tratamento paliativo busca oferecer respeito e dignidade ao paciente oncológico, evitando dor, sofrimento e tratamentos degradantes que possam ser considerados torturantes.

A lei é clara ao estabelecer que o tratamento não deve focar exclusivamente no aumento da sobrevida livre de progressão ou na longevidade, caso isso ocorra à custa da qualidade de vida do paciente, sob pena de se praticar a distanásia.

A sobrevida deve ser uma condição do tratamento que melhora o estado clínico do paciente e, acima de tudo, sua qualidade de vida. O tratamento deve ser escolhido levando em consideração o estado clínico do paciente, observando cada caso individualmente, especialmente quando há progressão da doença.

Em resumo, é crucial que os tratamentos ofertados sejam eficientes e adequados ao quadro clínico do paciente, sempre priorizando a qualidade de vida e evitando práticas que prolonguem o sofrimento. A legislação enfatiza a importância de uma abordagem terapêutica que seja não apenas eficaz, mas também humanizada, garantindo que cada paciente receba o melhor cuidado possível de acordo com suas necessidades específicas.

Precedentes

Inclusive, a busca pela eficácia do tratamento para o quadro clínico do paciente já encontra respaldo em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O STF, no julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175/CE, em 17 de março de 2010, estabeleceu critérios paradigmáticos para a solução judicial de casos envolvendo o direito à saúde. O relator, ministro Gilmar Mendes, concluiu que “deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.

O STJ complementa esse entendimento, afirmando que as prestações de saúde não devem ser aferidas apenas pela eficácia do fármaco, mas também pela inexistência ou inefetividade das opções terapêuticas viabilizadas pelo SUS. Esse entendimento é corroborado por diversos julgados, como o AgRg no AREsp 697.696/PR, AgRg no REsp 1.531.198/AL, AgRg no AREsp 711.246/SC e AgRg no AREsp 860.132/RS.

Adicionalmente, o Enunciado nº 92 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus), destaca que “na avaliação de pedidos de tutela de urgência, é recomendável considerar não apenas a indicação do caráter urgente ou eletivo do procedimento, mas também a condição clínica do demandante e as repercussões negativas do longo tempo de espera para a saúde e bem-estar do paciente. Isso reforça a importância de analisar cada caso individualmente, priorizando a eficiência e a adequação do tratamento ao quadro clínico específico do paciente.

Além disso, o Tema Repetitivo nº 106 do STJ, reforça a obrigação do Estado de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo essa tese, a concessão desses medicamentos exige a comprovação da imprescindibilidade do fármaco para o tratamento da doença, bem como a demonstração da ineficácia dos medicamentos já fornecidos pelo SUS. Essa abordagem sublinha a importância de priorizar tratamentos que sejam eficientes e adequados ao quadro clínico específico de cada paciente, garantindo assim o direito constitucional à saúde e à dignidade humana.

Avanço

Portanto, a eficácia das terapias e a abordagem centrada na qualidade de vida do paciente são fundamentais. A legislação e a jurisprudência convergem para assegurar que os tratamentos ofertados sejam não apenas cientificamente comprovados, mas também ajustados às necessidades individuais dos pacientes, garantindo sua dignidade e bem-estar ao longo do tratamento.

Em linha com esses princípios, o uso de fármacos e terapias eficientes, como proposto pela lei, pode até mesmo recuperar o quadro clínico do paciente. Não se deve adotar uma abordagem que leve em conta apenas a evidência científica de estudos em grupo, que afirmam que a resposta ao medicamento gera qualidade de sobrevida. Em muitos casos, as respostas terapêuticas podem superar as expectativas científicas, proporcionando uma recuperação significativa do quadro clínico, ofertando acima de tudo qualidade de vida.

Dessa forma, os cuidados paliativos, conforme estabelecido pela Lei 14.758/2023 e orientações do SUS, representa um avanço crucial na abordagem do cuidado oncológico no Brasil. Ao priorizar a dignidade da pessoa humana e a qualidade de vida, ele não apenas alivia o sofrimento físico e emocional dos pacientes, mas também evita práticas consideradas torturantes e degradantes. Essa legislação fortalece o compromisso com tratamentos humanizados e éticos, respeitando as vontades individuais e necessidades específicas de cada paciente.

A dignidade humana não se limita ao fim da vida, mas permeia todos os estágios do tratamento, seja para casos de curabilidade, seja quando o fim da vida é inevitável, ou para casos de ortotanásia. É um princípio que impacta não apenas o paciente, mas também aqueles que o cercam, promovendo uma abordagem compassiva e cuidadosa diante das adversidades enfrentadas.

Para avançar nesse campo, é essencial investir em educação e disseminação de informações sobre cuidados paliativos, garantindo que todos os pacientes tenham acesso a tratamentos que respeitem sua dignidade e proporcionem conforto até mesmo nos momentos mais difíceis da jornada oncológica. Ao fazer isso, estamos não apenas cumprindo normativas legais, mas também promovendo uma sociedade mais justa e empática, em que cada indivíduo possa viver e morrer com dignidade.

 


Referências

CANTARINO, Ana Claudia Wincler Reis. PIMENTEL, Klara Viceconte Tardin. CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. Os imprecisos limites do cuidar. In: LÓSS, Juliana da Conceição Sampaio. DIAS, Vinícius Evangelista. CABRAL, Hildeliza Boechat. Cuidados Paliativos em Abordagem Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Brasil Multicultural, p. 89-102. 2020.

SCHAEFER, Fernanda. A Importância da Implantação dos Cuidados Paliativos no Sistema Único de Saúde. R. Dir. sanit., São Paulo v.20 n.3, p. 26-50, nov. 2019/fev. 2020.

Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 41, de 31 de Outubro de 2018. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cit/2018/res0041_23_11_2018.html (Acesso 02/07/2024).

 

 

 

 

 

 

Autores

  • é advogado atuante na área da saúde, sócio-administrador do escritório Francisco Cristóvão Advogados Associados, pós-graduando em Direito Médico e da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e pós-graduado em Direito da Aduana e Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), campus Itajaí, autor de artigos jurídicos e membro consultivo da Comissão de Direito da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional do Estado de Santa Catarina.

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