Opinião

Reforma tributária: questão federativa nos PLPs 68 e 108

Autores

  • Hamilton Dias de Souza

    é advogado sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados e mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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  • Humberto Ávila

    é fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.

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  • Ives Gandra da Silva Martins

    é professor emérito das universidades Mackenzie Unip Unifieo UniFMU do Ciee/O Estado de S. Paulo das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor honorário das Universidades Austral (Argentina) San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia) doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS catedrático da Universidade do Minho (Portugal) presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

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  • Roque Antônio Carrazza

    é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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6 de julho de 2024, 7h05

A EC 132/2023 previu a substituição do ICMS, ISS, PIS e Cofins por um novo sistema de tributação do consumo, mais simples, racional e alinhado à prática internacional.

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Nesse sistema, a tributação geral do consumo será dual, com um Imposto (subnacional) e da Contribuição (federal) sobre Bens e Serviços, IBS e CBS, instituídos por lei complementar e praticamente idênticos entre si.

Eles serão administrados pelo Comitê Gestor do IBS (CG) e pelo fisco federal, cabendo aos entes federados definir suas alíquotas padrão. Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimular consumos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI, mantido apenas para produtos da Zona Franca de Manaus.

A dualidade substitui a ideia original de um único IBS compartilhado entre os entes, que, como alertamos desde os primórdios da PEC 45/2019 [1], seria inconstitucional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadação estadual) e o ISS (43% da municipal) [2], deixando o novo imposto a critério do Congresso, afetaria a autonomia financeira dos entes [3].

Contudo, após a alteração, apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas formal, sem garantir um nível satisfatório de autonomia aos entes [4], o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal, segundo os PLPs, os entes serão subalternos ao CG, que, por sua vez, ficará na dependência da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS. E isso os enfraqueceria, amesquinhando a Federação, o que é vedado.

De fato, a EC teve o propósito de recuperar a racionalidade do sistema tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS precisa ser estruturada de modo a atender à simplicidade, transparência, justiça e cooperação(CF, artigo 145, §3º). E isso implica que, além de duais, os tributos têm de ser uniformes,tanto em seus aspectos legais (mesmas regras de incidência) quanto administrativos, com regulamentos, interpretações, obrigações e procedimentos harmônicos (CF, artigos 149-B, artigo 156-B e 195, §16).

Consequentemente, a lei complementar deve dispor sobre a matéria de modo a garantir suficiente autonomia dos estados e municípios (dualidade), mas, ao mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformidade) para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem ou mal, funciona.

De fato, “a repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes” (STF, RE 591.033, DJ 24/02/11), pois consagra a descentralização e“divisão de centros de poder”no País (ADI 4.228, DJ 10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso relativizá-las“ou afastá-las”, o que ofenderia “o pacto federativo” e seria tendente a aboli-lo”, o que é vedado (ADI 926, DJ 6/5/94).

Em nosso sistema, competência tributária é o poder do ente para instituir seu tributo por lei própria. Ela não se confunde com a capacidade administrativa de arrecadá-lo ou alterar-lhe a alíquota, que é delegável, sem que isso o torne de competência de quem a exerce, ao invés do órgão legislativo que o cria.Só há competência tributária se o ente pode criar / modificar o tributo quando conveniente [5].

No caso, há indicativos de que estados e municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma tanto da competência quanto da capacidade tributária.

A teor da EC, a instituição e a estrutura do IBS serão definidas junto com as da CBS, por lei complementar de iniciativa federal, editada pelo Congresso, ou seja, por veículo e órgão legislativos da União. Assim, ela passará a deter competência para dispor sobre estrutura do tributo, o que, hoje, os entes fazem por leis próprias.

Competência compartilhada

Segundo os idealizadores da EC, isso seria possível por tratar-se de competência compartilhada, a permitir que tributos “distintos” sejam criados por uma lei complementar comum, de caráter “nacional”. Todavia, nacionais são leis complementares de normas gerais para regular a competência dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam tributo são leis instituidoras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela excepcionalidade do gravame (CF, artigo 148 e 154, I).

Além disso, inúmeras prerrogativas inerentes à capacidade administrativa, hoje exercidas pelos entes sozinhos, serão centralizadas no CG. Este, por sua vez, ficará sujeito à União, ao ter de entrar em acordo com ela, nos temas submetidos a harmonização. Estados e municípios, sozinhos, poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão e fiscalizar e lançar o IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do CG.

Em âmbito infraconstitucional, os PLPs acentuam o risco de centralização, pois, ao preverem estrutura idêntica, evidenciaram a unicidade de fato do IBS/CBS. É dizer: não serão dois, mas um único tributo, cuja dualidade operará não na competência (legislativa), mas na destinação dos recursos e em frações da capacidade de administrar o tributo.

Além disso, apesar de a representação paritária dos estados e municípios sugerir certa independência do CG, o âmbito para atuação autônoma do órgão será estreito, pois todos os temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União. Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimentais secundários.

Essa harmonização ocorrerá, conforme a matéria (infralegal/administrativa e/ou jurídica), nos chamados Comitê das Administrações Tributárias e Fórum das Procuradorias. Ainda que a União e o CG tenham 50% dos votos cada,não haverá verdadeiro equilíbrio de forças. Afinal, o interesse da União tende a ser linear, enquanto os dos representantes do CG não o serão, pois terá de haver representação satisfatória dos estados do Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos Municípios.

Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG se apresentará como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com interesses conflitantes. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos para exercer liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já faz outras esferas. Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de maioria a ser observada nessas votações, o que ficou para um futuro regimento, apesar do seu impacto sobre a Federação.

Portanto, a prevalecerem os PLPs, a estruturação do sistema previsto na EC pode reduzir perigosamente a autonomia dos estados e municípios, a ponto de redefinir, para pior, a qualidade da Federação brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que hoje possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferiorizados, ao ficar abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da União.

Nesse cenário, embora ainda não se possa afirmar que a seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a capacidade dos estados e municípios de custear suas atividades e serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do modelo, com os custos daí decorrentes para o país.

_________________________

[1] SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto B.; e CARRAZZA, Roque A. A reforma tributária que o Basil precisa, parte 1. CONJUR, 08/11/2019.

[2] Vide dados do Tesouro Nacional citados no parecer de admissibilidade da PEC 45/2019 apresentado pelo Dep. Fed. João Roma à CCJ/CD.

[3] Vide, p. ex., Substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro à PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados (fase I).

[4] SILVA MARTINS, Ives G.; SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto; e CARRAZZA, Roque. Considerações necessárias sobre a reforma tributária. Portal Tributário, 03/07/2023.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.

Autores

  • é sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

  • é professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo; doutor em Direito Tributário pela Universidade de Munique; advogado e parecerista.

  • é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

  • é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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