Opinião

Relatório mostra a litigiosidade na Justiça do Trabalho e a justiça gratuita

Autor

  • Rogério Neiva

    é juiz do Trabalho da 10ª Região ex-juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST e da Presidência do CSJT mestre e doutor em ciências do comportamento (UnB) e autor do livro Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista.

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5 de julho de 2024, 7h01

Recentemente foi publicado o “Relatório Geral Estatístico da Justiça do Trabalho”, retratando o cenário de 2023. E um dos dados que comporta reflexão consiste no avanço da quantidade de ações ajuizadas.

Não é de hoje a compreensão, ou constatação, de que não há como produzir ciência com neutralidade e isenção.  Mas ao mesmo tempo isso não impede que se tente observar fenômenos e dados sem entrar no debate político relacionado a esses mesmos fenômenos.

O tema da litigiosidade, principalmente envolvendo a Justiça do Trabalho, conta com potencial para ser objeto do debate político. Porém, essa condição não afasta a tentativa de observação das características do presente fenômeno de forma isenta, principalmente considerando a recente publicação do Relatório Geral da Justiça do Trabalho de 2023.

Dentre os dados relacionados à litigiosidade, seguramente um dos mais importantes corresponde ao volume de ações ajuizadas. Observando o gráfico quanto ao período de 2017 a 2023, constata-se uma linha descendente de maior inclinação (2017 a 2020), seguida por uma linha ascendente de menor inclinação (de 2021 a 2023), conforme a imagem a seguir [1].

Reprodução

Um fator que pode estar influenciando e ajudar a entender os dois movimentos corresponde ao tratamento da justiça gratuita, ou ao menos a percepção desse tratamento.

Reforma trabalhista

A Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), vigente a partir de novembro de 2017, havia estabelecido que o beneficiário da justiça gratuita poderia ter seu crédito comprometido para pagamento de honorários advocatícios e periciais (artigos 790-B, § 4º e artigo 791-A, §4º). Em outubro de 2021, ao julgar a ADI 5.766, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais as referidas regras.

O aumento ou diminuição de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho podem ser causados ou influenciados por diversas variáveis, conhecidas e desconhecidas. E por conta disso não seria possível afirmar que a explicação para o referido movimento de diminuição e posterior aumento das ações trabalhistas corresponda exclusivamente à justiça gratuita.

Porém, há outro dado que pode ajudar a entender o fenômeno, também divulgado no último Relatório Geral. Trata-se do aumento das improcedências totais, situação na qual se conclui que nada é devido ao reclamante.

Tanto em 2022, quanto em 2023, cerca de 62% das sentenças proferidas foram de procedência parcial, situação na qual há algum direito reconhecido, e outros rejeitados. Quanto às situações de procedência total e improcedência total, em 2022 15,1% dos casos foram de procedência total e 22,9% de improcedência total, enquanto em 2023 foram 13,7% de procedência total e 24,3% de improcedência total.

Logo, houve aumento na quantidade de processos em que se concluir não haver nenhum direito devido, aumento esse que em termos absolutos correspondeu precisamente a 25.668 processos. Ou seja, ainda em termos absolutos, em 2022 houve 196.201 processos nos quais se concluiu que nada era devido, enquanto em 2023 houve 221.869 processos nos quais se concluiu que nada era devido.

Portanto, aumentaram as ações e também aumentaram as sentenças de improcedência total.

Outro dado que poderia influenciar o volume de ações ajuizadas na Justiça do Trabalho seria a quantidade de desligamentos de empregados, isto é, o possível impacto do mercado de trabalho, envolvendo a perda do emprego.

Comparando os desligamentos registrados no Caged [2] e as ações ajuizadas [3], temos o seguinte cenário quanto aos últimos anos [4]:

Reprodução

Os referidos dados indicam que, em termos relativos, em 2023 aumentou mais o ajuizamento de ações (12,5%), do que os desligamentos (5,4%). E outra constatação é que que enquanto em 2022 as ações ajuizadas correspondiam a 7,9% dos desligamentos, em 2023 passou a ser 8,4%. Assim, haveria alguma dificuldade para explicar o aumento das ações ajuizadas com base no mercado de trabalho.

Com isso é possível considerar que: (1) houve aumento no volume de ações ajuizadas em 2023; (2) houve aumento no volume de sentenças nas quais se constatou que nada seria devido ao autor da ação; (3) os desligamentos, em termos proporcionais, cresceram menos que as ações ajuizadas.

Portanto, considerando os dados apontados, é possível que o aumento das ações na Justiça do Trabalho seja explicado pelo tratamento dado à justiça gratuita. Ao mesmo tempo isso não afasta a possibilidade de que outras variáveis ajudem a entender o fenômeno.

A única certeza é de que o tema exige atenção, estudo e reflexão.

 

________________

[1] Fonte: Relatório Geral da Justiça do Trabalho de 2023.  Imagem extraída do Relatório geral com destaque realizado pelo autor. [https://tst.jus.br/documents/10157/2374827/RGJT.pdf/6f862c0f-9272-8319-89eb-7e8ff063ecab?t=1719859755306].

[2] Fonte: CAGED – Ministério do Trabalho. [http://pdet.mte.gov.br/caged].

[3] Fonte: Relatório Geral da Justiça do Trabalho de 2023. [https://tst.jus.br/documents/10157/2374827/RGJT.pdf/6f862c0f-9272-8319-89eb-7e8ff063ecab?t=1719859755306].

[4] Planilha organizada pelo autor.

Autores

  • é juiz do Trabalho, autor do livro "Técnicas e Estratégias de Negociação Trabalhista” (4ª edição), foi juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST, integrou a Comissão Nacional de Promoção à Conciliação do CSJT e o Comitê Gestor da Conciliação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Mestre e doutor em Ciências do Comportamento (UnB).

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