Opinião

Reforma do Código Civil: novos contornos da impenhorabilidade do bem de família

Autores

  • Regiane França Liblik

    é associada no Wambier Yamasaki Bevervanço Lima & Lobo Advogados. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (FDUC).

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  • Daiane Rompava

    é advogada sênior do escritório Wambier Yamasaki Bevervanço & Lobo Advogados pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e em Responsabilidade Civil pela Fundação Arcadas (USP) membro da Comissão de Direito Bancário da OAB/SP e bacharel em Direito pela UFPR.

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2 de julho de 2024, 7h03

A impenhorabilidade do bem de família, desde sua instituição pela Lei nº 8.009/90, tem sido objeto de inúmeros debates tanto no plano da doutrina quanto no da jurisprudência. Segundo dispõe o artigo 5.º da referida lei, considera-se bem de família, para fins de aplicação da regra da impenhorabilidade, o “único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente”, nele incluídos a construção, as plantações, as benfeitorias, os móveis que guarnecem a residência e todos os equipamentos, ainda que para uso profissional, desde que quitados.

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Além do bem de família legal, de que trata a Lei nº 8.009/90, os artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil disciplinam o bem de família convencional, estabelecendo a possibilidade de destinação, pelos cônjuges, pela entidade familiar ou por terceiro, por meio de escritura ou pela via testamentária, de até um terço do patrimônio líquido para instituição do bem de família.

A Lei nº 8.009/90, em seu artigo 2.º, ao regulamentar a matéria, excluiu da regra da impenhorabilidade os veículos de transporte, as obras de arte e os artigos suntuosos. Nada disse, contudo, a respeito de imóveis avaliados em valores expressivos. Essa omissão legislativa abriu margem para divergentes interpretações, especialmente do ponto de vista da ponderação dos valores envolvidos e do equilíbrio das execuções.

Na doutrina, alguns autores defendem a interpretação da redação legal em sua literalidade, reputando que não se poderia flexibilizar a regra para penhora de bem imóvel de valor exorbitante, mesmo que seja preservada parcela do montante adquirido com a venda para que o devedor adquira outro imóvel, de menor valor.

Mas também houve autores sustentando que a relativização da regra da impenhorabilidade, nesses casos, com manutenção do valor necessário para aquisição de outra moradia, se afiguraria mais consentânea com a nova realidade econômica e proporcionaria mais adequado balanceamento dos valores da execução, compatibilizando o direito à moradia e o menor sacrifício do devedor com o direito do credor de receber a efetiva tutela executiva.

Esse entendimento se assenta na compreensão de que o objetivo da lei nunca foi assegurar ao devedor a preservação do luxo. O propósito do legislador, ao limitar o alcance da responsabilidade patrimonial do devedor com a inatingibilidade da residência familiar, foi salvaguardar o direito à moradia e o mínimo patrimonial para a existência digna.

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Apesar disso, a jurisprudência dos tribunais superiores seguiu majoritária no sentido de que o elenco de hipóteses de afastamento da impenhorabilidade — contido no artigo 3.º da Lei nº 8.009/90 — não contempla os imóveis de elevado valor, de modo que não se poderia, por lastro interpretativo, mitigar a impenhorabilidade desses bens.

Proteção no texto da lei

Já no âmbito dos tribunais estaduais, o entendimento jurisprudencial não é unânime.

De um lado, há Câmaras que entendem que, independentemente do valor do imóvel (isto é, ainda que ultrapasse quantia milionária), inexiste qualquer tipo de excepcionalidade ao bem da família, que deverá ser protegido irrestritamente e dentro da literalidade do texto da lei.

De outro, há aquelas que consideram possível a mitigação da impenhorabilidade de bem familiar. Há casos em que determinam o desmembramento da matrícula do imóvel rural para que o credor realize a penhora, desde que não viole a parte da propriedade utilizada para domicílio familiar. Mas há outros nos quais, em razão do valor, o órgão julgador autoriza a penhora do próprio imóvel, devolvendo-se ao devedor parte do percentual para aquisição de nova moradia. De maneira geral, entende-se que a mudança para imóvel de menor valor em nada afetaria o direito à moradia ou a dignidade do devedor e de sua família.[1]

O anteprojeto de reforma do Código Civil, buscando corrigir os equívocos da disciplina legal em vigor — que favorece o calote e desprotege o credor — e conferindo melhor compatibilização do direito fundamental do credor à efetiva tutela executiva com os direitos do devedor à moradia e à satisfação de sua obrigação da forma que menos lhe onere, propõe a inclusão no Código do artigo 391-A.

Na redação proposta para os §§ 1.º e 2.º do artigo 391-A, o anteprojeto trata do que considera ser o patrimônio mínimo existencial da seguinte forma:

  1. o salário-mínimo e os benefícios previdenciários;
  2. o imóvel no qual residem o devedor e sua família, quando for único em seu patrimônio;
  3. o módulo rural onde o devedor produz e reside com sua família, desde que seja seu único imóvel;
  4. a sede da pequena empresa familiar e os bens que a guarnecerem e que estiverem resguardados pela lei processual, quando coincidir com a única residência do devedor e de sua família; e
  5. os bens dedicados à acessibilidade e à superação de barreiras para o pleno exercício dos direitos de pessoa com deficiência.

Com toda a certeza, tais disposições exigirão profundas reflexões para que a elas se confira a melhor e mais adequada interpretação. Um dos pontos que exigirão cuidadosa análise diz respeito ao § 3.º do artigo 391-A. Segundo a redação proposta, a moradia de alto padrão ou luxo pode ser objeto de penhora para satisfação do crédito, desde que respeitado o limite de até cinquenta por cento do seu valor de mercado, subsistindo a impenhorabilidade sobre a outra metade. Isso significa que, se o bem de família do devedor estiver avaliado em R$10.000.000,00, por exemplo, uma vez efetivada a penhora sobre metade, ainda lhe restará o valor de R$5.000.000,00 para aquisição de um novo imóvel.

Evidentemente, para a aplicação da nova regra no plano concreto, a doutrina e a jurisprudência terão de enfrentar diversos desafios relacionados à delimitação dos alcances da penhora, especialmente do ponto de vista dos critérios que serão utilizados para categorização dos imóveis de alto padrão.

Ainda outros questionamentos deverão ser objeto de maior reflexão:

  1. Haverá parâmetros legais acerca do valor do imóvel para aplicação da norma?
  2. O posicionamento de mercado da construtora a respeito do enquadramento do imóvel na categoria de alto padrão será relevante para esse fim?
  3. O limite máximo de 50% será aplicado conforme o valor da dívida, buscando-se satisfazer ao máximo o direito do credor, ou a definição do percentual se realizará conforme a discricionariedade de cada magistrado?

Ao que nos parece, o mais adequado será a efetivação da penhora até o tanto quanto possível para satisfação da integralidade do crédito, respeitando-se o limite legal de 50% do valor do bem. Para a correta aplicação da norma, será necessária a delimitação legal do enquadramento na categoria de alto padrão conforme o mercado imobiliário de cada localidade, a partir, por exemplo, de regulamentação municipal que estabeleça tais parâmetros.

Outro ponto de preocupação serão as possíveis artimanhas criadas por devedores para driblar a nova disposição, a exemplo da constituição de sede de pequena empresa apenas e tão somente para assegurar a impenhorabilidade de todo o imóvel residencial.

Seja como for, a nova disposição, ainda que traga desafios interpretativos aos operadores do direito, se não sofrer substanciais alterações no curso do processo legislativo, representará um grande avanço na efetividade das execuções, que hoje representam a grande maioria dos processos em trâmite no País e a etapa processual com maior lentidão no Poder Judiciário.

 


[1] Ver por todos: TJ-SP. Agravo de Instrumento 2075933-13.2021.8.26.0000. Relator (a): Ademir Modesto de Souza. 16ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional III – Jabaquara – 4ª Vara Cível. Data do Julgamento: 08/06/2021. Data de Registro: 05/07/2021.

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  • é associada no Wambier, Yamasaki, Bevervanço, Lima & Lobo Advogados. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (FDUC).

  • é advogada sênior do escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados, pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e em Responsabilidade Civil pela Fundação Arcadas (USP), membro da Comissão de Direito Bancário da OAB/SP e bacharel em Direito pela UFPR.

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