Opinião

A origem dos trusts no direito inglês e seu uso no Brasil

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26 de junho de 2024, 17h27

O trust é um instrumento de planejamento patrimonial cujo surgimento remonta ao período medieval inglês. Amplamente utilizado em arranjos patrimoniais internacionais, seu uso tem crescido no Brasil devido à sua utilidade na destinação de bens e na eficiência tributária, por exemplo.

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Não se trata de uma empresa, mas um contrato, chamado de trust deed. Nele participam: (i) o instituidor (settlor), que destina os ativos para formar o trust; (ii) o administrador (trustee), que gere o trust conforme as regras estabelecidas pelo settlor; (iii) o(s) beneficiário(s) (beneficiary), que recebem os ativos conforme os eventos fixados no trust deed, como o falecimento do settlor; e (iv) o protetor (protector), uma figura opcional designada pelo settlor para proteger os interesses dos beneficiários.

No trust deed, as partes estabelecem as regras que regerão o trust e o settlor fixa as suas pretensões com relação aos ativos destinados, que compõem o trust fund. O trust pode ser irrevogável ou revogável. No primeiro, o settlor transfere os ativos ao trustee de forma definitiva, não sendo possível reaver os bens após a constituição do trust. Já o trust revogável permite que o settlor possa revogar o trust e retomar os bens transferidos ao trustee. Dependendo do regime, as dinâmicas tributárias e de direito de propriedade variam.

Entender essa estruturação sob a ótica jurídica brasileira parece complexo, pois a origem do trust é baseada no direito inglês, que permite a divisão dos direitos da propriedade em propriedade legal e beneficiária, conforme adiante abordado. O sistema de common law, flexível e baseado em precedentes judiciais, contrasta com o direito brasileiro de origem romano-germânica, regido pela civil law e pela legislação codificada. Todavia, isso não obsta a adesão dos brasileiros ao uso dos trusts, mas pode demandar uma atenção especial a algumas outras regras locais.

Sistema common law

Com o declínio do feudalismo, o direito de propriedade começou a tomar forma, variando conforme o sistema jurídico inserido — civil law ou common law. A possibilidade de fragmentar o conceito de propriedade, conforme inicialmente mencionado, é uma das principais diferenças entre ambos os sistemas.

Em breves palavras, nos países regidos pela common law utiliza-se o conceito de “ownership”, cuja constituição alcança duas esferas, quais sejam, a noção de propriedade como domínio físico/jurídico sobre o bem, e outra de titularidade sobre os direitos e obrigações inerentes ao objeto da ownership, as quais são denominadas “legal ownership” e “equitable ownership”, respectivamente.

A ideia de legal ownership exprime maior relevância perante terceiros do que perante o bem em si, haja vista que aquele que o detém para efeitos legais e notariais é considerado como proprietário, ao passo que sua relação com o bem é exclusivamente obrigacional. Dessa forma, a legal ownership garante, ao mesmo tempo, a propriedade legal do bem ao trustee e a obrigação de zelar e gerir este em prol de outrem.

Por sua vez, a equitable ownership representa a “propriedade” dentro de uma relação direta entre o proprietário e o bem, já que não garante a propriedade para efeitos legais (o que interfere na forma como terceiros enxergam quem é o proprietário do bem), mas sim o direito intrínseco de gozar dos frutos dele decorrentes.

Nos trusts, com a criação do trust fund, ocorre a transferência da propriedade do settlor para o trustee, mas os beneficiários usufruem dos direitos inerentes aos bens. O trustee detém a propriedade legal, mas em favor dos beneficiários, que têm a propriedade dos frutos referentes aos bens — equitable ownership.

Direito de propriedade

Em tendo o sistema jurídico brasileiro influência do direito romano-germânico, a propriedade, ao contrário do direito inglês, tem sua noção na indivisibilidade, encontrando-se atrelada ao conceito de “domínio” sobre determinado bem, isto é, “autoridade” direta, imediata e exclusiva sobre a coisa. É, ainda, considerada um direito real, o que significa dizer que é absoluto, exercitável erga omnes, caracterizado pela inerência ou aderência do titular à coisa.

Apesar das diferenças e da falta de regulamentação dos trusts no Brasil, os brasileiros não têm óbices para a sua utilização, podendo figurar na posição de instituidor ou beneficiário. Haverá, todavia, reflexos a serem considerados, como os de ordem tributária, com especial atenção à nova a Lei nº 14.754/2023 (“Lei das Offshores”).

Verifica-se que a adoção dos trusts por brasileiros pode se mostrar uma ferramenta bastante interessante para fins de planejamento patrimonial e sucessório, apesar das questões apontadas. É essencial, todavia, considerar as especificidades aplicáveis do ordenamento jurídico brasileiro, que vão além das que foram aqui mencionadas, como as concernentes aos direitos de família e sucessão.

Por fim, releva mencionar que a legislação brasileira já tem tentado alcançar o instituto do trust. Ao menos sob os aspectos tributários, a já em vigor Lei das Offshores trouxe, além de alguns conceitos básicos, parâmetros objetivos para consideração do momento e forma de sua tributação. Além disso, a lei aplicável ao trust e sua eficácia no Brasil também são objetos do Projeto de Lei Complementar nº 145/2022, ainda em discussão pelo Congresso.

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