Opinião

O exame judicial da classificação fiscal de mercadorias (parte 2)

Autor

  • Simone Anacleto

    é pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV e em Direito e Economia pela UFRGS mestre em Direito do Estado pela UFRGS e procuradora da Fazenda Nacional.

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4 de julho de 2024, 6h06

Demonstrado aqui no artigo anterior que a classificação fiscal de mercadorias é uma atividade eminentemente jurídica, ainda que dependa de subsídios técnicos para a averiguação das condições físicas e funcionais das mercadorias, no presente texto, pretende-se avançar em dois outros aspectos:

  1. a) evidenciar que, no âmbito administrativo, essa atividade insere-se na competência privativa da Secretaria da Receita Federal; e

  2. b) demonstrar que, em qualquer âmbito, as perícias técnicas que visam a fornecer subsídios para a classificação fiscal de mercadorias possuem um escopo limitado. [1]

Com frequência surgem dúvidas sobre as características técnicas das mercadorias passíveis de classificação fiscal, o que conduz à determinação de realização de perícias técnicas. Sobre esse assunto, o Decreto nº 70.235/1972, que, vale lembrar, possui força de lei ordinária, é expresso ao consignar:

Art. 30. Os laudos ou pareceres do Laboratório Nacional de Análises, do Instituto Nacional de Tecnologia e de outros órgãos federais congêneres serão adotados nos aspectos técnicos de sua competência, salvo se comprovada a improcedência desses laudos ou pareceres.

Não se considera como aspecto técnico a classificação fiscal de produtos. (o grifo não consta do original)

Ora, a razão implícita nessa norma é de fácil apreensão: uma coisa é consultar um especialista, como um químico ou um engenheiro, para respectivamente, por exemplo, atestar-se sobre a composição química de um determinado produto ou sobre todos os componentes de uma dada máquina.

Reprodução

Outra coisa, bem distinta, é a partir dessas características técnicas examinarem-se todas as regras gerais do Sistema Harmonizado, além das demais normas aplicáveis, para, por fim, chegar-se à adequada classificação fiscal de uma mercadoria.

Esta última atividade, em nosso ordenamento jurídico, na esfera administrativa, é reservada à competência da Secretaria da Receita Federal, o que já poderia ser depreendido da redação do artigo 237 da Constituição:

Art. 237. A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda.

De outro lado, confira-se o que atualmente preceitua o Regimento do Ministério da Fazenda, aprovado pelo Decreto nº 11.907/2024, pelo inciso XIX do artigo 27 do Anexo I:

Art. 27.  À Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil compete:

XIX – dirigir, supervisionar, orientar, coordenar e executar as atividades relacionadas com a nomenclatura, a classificação fiscal e econômica e de origem de mercadorias, inclusive para representar o País em reuniões internacionais sobre a matéria; (o grifo não consta do original)

No passado, de acordo com o Decreto nº 766/1993, estava inclusive delegada ao Secretário da Receita Federal a competência para aprovar alterações na Nomenclatura do Sistema Harmonizado:

Art. 1º A Nomenclatura do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, promulgada pelo Decreto n° 97.409, de 23 de dezembro de 1988, fica alterada na forma do anexo a este Decreto.

Art. 2º As futuras alterações à referida nomenclatura serão aprovadas pelo Secretário da Receita Federal, do Ministério da Fazenda.

Art. 3° As alterações à Nomenclatura do Sistema Harmonizado, aprovadas na forma do artigo anterior, ficarão automaticamente incorporadas à Nomenclatura Brasileira de Mercadorias (NBM), à Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (Tipi) e à Tarifa Aduaneira do Brasil (TAB).

Art. 4° As alterações introduzidas na Nomenclatura Brasileira de Mercadorias (NBM), a partir do sétimo dígito, ficarão automaticamente incorporadas à Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (Tipi) e à Tarifa Aduaneira do Brasil (TAB).

Atualmente, como o Brasil, na verdade, vincula-se à Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), é do Comitê Executivo de Gestão da Câmera de Comércio Exterior (Camex) a competência para alterá-la, consoante o Decreto nº 11.428/2023:

Art. 6º  Ao Comitê-Executivo de Gestão compete:
(…)
V – alterar, na forma estabelecida nos atos decisórios do Mercado Comum do Sul – Mercosul, a Nomenclatura Comum do Mercosul;

Em todo o caso, na medida em que a fiscalização do Imposto de Importação e do IPI compete aos Auditores Fiscais da Receita (artigos 142, 194 e 196 do CTN, artigos 91 e 93 da Lei nº 4.502/1964, artigo 6º da Lei nº 10.593/2002, e artigos 2º e 9º da Lei nº 11.457/2007), isso naturalmente abrange a verificação das classificações fiscais e alíquotas utilizadas pelos contribuintes desses tributos.

Enfatize-se: embora a competência para alterações na NCM tenha passado para a Camex, a sua interpretação e aplicação para fins de classificação fiscal de mercadorias, tanto no que se refere ao Imposto de Importação, como no que diz com o IPI, continuam privativas da Receita.

Ainda importante referir que, no que tange às consultas acerca da classificação fiscal de mercadorias, compete à Receita solucioná-las, nos termos dos arts. 48 e 50 da Lei nº 9.430/1996. Referidas consultas devem observar as disposições da Instrução Normativa RFB nº 2.057/2021, que, em seu artigo 33, estabelece que a Solução de Consulta, a partir da data de sua publicação, tem efeito vinculante no âmbito da Receita e respalda qualquer sujeito passivo que a aplicar, independentemente de ser o consulente, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento.

Destarte, embora não haja no Código de Processo Civil uma regra similar à do artigo 30 do Decreto nº 70.235/1972, a compreensão da legislação, em seu conjunto, impõe a conclusão de que também o Poder Judiciário, ao examinar laudos periciais ou opiniões de outros órgãos técnicos, deve reconhecer que a atividade de classificação fiscal de mercadorias, em si, é privativa dos auditores da Receita e não se confunde com a mera descrição técnica, por mais especializada que seja, dessas mesmas mercadorias.

Afinal, repita-se, uma coisa é analisar o funcionamento, o desempenho, as características físicas e/ou químicas de uma mercadoria. Outra é proceder propriamente à classificação de mercadorias à luz do sistema internacional que foi incorporado em nosso ordenamento jurídico e que rege a matéria consoante regras e princípios próprios.

Destaque-se que a não observância de tais regras, a um só tempo, implica ofensa à legislação nacional e igualmente à internacional da qual ela se deriva.

Por oportuno, destaque-se que o reconhecimento de que, na esfera administrativa, a classificação fiscal de mercadorias é privativa dos auditores da Receita não significa que tal atividade não seja passível de revisão pelo Poder Judiciário. Até porque se, como afirmado, ela depende de interpretação e aplicação da legislação pertinente a cada mercadoria, sem dúvida, é uma atividade de cunho jurídico que pode ser submetida ao crivo do Poder Judiciário, face ao princípio constitucional da inafastabilidade do controle judicial (artigo 5º, inciso XXXV, da CRFB/88).

Por outro lado, importante ressaltar, outrossim, que, mesmo no âmbito da Secretaria da Receita Federal, a atividade de classificação de mercadorias é considerada altamente especializada e complexa, pois, a par das dificuldades naturais decorrentes da interpretação de qualquer conjunto de normas, nesse caso há uma normatização derivada de uma convenção internacional, com sua linguagem específica e expressões distintas das usualmente adotadas pela legislação interna.

Além disso, a quantidade de regras é bastante grande se se leva em conta que, muito além das Regras Gerais do Sistema Harmonizado, há todas as Notas de Seção, de Capítulo e de Subcapítulo a serem consideradas, além das Notas Explicativas do Sistema Harmonizado (Nesh). Por fim, é preciso estar sempre acompanhando os pareceres vinculantes emitidos pela Organização Mundial das Aduanas (OMA)  uma espécie de “jurisprudência internacional” própria da classificação de mercadorias, bem como as Soluções de Consulta e de Divergência já proferidas pela própria Receita.

Nesse cipoal normativo, com alguma frequência, chega-se a classificações que parecem destoar das noções comuns ou mesmo especializadas sobre determinadas mercadorias. No Parecer Normativo Cosit nº 6/2018 [2], há um exemplo muito ilustrativo na seguinte passagem:

  1. A título de exemplo de situação em que pode haver conflito entre definições técnicas e a legislação sobre classificação fiscal para fins tributários e aduaneiros, observe-se que, do ponto de vista de um engenheiro, um conjunto de componentes destinados à montagem de uma bicicleta, apresentado em uma caixa, não pode ser identificado como bicicleta, porquanto falta a reunião do conjunto, segundo as especificações do fabricante. Entretanto, sob a perspectiva da legislação que rege a classificação fiscal, de acordo com a Regra Geral para Interpretação do SH nº 2, “a” (RGI-2a), a seguir transcrita, uma bicicleta que seja vendida desmontada classifica-se em código próprio para bicicletas prontas e completas; vale dizer, será tratada, nesse âmbito específico, como bicicleta.

REGRA 2 a) Qualquer referência a um artigo em determinada posição abrange esse artigo mesmo incompleto ou inacabado, desde que apresente, no estado em que se encontra, as características essenciais do artigo completo ou acabado. Abrange igualmente o artigo completo ou acabado, ou como tal considerado nos termos das disposições precedentes, mesmo que se apresente desmontado ou por montar.

Na verdade, para os efeitos específicos da classificação de mercadorias, faz todo o sentido que assim seja. Cumpre recordar que o Sistema Harmonizado de classificação de mercadorias surgiu exatamente para uniformizar a linguagem, em nível internacional, para fins de facilitar o comércio internacional.

Por decorrência, muito embora uma bicicleta desmontada não seja considerada propriamente uma bicicleta por um engenheiro, para fins de classificação fiscal, deverá ser tratada como a bicicleta montada e completa.

E, se assim não for compreendido, deixa de fazer qualquer sentido a RGI 2.a), uma vez que é evidente que uma mercadoria incompleta ou inacabada nunca vai funcionar da mesma forma que uma completa ou acabada.

Por tal razão, é absolutamente inadequada a formulação de quesitos dirigidos ao perito que envolvam a sua opinião sobre a classificação de mercadorias em si. Como bem alertaram Liziane Angelotti Meira e Daniela Floriano [3], ao revés, a formulação de quesitos deve consistir em:

“Questionamentos tais como ‘o que é?’, ‘como é obtida?’, ‘o que contém?’, ‘como se apresenta?’, ‘para que é utilizada?’ são essenciais para o início de qualquer estudo que pretenda classificar uma mercadoria. Para responder a esses questionamentos, pressupõe-se o acesso a catálogos informativos, fichas técnicas, documentação gráfica, planos e instruções de montagem, análises químicas, informações sobre o produto. Somente após bem conhecida a mercadoria, é que se passa à análise da estrutura da nomenclatura, para que seja possível classificá-la corretamente.”

Uma vez fornecidos os subsídios técnicos pela perícia, aí, sim, abre-se a oportunidade para o auditor fiscal ou o juiz, se a questão estiver judicializada, proceder propriamente à classificação fiscal da mercadoria frente a todo o procedimento juridicamente disciplinado.

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[1] Esses temas também foram tratados no Parecer Normativo Cosit n. 6/2018, disponível em http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=97551. Aqui, todavia, é dado um enfoque diferente e adstrito à visão da autora. Acesso em 16-06-2024.

[2] Vide a nota de rodapé n. 2.

[3] Vamos falar sobre a classificação fiscal de  mercadorias? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-23/territorio-aduaneiro-vamos-falar-classificacao-mercadorias/. Acesso em 16-06-2024.

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