VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT

Apesar das críticas, uso da linguagem simples avança no Poder Judiciário

Autor

4 de julho de 2024, 8h53

Anunciado em 4 de dezembro de 2023, o Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário já conta com a adesão de mais de 70 tribunais e órgãos da Justiça brasileira. A iniciativa é uma das principais bandeiras da gestão do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, à frente do CNJ.

Luís Roberto Barroso

Pacto pela Linguagem Simples é uma das bandeiras de Barroso no CNJ

Em artigo publicado pelo Anuário da Justiça Brasil 2024 e reproduzido pela revista eletrônica Consultor Jurídico, Barroso defendeu que as boas práticas de linguagem permitem que a sociedade compreenda melhor a fundamentação das decisões do Judiciário.

“Quase tudo o que decidimos pode ser explicado em uma linguagem simples, que as pessoas consigam entender. Ainda que para discordar, mas para discordar daquilo que entenderam”, afirmou Barroso no lançamento do pacto.

A ampla aceitação do projeto demonstra que ele atende a uma necessidade que é cada vez mais presente no Judiciário, sobretudo em tempos de polarização política, fake news, verdades borradas e democracias estremecidas. A iniciativa capitaneada pelo presidente do Supremo tem por objetivo varrer para debaixo do tapete a linguagem técnica própria do Direito, popularmente conhecida como “juridiquês”. A advogada e professora de linguagem simples jurídica Ivy Farias enxerga de maneira positiva o movimento, mas acredita que existe muito ainda a melhorar no pacto.

“É preciso criar diretrizes menos abertas e mais padronizadas para adoção da linguagem simples. O Brasil é um país imenso e heterogêneo. Do jeito que está, os tribunais vão adotar o que bem entenderem e chamar de linguagem simples.”

Ivy é autora do livro Escrever Direito: Manual de Escrita Criativa Para Carreiras Jurídicas (Editora A Palavrista) e ministra cursos sobre o tema em seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil. Ela defende a adoção da linguagem simples não apenas pelo Poder Judiciário, mas por todos os âmbitos da administração pública. “É importante que as pessoas entendam portarias de ministérios e comunicações da Fazenda Pública, por exemplo, para compreenderem seus direitos e suas obrigações.”

Alcance do pacto

A maioria das cortes brasileiras já adotou o protocolo do CNJ. Dos 27 Tribunais de Justiça, apenas os de Alagoas, Santa Catarina e Sergipe ainda não aderiram. Entre os Tribunais Regionais Eleitorais, só os de Amapá, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco, Rondônia e São Paulo ainda estão fora. Na Justiça Federal, os Tribunais Regionais da 1ª e da 2ª Regiões já usam a linguagem simples. 

Na Justiça do Trabalho, apenas quatro cortes regionais (Grande São Paulo e litoral paulista; Distrito Federal e Tocantins; Maranhão; e Rio Grande do Norte) ainda não são signatárias da iniciativa. Na Justiça Militar, todos os tribunais a adotaram. 

Nos tribunais superiores e nos conselhos, o Tribunal Superior do Trabalho e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho não usam a linguagem simples. O Superior Tribunal de Justiça também não aderiu formalmente ao pacto ainda, mas ministros como Daniela Teixeira já exibem em suas decisões a adesão à iniciativa. 

Além de uma linguagem menos empolada, o Pacto Nacional pela Linguagem Simples também estabelece a reformulação de protocolos de eventos promovidos pelos tribunais e o uso da linguagem acessível às pessoas com deficiência.

A experiência paulista

Maior corte do país, o Tribunal de Justiça de São Paulo teve rápida adesão ao pacto. A formalização ocorreu em janeiro, por iniciativa de seu presidente, desembargador Fernando Antonio Torres Garcia. 

TJ-SP foi uma das primeiras cortes a aderir ao pacto proposto pelo CNJ

Por seu tamanho, a participação do TJ-SP é fundamental para qualquer iniciativa que busque simplificar a linguagem utilizada pelo Judiciário brasileiro. Afinal de contas, apenas no biênio 2022/2023 a corte contabilizou aproximadamente 62 milhões de atos processuais, ou seja, o maior volume do país. 

A juíza auxiliar da presidência Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro destaca que o tribunal paulista já havia tomado algumas medidas para a simplificação de sua linguagem, como a série Juridiquês Não Tem Vez, que explica temas de interesse da sociedade de forma simples, nos formatos de vídeo e podcast. 

“Nossa perspectiva é de que, com uma linguagem mais simples e acessível, a população consegue entender melhor o Judiciário, compreendendo as razões das decisões proferidas”, afirma Paula.  

“No curso de formação de novos juízes já existe a preocupação com a linguagem simples. A Escola Paulista da Magistratura também promove cursos que tenham relação com linguagem simples, e mesmo nas sessões de julgamento de algumas câmaras se tem adotado a prática de explicar as decisões”, comenta a juíza. 

Linguagem que aproxima

O juiz Eduardo Camillo, do Tribunal de Justiça da Bahia, trabalha com linguagem simples em comarcas do interior do estado desde 2014. Segundo ele, essa prática tem ajudado a aproximar os jurisdicionados do Poder Judiciário e até melhorado a relação com o Legislativo e o Executivo locais.

Eu tento usar o português básico e que todo mundo entenda. Comecei a implementar isso nas comarcas e a população mais próxima passou a não se sentir intimidada com um juiz que só usa termos técnicos e centenários pouco compreendidos.” 

Conforme destaca Camillo, o tradicional “juridiquês” está perdendo espaço também nas faculdades de Direito e nas bancas de advocacia.

“O aluno de Direito hoje em dia está habituado a uma linguagem muito mais simples. Ele consegue entender que é melhor fazer uma petição clara, concisa e objetiva do que usar termos rebuscados”, explica o juiz, que também atua como professor de Direito Digital. Segundo ele, a linguagem simples vai facilitar até a utilização da inteligência artificial pelo Judiciário. “A maioria dos programadores não tem formação jurídica. De modo que, quanto menos termos desnecessários forem utilizados, como o excesso de latim, mais fácil será a implementação de sistemas de inteligência artificial no Judiciário.” 

O advogado Renato Eunécio virou um entusiasta da linguagem simples após fazer um curso. “É uma nova porta que se abre a todos os que trabalham com o Direito hoje e devem entregar uma comunicação mais acessível a todos, sejam juristas ou não. É fato que até mesmo juristas, juízes, advogados, promotores, analistas e técnicos de diversas repartições públicas têm dificuldades, muitas vezes, para compreender textos produzidos em ambientes da administração pública e do Poder Judiciário.” 

Ele acredita que o Direito deve preservar seu vocabulário técnico, mas ele entende que os profissionais que atuam na área precisam romper a barreira do “juridiquês”. “Alguns termos derivam do latim formal, falado há milênios nos limites da antiga Roma. Temos agora de falar fácil no mundo e para o mundo do Direito, o que pode ser uma difícil barreira a ser quebrada.” 

Simples x simplório

Apesar da adesão significativa à linguagem simples no Judiciário, há quem veja a novidade com ressalvas. O constitucionalista Lenio Streck, por exemplo, vê com reservas o que ele classifica como “simplificação da linguagem do Direito”.

“O problema do Direito não está em chamar o STF de sodalício e coisas ridículas desse gênero (ou a CLT de Códex Obreiro). Isso é certamente desnecessário, mas parar o diagnóstico nesse epifenômeno é fazer pouco do problema. Se o Direito fosse sofisticadamente aplicado e compreendido, não faria qualquer diferença usar chatices que chamamos de ‘juridiquês’. O problema é outro”, afirma Streck.

Ele acredita que mais importante do que discutir linguagem simplificada é melhorar o nível das faculdades de Direito no Brasil.

“As pessoas têm noção de que os alunos da graduação não leem mais livro algum e se abastecem na internet, paraíso do efêmero? E isso, cá para nós, não é culpa de linguagem empolada. Há formados em Direito que não sabem escrever coerentemente. Bater no ‘juridiquês’ é ‘chutar cachorro morto’. O problema está na insuficiente reflexão dos alunos e profissionais, fruto de uma profunda crise do ensino jurídico e da dogmática jurídica, mergulhada no senso comum. Até acredito que haveria espaço para a urbanização (simplificação) do Direito, isto é, para a tradução do complexo em termos mais acessíveis. É possível. O ponto é que o ensino, na base, já é frágil. Contentamo-nos com reciclagem? A simplificação é o maior inimigo da ciência. E é a degeneração do Direito.”

Segundo o constitucionalista, o movimento pela linguagem simples está intimamente ligado à influência das redes sociais. “As redes sociais apostam nesse tipo de senso comum. As redes sociais são a amostra da degeneração. Na própria política, em que o fascismo cresceu. Por que será? A linguagem mais simples quer dizer ‘encurtamento do mundo’.”

Na mesma linha, o advogado e professor de Direito Rafael Marinangelo afirma que, com o pretexto de simplificar a linguagem, está se empobrecendo o estudo do Direito.

“Cito o professor Miguel Reale no Lições Preliminares do Direito. Nessa obra, ele explica que o Direito é uma ciência. A primeira coisa que nós temos de entender é que existe uma linguagem própria do Direito e que ela é essencial para que haja a comunicação e a compreensão dentro do mundo do Direito.”

Marinangelo defende que o uso de termos técnicos pode servir para evitar decisões e petições prolixas e a distorção de conceitos, o que não se deve admitir no ambiente jurídico. 

A brutalidade linguística é mais atraente do que a elegância? Não creio e por isso prefiro unir-me ao pensamento de Miguel Reale para, com ele, defender a aquisição e o uso rigoroso do vocabulário do Direito, ‘o que não exclui, mas antes exige os valores da beleza e da elegância’”, provocou ele em artigo publicado na ConJur

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!