Opinião

'Revisão da vida toda': mero 'acidente' sem risco à segurança jurídica?

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13 de junho de 2024, 15h21

Na última segunda-feira (10/6), o ministro e presidente do STF , Luís Roberto Barroso, em entrevista ao “Roda Viva”, da TV Cultura, quando questionado sobre a manobra na “revisão da vida toda” que resultou em imensa sensação de insegurança jurídica, declarou de forma evasiva que a situação foi mero “acidente” em virtude da mudança do colegiado com a entrada do ministro Cristiano Zanin, que adotou entendimento diverso do ministro aposentado Ricardo Lewandowski no julgamento dos embargos de declaração do Tema 1.102.

A declaração acima do ministro Barroso, segundos após dizer que mudar a jurisprudência tem efeitos “daqui para frente” (prospectivos), causou indignação e perplexidade.

Além disso, certamente o ministro do Supremo Tribunal Federal imagina que o aposentado já se esqueceu das suas incansáveis e propositais alterações de pautas, a fim de julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidades (ADIs) 2.110 e 2.111 antes da “revisão da vida toda” com nítido objetivo de enterrar a tese ou “melhor dizendo”, “consertar os danos ocasionados pelo acidente” do julgamento do Tema 1.102 que reconheceu o direito dos aposentados.

Ocorre, contudo, que o ministro Zanin sequer teve a oportunidade de se demonstrar, efetivamente, seu entendimento contrário nos embargos de declaração. Ele havia votado no plenário virtual, mas houve pedido de destaque pelo ministro Alexandre de Moraes, e o julgamento terá de ser reiniciado porquanto tal recurso ainda não foi pautado.

Nathalie Bohm/TV Cultura

A manobra, como dito acima, ocorreu no âmbito das ADIs 2.110 e 2.111 (no julgamento de mérito, em 21/3/2024), pois o direito à “revisão da vida toda”, legitimamente assegurado por acórdão prolatado em Plenário (cujo julgamento de mérito ocorreu em 1/12/2022 — Tema 1.102), foi fulminado por meio daquilo que chamamos de “superação de entendimento”. Logo, os efeitos do acórdão proferido nas ADIs são, naturalmente, prospectivos, traduzindo em miúdos: manteria o direito de quem ingressou com suas revisões, antes do julgamento do dia 21/3/2024.

Isonomia e segurança

A verdadeira questão que prevalece, neste cenário de incertezas, é se a atual composição do Supremo terá a seriedade — nas atribuições da mais elevada corte do país —, de atribuir efeitos prospectivos ao acórdão das respectivas ADIs, como tem feito em inúmeros precedentes, a fim de preservar a isonomia, a segurança jurídica, os atos jurídicos perfeitos e o princípio da colegialidade.

Se avaliarmos a fala do ministro Barroso ontem no “Roda Vida”, o aposentado pode ter um lampejo de esperança de que o presidente do STF não colocará obstáculos para que o colegiado adote esses efeitos “daqui para frente” (palavras do próprio ministro), prevalecendo, assim, o direito de quem ingressou com as revisões até o julgamento das ADIs.

Consoante interpretações consolidadas (vide Tema 885 do STF), um acórdão em controle difuso possui mesmo alcance e efeitos (noutros termos: força vinculante idêntica) de um acórdão em controle concentrado.

Como era de se esperar, o acórdão proferido nas ADIs foi objeto de embargos de declaração e sua pretensão é singela: viabilizar, ao Supremo, o reconhecimento dos efeitos naturais prospectivos ante a superação do entendimento, tal como fez, por exemplo, na ADPF 573.

Na mencionada ADPF, os efeitos prospectivos beneficiaram serventuários do Regime Próprio e permitir tamanha incongruência promoveria uma indevida burla à isonomia, para além de um desmerecimento/desprezo desproporcional com os aposentados do Regime Geral que tiveram um direito assegurado por acórdão no Tema 1.102 em 1/12/2022.

Pelo disposto no RExt 730.462 (Tema n.º 733, sob a relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki), a decisão do STF, declarando a (in)constitucionalidade de preceito normativo, não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente.

Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do artigo 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, artigo 495).

Spacca

Efeitos automáticos

Como se vê, à luz das melhores interpretações, o acórdão das ADIs, agora embargado, não produz efeitos automáticos sobre as ações de “revisão da vida toda distribuídas” até 21/3/2024 — em consonância com os recursos extraordinários nº 630.501 (Tema nº 334/STF — Revisão do Melhor Benefício) e nº 1.276.977 (Tema nº 1.102/STF — Revisão da Vida Toda) —, mas tão somente prejudica o direito de quem não propôs as referidas ações.

O Tema nº 1.102 é corolário do Tema nº 334. Estamos diante de mera reafirmação de jurisprudência que produz seus plenos efeitos desde 2013 e, com a superveniência da decisão tomada em controle concentrado (ADIs 2.110 e 2.111) interrompem-se tais efeitos a partir de 21/3/2024 (data do julgamento).

Impende rememorar que apenas 102 mil ações sobre a “revisão da vida toda” foram distribuídas até o acórdão proferido nas ADIs (21/3/2024) e o impacto financeiro estimado, baseado em estudos concretos por renomados economistas (Thomas Conti, Luciana Yeung e Luciano Timm) — utilizando dados oficiais da Previdência Social, estudos demográficos e informações consistentes —, na hipótese mais provável, será de R$ 3,1 bilhões em dez anos.

Das 102 mil ações consideradas válidas (ajuizadas até 21/3/2024), 66 mil tramitam pelo rito dos Juizados Especiais Federais, em que o valor da causa é inferior, por força de lei, a 60 salários mínimos.

Menciona-se ainda, que poderia haver modulação no próprio Tema 1.102 para mitigar, cada vez mais, eventuais impactos. Portanto, percebe-se que se valer da proteção ao equilíbrio financeiro é mera engendrada para provocar verdadeira insegurança jurídica.

Não estamos tratando de valores exorbitantes com o condão de provocar colapso no erário. Ao contrário, trata-se de verdadeira ninharia, cuja finalidade é reparar, parcialmente, a traiçoeira manobra praticada, preservando os poucos jurisdicionados que farão jus à tese revisional.

Nesse diapasão, assevera-se que os aposentados representam a parte mais fraca da relação processual. Trata-se de verdadeiro grupo hipossuficiente e vulnerável, sendo tal fato, suficiente, para resguardar os seus direitos.

Com a devida vênia, a inobservância das garantias fundamentais e dos direitos que são, ou deveriam ser, incontroversos, podem ocasionar danos marginais a todo o ordenamento. Não à toa os embargos opostos em desfavor do acórdão proferido nas ADIs tratou do princípio do consequencialismo.

Ignorar o princípio da isonomia e discriminar segurados ao estabelecer critérios para o recebimento integral de um direito — diga-se de passagem, cabalmente tutelado — poderá afetar diversos temas que ainda tramitam no Pretório Excelso, com o potencial de desvirtuar — parcialmente, ou não — tudo o que norteia a Constituição.

Pelas vias adequadas, a comunidade jurídica não se dará por vencida, nem que a discussão perdure por mais tempo. Todos zelaremos pela segurança jurídica que está sendo ignorada e é o principal pilar do Estado democrático de Direito, porquanto mantém o sustento da integridade das instituições, a previsibilidade, a confiança na atuação do Poder Público, além da estabilidade nas relações jurídicas.

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