Opinião

Apuração de haveres das sociedades retrocede na reforma do Código Civil

Autor

  • Alcides Afonso Tonholo Borges

    é formado em Direito pela Universidade de São Paulo com programa de intercâmbio acadêmico na Universidade de Zürich — Master of Law UZH International and Comparative Law (LLM) especialista na área de Direito Societário especificamente em Consultivo Societário M&A e Arbitragem e advogado na área de contencioso societário do escritório Rossi Maffini Milman & Grando Advogados (RMMG Advogados).

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10 de maio de 2024, 15h25

As sociedades consistem em contratos plurilaterais de estrutura aberta [1] e, como todo contrato, pode ser resolvido. Entretanto, as sociedades, por possuírem mais de uma parte signatária, podem continuar a existir mesmo quando ocorre a resolução parcial em relação a uma das partes.

Dito isso, tem-se no Direito brasileiro a possibilidade de dissolução parcial da sociedade, v.g., há a hipótese de que, diante da retirada de um sócio do quadro societário — seja por exclusão, morte ou exercício do direito de retirada —, a sociedade prossiga existindo e, consequentemente, resolva-se parcialmente apenas quanto à participação do referido sócio.

O procedimento formal para efetivar tal saída consiste na liquidação e posterior pagamento da participação societária detida pelo sócio dissidente. Além disso, o método pelo qual a participação societária é avaliada consiste na apuração de haveres. Em decorrência do princípio da liberdade contratual, é facultado aos sócios elegerem no contrato social um método que entendam melhor se adequar à realidade da sociedade na qual fazem parte.

Tal liberalidade se justifica uma vez que, a depender do tipo de atividade, a forma técnica de apuração do valor da sociedade altera-se substancialmente. Tenha-se como exemplos contrastantes uma sociedade cuja atividade é a administração e exploração de bens imóveis e outra sociedade cuja atividade consiste no desenvolvimento de softwares.

Na primeira, o patrimônio é facilmente aferido pelo preço dos bens materiais que estão integralizados em seu capital, já na segunda o principal ativo consiste na própria atividade intelectual desenvolvida e que não possui uma materialização e uma precificação prima facie. Aliás, o próprio produto fim de uma atividade intelectual pode ser um bem intangível, cujo valor agregado é complexo.

Método de apuração e o ‘balanço especial’

Destarte, mesmo que a referida faculdade seja concedida em nosso ordenamento aos sócios, é comum que o contrato social seja elaborado sem que um método de apuração de haveres seja eleito. Por isso, o próprio ordenamento prevê um método supletivo a ser observado em caso de omissão do documento constituinte da sociedade.

Tal método foi primeiramente definido no Código Civil, o qual prevê, em seu artigo 1.031, que “nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á (…) com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado”.

A doutrina e a jurisprudência pátria traduziram o método do balanço especial como aquele que “defina a situação patrimonial da sociedade no momento da saída do sócio, com base nos valores prováveis de liquidação dos bens componentes do patrimônio societário, não sendo cabível, pelo menos como regra geral, a utilização do balanço do exercício, cuja finalidade se restringe à apuração dos resultados da gestão social naquele exercício” [2].

Não obstante, apesar de haver uma previsão subsidiária, ela não conseguiu abarcar a complexidade da realidade atual das empresas, uma vez que não pensou nos diversos cenários econômicos que as sociedades podem apresentar, nem mesmo na existência de ativos intangíveis.

Nesse sentido, foi então que o novo Código de Processo Civil inovou ao prever a própria ação de dissolução parcial da sociedade limitada em seus artigos 599 a 609, inclusive prevendo nova regra sobre o método legal subsidiário a ser aplicado na apuração de haveres em sociedades cujos contratos sociais não elegeram método próprio (artigo 606).

‘Balanço de determinação’

Na nova redação dada pelo diploma processual, o termo “balanço especial” foi substituído pelo “balanço de determinação” [3], assim como foi ampliada sua definição para constar que na apuração do valor patrimonial da sociedade deve-se avaliar os “bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma”.

Spacca

Portanto, atualizou-se a redação do Código Civil para constar expressamente que os bens materiais e imateriais deveriam ser levados em conta quando da apuração dos haveres. Para mais, o novo diploma ainda concedeu ao juiz o poder de, mediante requerimento das partes, rever tanto a data da resolução quanto o critério de apuração de haveres haja vista as distorções e complexidades do processo de avaliação de sociedades alhures mencionadas (artigo 607 do CPC).

Atualização do Código Civil vai na contramão

Assim, a inovação do artigo 607 do CPC, apesar de certas críticas, mostrou-se como uma saída dada ao magistrado nos casos que urgem por um método de avaliação que mais se adeque às particularidades financeiras das diversas sociedades e rumos existentes no mercado. Todavia, apesar de tais avanços feitos em 2015, recentemente, a comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil entregou seu relatório final [4], no qual constou alterações no atual artigo 1.031 que, ao nosso ver, vão na contramão dos avanços feitos pelo CPC.

Explica-se: na redação proposta para o artigo em comento, adicionou-se o § 3º cuja redação preconiza que “[o] critério de determinação do valor das quotas para fins de apuração de haveres estabelecidos no contrato social será observado, mesmo que resulte em valor inferior ao apurado em qualquer outro método de avaliação” [5]. Sendo assim, a redação proposta, caso aprovada, priorizará a convenção pactuada pelas partes em detrimento da intervenção judicial nos casos de desequilíbrio e abuso da maioria retirando, dessa forma, a possibilidade de reequilíbrio pelo juiz prevista no já mencionado artigo 607 do CPC.

Atualmente, é cediço em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que havendo dissenso entre as partes (sócio retirante e sociedade) quanto ao método de apuração do valor patrimonial da sociedade, aplicar-se-á o balanço de determinação. In verbis:

“DIREITO EMPRESARIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. SÓCIO DISSIDENTE. CRITÉRIOS PARA APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO. FLUXO DE CAIXA. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. Recurso especial desprovido”. (REsp. 1335619/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, Rel. p/ acórdão ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, j. em 3/3/2015, DJe. 27/3/2015.)

Sugestões dos especialistas

Dessa forma, apesar de trazer inovações necessárias ao Direito Civil brasileiro, alerta-se para certos retrocessos trazidos pelo anteprojeto apresentado e o enrijecimento de uma questão que já tinha recebido certa flexibilização. Para mais, a própria professora doutora Juliana Krueger, durante a primeira audiência pública da referida comissão em 23 de outubro de 2023, comentou exatamente a necessidade de legislar progressivamente sobre o tema, inclusive propondo a reflexão sobre a aplicação do mesmo método supletivo de apuração de haveres independentemente da hipótese de dissolução. Veja como constou nas notas taquigráficas [6]:

“(…) um tema que me parece de extrema relevância e pouco resolvido é o tema da apuração de haveres. Eu lembro aos senhores e senhoras que o Código Civil, no 1.031, tem uma regra para a apuração de haveres que remete a um balanço patrimonial. Essa regra se aplica à sociedade limitada pelo 1.077 e pelo 1.086. No entanto, com a superveniência do Código de Processo Civil em 2015, o Código de Processo Civil prevê um outro critério, que é o balanço de determinação, inclusive avaliando-se ativos tangíveis e intangíveis, o que era necessário, a meu ver, mas a preço de saída, o que é um critério bastante diferente do balanço patrimonial do 1.031. Portanto, essa incompatibilidade tem que ser resolvida. (…) parece-me que algo a se pensar na apuração de haveres é que, no nosso regime hoje, não importa a causa de saída dos sócios, os haveres são apurados sempre da mesma forma. Então, não importa se foi exclusão, se foi retirada injustificada, os haveres são sempre apurados da mesma forma. E, por vezes, eu me questiono se deveria ser assim. Eu deixo esse ponto a critério da Comissão”.

Já em posterior audiência pública interativa ocorrida no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, em 7 de dezembro de 2023 [7], o professor doutor João Glicério, citando o professor doutor Rodrigo Toscano, também apontou as dificuldades e problemas atinentes à apuração de haveres em decorrência da forma que está regulamentada no Direito brasileiro, alegando que a busca pelo “valor patrimonial” não é a melhor forma de se apurar os haveres quando da dissolução parcial, propondo inclusive que novos métodos fossem buscados, como o uso do valor de mercado. Confira:

“Outra sugestão é do art. 1.031 do Código Civil, que o Prof. Rodrigo Toscano muito bem colocou aqui. É, talvez, um dos maiores problemas de direito societário do Brasil atualmente. As dissoluções de sociedade são intermináveis em razão desse dispositivo. O Prof. Daniel Carnio Costa, grande conhecedor do direito empresarial, especificamente no seu aspecto patrimonial, há de concordar, como também o Prof. Marcus Borel, que o valor patrimonial previsto no art. 1.031 não é suficiente para atender às necessidades da multiplicidade de atividades empresariais existentes no mundo, especialmente no Brasil; sociedades que têm o seu principal ativo estabelecido nos contratos firmados, e não nos bens que possui, naturalmente, precisam de uma avaliação específica e diferenciada. A ideia do Prof. Rodrigo do preço real de mercado é uma extraordinária ideia, mas eu acredito que a gente precise, talvez, especificar um pouco o critério de avaliação do que seria esse preço real de mercado, dependendo do tipo de atividade e dependendo da estrutura estabelecida para aquela atividade empresarial”.

Outra ilustre participação foi a da professora doutora Paula Forgioni durante a discussão e votação do relatório final em 3 de abril de 2024 [8], a qual também ressaltou as dificuldades com as quais a apuração de haveres no direito societário pátrio passa em decorrência da tentativa do legislador de prever uma regra geral. In verbis:

“(…) minha sugestão seria só para não mencionar valor patrimonial e colocar realmente os critérios do 1.031, porque a nossa Comissão tomou muito cuidado na elaboração disso, para que não haja qualquer afastamento da jurisprudência do STJ. (…) A expressão ‘valor patrimonial’ tem causado na jurisprudência tempestades de discussões. Não vale a pena. É um dos principais problemas que nós temos na sociedade limitada hoje, que nós tentamos, baseados no Código de Processo e na jurisprudência do STJ, resolver. Então, nós sugerimos que não seja colocada a expressão ‘valor patrimonial’”.

Portanto, diante das inúmeras mudanças e inovações que transformam a atividade econômica e, consequentemente, a forma com que as sociedades se estruturam no mercado brasileiro, a comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil desperdiçou uma oportunidade única para elevar o tema e trazer luz às discussões sobre os métodos de apuração de haveres decorrentes de dissoluções parciais. Para mais, não só desperdiçou tal chance, como apresentou uma proposta que engessa mais ainda o cenário caótico da apuração de haveres no direito pátrio ao retirar a possibilidade de intervenção judicial nos casos em que o método eleito pelo contrato social for totalmente desigual e prejudicial ao sócio retirante.

 


[1] FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da; SZTAJN, Rachel. Código civil comentado, volume XI: direito de empresa, artigos 887 a 926 e 966 a 1.195. Colaboração de Eliseu Martins; coordenador Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2008, p. 356.

[2] SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 2.132.

[3] Apesar da nova redação e nomenclatura, os tribunais e a jurisprudência não indicaram antinomia ou revogação tácita do art. 1.031, mas interpretaram, com certo progressismo, que os dois métodos (balanço especial e balanço de determinação) seriam equivalentes. Nesse sentido: TJ-SP, AC. Nº 1058804-37.2020.8.26.0100, rel. Cesar Ciampolini, j. em 10.08.2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, DJe. 12.08.2022.

[4] Cf. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/17042024-Comissao-de-juristas-entrega-proposta-de-revisao-do-Codigo-Civil-ao-Senado.aspx (Acesso em 22.04.2024).

[5] Cf. https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630&data1=2023-05-01&data2=2024-05-19 (Acessado em: 22.04.2024).

[6] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/11983 (Acesso em: 22.04.2024, g.n.).

[7] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/12158 (Acesso em: 22.04.2024).

[8] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/12455 (Acesso em: 22.04.2024).

Autores

  • é formado em Direito pela Universidade de São Paulo, com programa de intercâmbio acadêmico na Universidade de Zürich — Master of Law UZH International and Comparative Law (LLM), especialista na área de Direito Societário, especificamente em Consultivo Societário, M&A e Arbitragem, e advogado na área de contencioso societário do escritório Rossi, Maffini, Milman & Grando Advogados (RMMG Advogados).

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