Opinião

'Robô magistrado': é o fim dos tempos jurídicos

Autor

  • Renato Otávio da Gama Ferraz

    é advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública além de autor do livro 'Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana)' e outras obras.

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20 de novembro de 2023, 20h17

Comento aqui uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), do último dia 3 de novembro, no Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.465.012. Ah, não se pode esquecer das barreiras para “subir” o recurso extraordinário. Aconteceu o seguinte:

Spacca

Uma decisão do TRF-2 disse que a razão recursal é reflexa. Cita a terrível Súmula nº 282 do STF (“É inadmissível recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”) e a Súmula nº 279 da Suprema Corte: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”.

Quando se agrava vem sempre a mesma resposta:

“Adequado o juízo de inadmissão. Nada a ser retratado. Diante da interposição do recurso de agravo, remetam-se os autos ao Tribunal Superior competente, nos termos do art. 1.042 do Código de Processo Civil.”

É sempre a mesma ladainha.  É a jurisprudência defensiva. Copia e cola e sai “decidindo”. Isso ocorre em milhares de processos. É muito triste. Pior: em nome da “eficiência” tem agora a inteligência artificial.

Os advogados sofrem. Eles têm que, agora, convenceram os robôs de que estão certos. Se convencer o juiz já é dificílimo; imagina convencer a máquina…

“Robô magistrado”: é o fim dos tempos jurídicos…

Finalmente, o ARE nº 1.465.012 chega no STF, sendo autuado em 25/10/2023. Aí, o causídico pensa que o recurso será distribuído a um ministro relator, que é o guardião da Constituição. Oh, glória!   Nada disso. Agora, o processo é encaminhado, primeiro, a gerência de análise de pressupostos objetivos. É Novo Código de Processo Civil?

Como assim? É a gerência que analisa os pressupostos juntamente com a inteligência artificial? Pode o robô “decidir”? 

Pode isso?

Por sinal, o robô sabe interpretar o que seja o conceito jurídico indeterminado de repercussão geral? Se a matéria tem densidade constitucional? E quais as questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, de natureza transindividual que ultrapassem os interesses subjetivos?

Não me leve a mal. É claro que não! Somente, através da hermenêutica constitucional! Aliás, aplicação e interpretação caminham juntas.

 Cá pra nós: robô só sabe responder de forma padrão, vale dizer, não há repercussão geral, ausente o prequestionamento, a questão é de análise de fatos e provas (Súmulas 282 e 279), a ofensa é reflexa e indireta. É o “copia e cola”.

Mas pode o robô “julgar”?

Prosseguimos. Após, a gerência de pressupostos e a inteligência artificial do STF “decidirem”, o ARE nº 1.465.012, é conclusos à presidência do STF, em 3/11/2023. Porém, no mesmo dia, no “feriadão” o ministro relator dá uma decisão monocrática. Que rapidez.  Já pensou se todos os processos andassem rápidos assim?

Alguém adivinha qual foi a decisão?  Vejamos:

  • Analisados os autos, verifica-se que o Plenário da Corte, nos autos do ARE nº 748.371/MT, relator o ministro Gilmar Mendes (Tema 660), reafirmou o entendimento de que a afronta aos princípios da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, dos limites da coisa julgada ou da prestação jurisdicional que dependa, para ser reconhecida como tal, da análise de normas infraconstitucionais configura apenas ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que não enseja reexame da questão em recurso extraordinário.
  • seria necessário analisar a causa à luz da interpretação dada à legislação infraconstitucional pertinente e reexaminar os fatos e as provas dos autos, o que não é cabível em sede de recurso extraordinário, nos termos da Súmula 279 /STF.
  • Ante o exposto, nego seguimento ao recurso (alínea c do inciso V do artigo 13 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).
  • Havendo prévia fixação de honorários advocatícios pelas instâncias de origem, seu valor monetário será majorado em 10% (dez por cento) em desfavor da parte recorrente, nos termos do artigo 85, § 11, do Código de Processo Civil, observado os limites dos §§ 2º e 3º do referido artigo e a eventual concessão de justiça gratuita.  

Pois bem. Com todo respeito: é uma decisão padrão para “exterminarem” os agravos em recurso extraordinário, que agora conta com a ajuda dos “robôs magistrados”. Até a parte final da decisão que fixa os honorários advocatícios é igualzinha de outras decisões do STF. Não se dá nem o trabalho de verificar nos autos se o recorrente tem justiça gratuita. Fala em “eventual concessão”.

Não há dialeticidade. Não há contraditório substancial. Infelizmente, essas decisões não-fundamentadas, vão se multiplicando, no mundo forense, com um simples copiar e colar; o que, robustece o arbítrio judicial.

Só para esclarecer: no acórdão recorrido ao STF, a Turma Especializada do TRF-2, na apelação, acordou ou “copiou e colou” o entendimento do juízo de piso:

“O procedimento administrativo disciplinar em questão é regulado pela Lei nº 5.836/72, cujo artigo 18 determina que prescrevem em seis anos os casos ali previstos, prazo contado da data em que foram praticados os atos até a instauração do procedimento”.

Ocorre que, com relação à formatação do artigo 18 da Lei nº 5638/1972 (Lei do Conselho de Justificação), é tudo muito claro: Prescrevem em seis anos os casos previstos nesta lei. O prazo é computado na data em que forem praticados, isto é, da conduta. Simples assim

Pois então. Dizer que o prazo se refere à instauração do procedimento administrativo é dar um drible na lei! É, também, uma grande rasteira na Constituição!

É, escancaradamente, uma eterna licença para a administração castrense punir os militares que cometerem contravenções disciplinares, em qualquer tempo, após a instauração do Conselho de Justificação.

Ocorre que o relatório da decisão monocrática do STF coloca todo o acórdão ementado do TRF-2. Não obstante, não coloca nenhum argumento do recorrente. Na verdade, não foram enfrentados. É evidente que gera nulidade.

Ora, é o Direito das Leis que obriga a fundamentação das decisões judiciais, vale dizer, que impõe ao órgão julgador o dever de examinar todos os argumentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente.

Vejamos o que ensina, com brilhantismo, o mestre e desembargador Alexandre Freitas Câmara [1]:

“Ora, se a parte apresenta diversos argumentos, e um deles é acolhido, sendo suficiente para justificar uma decisão que a favoreça, evidentemente não há para o órgão jurisdicional qualquer dever de examinar os demais argumentos, que se limitariam a confirmar a decisão proferida. Pois é neste, e apenas neste sentido, que se pode examinar como correta a afirmação de que o órgão julgador não está obrigado a examinar todos os argumentos da parte se já encontrou um que sustenta a sua conclusão. (…) De outro lado, porém, se a parte deduz vários argumentos e um deles é rejeitado impõe-se o ao órgão julgador o dever de examinar os demais fundamentos que, em tese, poderiam caso acolhidos, levar a conclusão diferente. É que só é legitimo decidir contrariamente ao interesse de uma das partes se todos os seus argumentos forem rejeitados.”

Quem, recorre, é evidente, quer que o julgador enfrente todos os argumentos deduzidos no processo. É o que fala o artigo 489, §1º, IV, NCPC. Logo, não há espaço para discricionaridade e subjetividade; pois toda atividade estatal está submetida à lei e ao Direito.

Vamos ao ponto não analisado pelo STF. Há escancarada omissão:

“não se trata, portanto, de reexaminar as provas dos autos, como à exaustão falado, mas, sim, de conferir supremacia à Constituição, em nome da coerência e integralidade do ordenamento jurídico; sob pena de -absurdamente- se criar uma imprescritibilidade, no Processo Administrativo Castrense, ao arrepio, da Lei Maior.”

A Constituição elenca os crimes imprescritíveis:

  • a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
  • constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

Na prática, com a decisão monocrática do STF, está se criando mais um caso de imprescritibilidade da contravenção disciplinar militar. Por quê? Porque basta instaurar o Conselho de Justificação, que em qualquer tempo, o militar poderá ser punido ou demitido.

A questão é de hermenêutica constitucional. A pergunta chave:

“Se for verdadeira a assertiva do acórdão e decisão monocrática do STF, isso quer dizer, por exemplo, de que após a instauração do procedimento (Conselho de Justificação) em qualquer tempo, vale dizer, 5 anos, 10 anos, 15 anos, 20 anos a Administração Castrense, no caso concreto, poderá punir o militar!?”

Será que o “robô magistrado” sabe responder?

Há uma obviedade tão óbvia quanto obviamente ignorada pela decisão monocrática do STF, por estar incompatível com a Constituição, fazendo, assim, uma exegese que, no caso concreto, torna o artigo 18 da Lei nº 5638/1972, inconstitucional; pois, os fatos se tornariam imprescritíveis após a abertura do Conselho de Justificação.

Que feio, STF!

Pelo socorro ao ministro Eros Grau: “Por que tenho medo dos juízes” Parafraseando: Por que tenho medo dos robôs…

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Referências
 [1] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2ª edição, p.69, Gen/Atlas, 2023

Autores

  • é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana) e de outras obras.

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