Opinião

RJ: concursalidade dos créditos garantidos por cessão fiduciária

Autores

  • Ramirhis Laura Xavier Alves

    é advogada associada do Grupo ERS e pesquisadora especialista em Direito Processual Civil pela PUC-MG atuante na seara do Direito Empresarial com foco em reestruturação empresarial e agronegócio especialista em administração judicial pelo Instituto Brasileiro da Insolvência e mediação na recuperação empresarial (Ibajud) e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

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  • Gabriel Coelho Cruz e Sousa

    é advogado associado ao Grupo ERS e especialista em Direito Processual Civil e Direito Empresarial com foco em Recuperação Judicial e Direito do Agronegócio.

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21 de outubro de 2023, 7h01

A lei de Recuperação Judicial contempla como excluídos da reestruturação os credores proprietários fiduciários de bens móveis ou imóveis, conforme o §3° do artigo 49 da LREF.

Malgrado a elucidativa disposição legal, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem entendido que a cessão fiduciária de crédito possui natureza jurídica de negócio fiduciário e está enquadrada na expressão "proprietário fiduciário de bens móveis", contida no §3° do artigo 49, da Lei 11.101/05, entendendo-se que tal crédito não se submete aos efeitos da recuperação judicial.

No entanto, o legislador não excluiu expressamente a cessão fiduciária da recuperação judicial. A exclusão se deu pelo entendimento do STJ ao realizar uma interpretação extensiva normativa, diferindo daquilo previsto em lei.

Relembre-se que a cessão fiduciária em garantia é um negócio jurídico que transfere a titularidade de um crédito até a liquidação da dívida garantida, com a identificação dos direitos creditórios objeto da cessão fiduciária [1], conforme o artigo 66-B, §3º da Lei 4728/65 (redação dada pela Lei 10931/04) e artigo 18, da Lei 9.514/97.

Em resumo, o cedente transfere a titularidade de direitos ou títulos de crédito, presentes ou futuros, para garantir a satisfação da dívida, passando a ser titular  e não proprietário  dos direitos cedidos, em caráter resolúvel: quitada a dívida, é restituído ao cedente os direitos, títulos ou produtos.

Pelo método hermenêutico, este artigo abordará de forma simples e objetiva o sentido literal e gramatical do §3° do artigo 49 da LREF, demonstrando que o legislador não pretendeu excluir a cessão fiduciária da Recuperação Judicial.

A interpretação gramatical do artigo 1.368-A do Código Civil com a redação do §3° do artigo 49 difere os pontos:

"Artigo 49, § 3°, da Lei 11.101/05
§3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis[…]seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva […]
Artigo 1.368-A do Código Civil [2] incluído pela Lei nº 10.931/04 [3]:
Artigo 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.
Em uma simples análise ao artigo 1.368-A do Código Civil, verifica-se a distinção dada pelo dispositivo legal de propriedade fiduciária e de titularidade fiduciária. Por outro lado, é notório observar que o artigo 49, §3° da Lei 11.101/05 diz a respeito tão somente do credor na posição de proprietário fiduciário.
Tal conjuntura decorre do fato de que a cessão fiduciária decorrentes de aplicações financeiras, não assegura ao credor a qualidade de proprietário fiduciário por restringir-se a norma ao direito de propriedade, direito real por excelência, distinto do direito ao crédito, classificado entre os direitos obrigacionais."

O professor Sérgio Campinho [4] ensina:

"O nosso entendimento, entretanto, é o de que cessão fiduciária de direitos creditórios se submete aos efeitos da recuperação por não estar prevista dentre as exceções capituladas no §3º do artigo 49, (…), o certo é que o legislador, que não se vale de palavras vãs, contemplou a posição de proprietário, que traduz, portanto, a existência de um direito real sobre a coisa. Ora, na cessão fiduciária de direitos creditórios, a posição do credor é a de titular de um direito pessoal e não real. Assim, como a regra do §3º é de exceção, deve ser interpretada de forma restrita."

Em paralelo, comparando o §3° do artigo 49 da lei 11.101/05 com o artigo 66-b, §3° da lei 10.931/04 [5], outra perspectiva se abre.

O artigo 66-B, § 3°, da Lei 10.931/04 dispõe que a alienação atribui ao credor a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária, enquanto a cessão atribui a posse direta e indireta apenas do título, constituindo diferentes tipos de fidúcia.

"Artigo 66-B.
[…]
§3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.
Ao dispor da conjunção 'ou', há indicação de situações distintas: 1) objeto da propriedade fiduciária; e 2) título representativo do direito ou do crédito  titularidade.
Tal interpretação se confirma pelo art. 18, da Lei 9.514/97 [6], que dispõe sobre as operações garantidas por cessão fiduciária de direitos creditórios em garantia operam a transferência da titularidade dos créditos até a liquidação da dívida:
Art. 18. O contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida, e conterá, além de outros elementos, os seguintes:
[…]
IV – a identificação dos direitos creditórios objeto da cessão fiduciária."

Em todo caso, o objeto da cessão fiduciária é a transferência de titularidade  e não propriedade  dos direitos  e não bens móveis ou imóveis  creditórios do cedente para o cessionário.

No julgamento do REsp 1202918/SP [7], importante a forte posição no voto vista da ministra Nancy Andrighi:

"(…) uma análise detida do conteúdo do §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05 permite inferir que o próprio legislador não pretendeu excluir a cessão fiduciária de direitos creditórios da recuperação judicial.
[…] fica claro que o ordenamento jurídico passou a comportar duas espécies do gênero negócios fiduciários, quais sejam: 1) a alienação fiduciária de coisa, móvel ou imóvel; e 2) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. Afinal, não fossem elas  alienação e cessão  espécies distintas de fidúcia, não teriam merecido do legislador trato individualizado. Constituem, em suma, diferentes tipos de fidúcia. Partindo-se da própria redação do artigo 66-B, §3º, da Lei nº 10.931/04, tem-se que na alienação se atribui ao credor a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária, enquanto na cessão atribui-se ao credor a posse direta e indireta apenas do título representativo do direito ou do crédito.
Seja como for, sem nos aprofundarmos na análise das características que compõem cada espécie de fidúcia, o que releva para o deslinde da presente controvérsia é a constatação de que alienação fiduciária e cessão fiduciária constituem modalidades distintas de negócio fiduciário. Nesse contexto, nota-se que o §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05 se limita a mencionar o 'proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis', ou seja, o dispositivo legal contempla apenas a alienação fiduciária. Quanto muito, poder-se-ia admitir que o dispositivo legal compreende também a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, mas jamais a cessão fiduciária de títulos de crédito.
Tanto é assim que o mencionado artigo de lei afirma que 'prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa'. Ao utilizar a expressão 'coisa', o legislador deixa claro que a exceção ao regime da recuperação judicial alcança apenas a propriedade fiduciária sobre bens (móveis ou imóveis), nunca sobre direitos, ainda mais sobre direitos de crédito.
Dessa forma, não há como incluir a cessão fiduciária de direitos de crédito no bojo do §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/05. Por se tratar de uma regra de exceção, limitadora de direitos, a boa hermenêutica exige que a referida norma seja interpretada restritivamente, sendo incabível qualquer forma de presunção, analogia ou ampliação.
 Acrescente-se, por oportuno, que a nova Lei de Falências é posterior à Lei n° 10.931/04, de modo que, fosse essa de fato a sua intenção, teria o legislador excluído da recuperação judicial, de forma expressa, também as cessões fiduciárias de crédito.
[….]
Em síntese, conclui-se que a melhor exegese do artigo 49, § 3º, da Lei nº 11.101/05 aponta para a sujeição das cessões fiduciárias de direitos de crédito ao regime da recuperação judicial."

Há, então, distinção de propriedade fiduciária e de titularidade fiduciária. Deveras, o artigo 49, §3° da Lei LREF não faz essa distinção. Trata somente do credor na posição de proprietário fiduciário – nada se refere ao titular.

Sendo regra de exceção, é incabível qualquer forma de ampliação interpretativa, como explica Manoel Justino Bezerra Filho [8]:

"A Lei 11.101/2005 não foi elaborada para permitir a introjeção da figura da cessão fiduciária de recebíveis, esta Lei lida apenas com a alienação fiduciária, pois esta era a forma existente e conhecida do legislador de então, que não conhecia a cessão e não a considerou para fins de elaboração da Lei. Por isto mesmo, para a LREF a cessão não existe, a cessão não foi considerada em sua estrutura e portanto, nenhum credor pode gozar do benefício da cessão fiduciária, em caso de recuperação judicial. Há também uma determinante razão de ordem histórica a fundamentar a conclusão acima. A cessão fiduciária de recebíveis foi criada pela Lei 10.931, de 02.08.2004, que entrou em vigor na data de sua publicação, ou seja, em 03.08.2004. Já a Lei 11.101 foi promulgada em 09.02.2005, ou seja, 6 meses e 7 dias de diferença entre uma e outra. Qualquer lei mais complexa demanda margem de tempo relativamente grande para que seja estudada, absorvida pelos que atuam no campo do direito, o que envolve dificuldade natural ao estudioso.
[…]
Ressalte-se que aqui se trata de disposição que limita o direito da sociedade empresária em recuperação, portanto norma restritiva de direito, que só pode ser interpretada restritivamente, não pode ser interpretada ampliativamente.
[…]
Nada foi dito sobre cessão fiduciária, que ainda não existia à época da elaboração do relatório; no entanto, é intuitivo, se o legislador não permitia a retirada das máquinas, muito menos permitiria a retirada do dinheiro, muito mais indispensável à produção e ao chamado soerguimento. Campinho (pg. 152, Falência e Recuperação de Empresa, 8ª ed.) lembra ainda que o §3º do artigo 49 fala em 'proprietário fiduciário', não abrangendo a figura do cessionário, que é titular de um direito pessoal e não do direito real do proprietário, arrematando que este §3º é exceção e como tal deve ser interpretado de forma restrita, não sendo, portanto, admissível a ampliação interpretativa.
[…]
A conclusão a que se chega, portanto, é no sentido de que a LREF não admite que se lhe oponha a cessão fiduciária, pois para o sistema desta Lei não existe cessão e, em consequência, o cessionário é mero credor quirografário". (Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 13ª Ed., RT, pág. 184/187).

A jurisprudência do STJ também não admite interpretação extensiva (REsp 806027/PE, REsp 728753/RJ, REsp 734450/RJ, REsp 644733/SC) e, a lição de Carlos Maximiliano, igualmente:

"O Código Civil explicitamente consolidou o preceito clássico – 'Exceptiones sunt strictissimoe interpretationis' ('interpretam-se as exceções estritissimamente', no artigo 6º da antiga Introdução, assim concebido: 'A lei que abre exceção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos que especifica" (…) As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente. Os contemporâneos preferem encontrar o fundamento desse preceito no fato de se acharem preponderantemente do lado do princípio geral as forças sociais que influem na aplicação de toda regra positiva, como sejam os fatores sociológicos, a Werturteil dos tedescos, e outras. (…)"(Carlos Maximiliano, in "Hermenêutica e Aplicação do Direito", Forense, p. 184/193).

Maximiliano (2002), novamente, aponta regras norteadoras do emprego do processo teleológico:

1) as normas conforme ao seu fim devem ter idêntica execução, não podendo ser entendidas de modo que produzam decisões diferentes sobre o mesmo objeto;
2) se o fim advém de várias normas, cada uma delas deve ser compreendida de maneira que corresponda ao objetivo resultante do conjunto;
3) deve-se conferir ao texto normativo um sentido que resulte da lei em favor e não em prejuízo de quem ela visa proteger;
4) os títulos, as epígrafes, o preâmbulo e as exposições de motivo das normas auxiliam a reconhecer o seu fim.

Dessa forma, conferir uma interpretação compartimentada do artigo 49, §3º, da LRJF, pode importar na quebra de unicidade de todo o sistema, se distanciando das matrizes traçadas pela lei recuperacional.

Conclui-se, portanto, que a cessão de direito oriunda de aplicações financeira, não assegura ao credor a qualidade de proprietário fiduciário por restringir-se a norma ao direito de propriedade, direito real por excelência, distinto do direito ao crédito, classificado entre os direitos obrigacionais, não abrangidos pela norma em debate.

Diante disso, em vista dos argumentos apresentados, pode-se concluir que, tratando-se de dispositivo normativo de exceção, este, só pode ser interpretado restritivamente, de modo que qualquer interpretação ampliativa atingirá fim diverso daquele buscado, causando danos e consequências não almejadas pela norma.

 

 


[1] Artigo 18, da Lei n° 9.514 de 20 de novembro de 1997.

[4] "Falência e Recuperação de Empresa", Saraiva Jur., 9ª ed., 2018, pg. 151.

[5] Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, nº 4.728, de 14 de julho de 1965, e nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências.

[6] Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.

[8] Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 13ª Ed., RT, pág. 184/187.

Autores

  • é advogada associada do Grupo ERS e pesquisadora, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-MG, atuante na seara do Direito Empresarial com foco em reestruturação empresarial e agronegócio, especialista em administração judicial pelo Instituto Brasileiro da Insolvência e mediação na recuperação empresarial (Ibajud) e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

  • é advogado associado ao Grupo ERS e especialista em Direito Processual Civil e Direito Empresarial com foco em Recuperação Judicial e Direito do Agronegócio.

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