Entrevista: Marcos Vinícius de Campos, vice-diretor da Faap
27 de maio de 2007, 0h00
“Defendi um caso em que meu cliente foi condenado pelo juiz criminal por formação de cartel e o Cade sequer recebeu o processo. O juiz não ouviu ninguém e decidiu, pelos depoimentos, condená-lo a cinco anos e meio de prisão, conta o advogado Marcos Vinícius de Campos, especialista em Direito Administrativo e vice-diretor da faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o professor defendeu as atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e afirmar que juízes e advogados não entendem as regras do Direito Administrativo. “Juiz federal não pode tomar decisão sem fundamentar e destruir quatro, cinco anos de trabalho em uma canetada. Isso gera instabilidade e insegurança.”
Para o professor, o Cade teria de opinar nos processos de fusão entre bancos, porque fará o papel de antagonista. “É o órgão que vai defender a idéia da concorrência”, defende. Há um projeto de lei que prevê que o Conselho seja ouvido nos atos de concentração bancária. “Mas o Banco Central não quer, porque vai perder poder.”
Marcos Vinícius de Campos também falou sobre ensino jurídico e concluiu que está na hora de proibir o surgimento de novas escolas de Direito. “Acredito que o Estado tenha de interferir o mínimo possível, mas nesta questão não vejo como o Estado não interferir”, afirma.
O professor fez ensino fundamental e ensino médio em escolas públicas. No ensino superior, conciliou três cursos. Entrou na Fundação Getúlio Vargas, depois na Universidade de Direito do Largo São Francisco (USP) e cursou a FEA. Não concluiu Economia. Foi fazer mestrado na França e voltou ao Brasil para o doutorado. Hoje, além de vice-diretor da Faap e professor, tem um escritório especializado em Direito Administrativo e empresarial. Participaram da entrevista os jornalistas Márcio Chaer e Maurício Cardoso.
Leia a entrevista
ConJur — As regras criadas para proteger a economia funcionam?
Marcos Vinícius de Campos — Na maior parte dos casos sim. Temos hoje uma regulação mais setorial, porque as leis concorrenciais não servem para os setores que têm política pública específica. É o caso das regras das agências reguladoras, criadas porque empresas públicas foram privatizadas. O Estado criou uma agência reguladora, que implementou a política pública destinada para aquele setor. Então, para determinados setores, as leis criadas para proteger a economia não são 100% aproveitadas.
ConJur — Os setores regulados foram escolhidos pela natureza dos serviços prestados ou pela situação de monopólio?
Marcos Vinícius — Pelas duas coisas. Existe a regulação da concorrência e a regulação setorial. Antes das privatizações, o Estado fazia a fiscalização, mas não dava conta. Agora, com as agências, controla as operações empresariais à distância. A Agência Nacional de Saúde foi criada para regular as operadoras de planos de saúde. O Congresso definiu o que é plano de saúde na Lei 9.656/98. O empresário precisa da autorização da ANS para vender planos e aumentar seus preços. Aí está a interferência do governo nas decisões empresariais objetivas.
ConJur — É também uma forma de exercer controle sem investimento.
Marcos Vinícius — O governo estabeleceu as agências fiscalizadoras, mas a natureza da intervenção não mudou.
ConJur — Há muita confusão entre o que cabe ao Cade e o que cabe ao Judiciário analisar?
Marcos Vinícius — Há condutas ilícitas que a própria lei tipifica. Mas tanto o Cade quanto o Poder Judiciário podem processar e julgar casos administrativos. Então há uma confusão muito grande. Não existe lei que determine exatamente os limites de atuação do Cade. Ou que estabeleça: “Judiciário, restrinja-se a isso”. É muito complicado. A sociedade gasta uma fortuna com o sistema administrativo e tem juiz que ainda não concorda com o conceito de mercado que o Cade classificou e dá liminar para suspender os efeitos da decisão.
ConJur — A organização da esfera administrativa de solução de conflitos é relativamente nova, não?
Marcos Vinícius — Novíssima. Nos Estados Unidos, o sistema foi instalado na década de 30. O Brasil começou a montar sua estrutura administrativa há 13 anos. Estamos em um processo histórico diferente, que gera descompasso, insegurança e problemas concretos. Advogados e juízes não entendem as regras do Direito Administrativo, porque não pesquisam, não lêem sobre o tema. Como entender as grandes fusões julgadas pelo Cade — Nestlé, Garoto, Ambev? Qual o papel do governo quando autoriza um órgão da administração a decidir se aprova ou não uma fusão, que implica na verdade no que chamamos de política industrial? Deveria um órgão como o Cade cuidar da política industrial do país? O Judiciário precisa entender as regras da área administrativa.
ConJur — Atos de concentração na área bancária devem ser aprovados pelo Cade ou pelo Banco Central?
Marcos Vinícius — O Bacen implementa a política bancária. Mas o Cade precisa entrar na conversa, porque vai ser o antagonista. É o órgão que vai defender a idéia da concorrência. O senador Antônio Carlos Magalhães apresentou ao Senado projeto de lei para que o Cade seja ouvido nos atos de concentração bancária. Mas o Banco Central não quer, porque vai perder poder.
ConJur — E qual o efeito prático disso?
Marcos Vinícius — Logo teremos um ou dois bancos e a concorrência vai perder muito com isso. Fica ainda mais grave quando colocamos na discussão os não especialistas: juízes e consumidores. Aí o sistema vira um caos. A Lei 8.137/90 determina que dominar o mercado é crime contra a ordem econômica. Mas como é que o mercado pode ser dominado, se não há definição do que é o mercado? O acordo de preço de três postos em um bairro pequeno é crime de cartel? Se não houver nenhum efeito para o mercado, não é crime. Aplica-se uma teoria jurídica difícil, a per se ilegal. Ou seja, há certas condutas sobre as quais não cabe discussão sobre razoabilidade, que é chamada regra da razão.
ConJur — E que não é a lei que resolve.
Marcos Vinícius — Não. Fui a uma reunião com juízes federais, na qual discutimos a repressão aos crimes contra a ordem econômica. A atuação dos juízes é absolutamente bem vinda nesta área, até porque eles irão atuar de qualquer forma. Muitas vezes ao mesmo tempo, quando se apura administrativamente e criminalmente determinada conduta. Mas, se estão no baile, precisam aprender a dançar. Não podem tomar decisões complexas sem usar metodologias, sem usar o que já se produz e o que já é consenso ao menos na literatura de Direito Econômico. Os juízes precisam fazer uma espécie de acordo de cooperação, trocar informações. Juiz federal não pode tomar decisão sem fundamentar e destruir quatro, cinco anos de trabalho com uma canetada. Isso gera instabilidade e insegurança.
ConJur — Qual o modelo, por exemplo, de uma sociedade mais amadurecida nessa questão?
Marcos Vinícius — Os Estados Unidos. Só que os Estados Unidos têm uma economia 12 vezes maior do que a nossa. Os EUA já protegeram a pequena empresa, o livre comércio e criaram mecanismos para evitar crises econômicas. Na prática, eles sempre fizeram protecionismo. O problema hoje é combinar a política daquele país com o momento econômico.
ConJur — No Brasil, o que é mais importante para a defesa da concorrência?
Marcos Vinícius — Diminuir o custo e dar efetividade para que certas condutas sejam de fato punidas. Mas isso não pode ser feito por meio da criminalização. Se for assim, é mais fácil colocar um delegado da Policia Federal na Secretaria de Direito Econômico e tudo vira um problema de escuta telefônica. O Brasil tem muito cartel. Mas o único antídoto é a abertura comercial. Um país como o Brasil não pode se dar ao luxo de dizer que certas condutas não podem ser praticadas. Qual é o problema de ter um cartel de crise? Qual o problema de ter a cooperação entre as empresas? Nenhum. As empresas devem cooperar entre si. A União Européia, por exemplo, estabelece vários parâmetros de cooperação sobre política de qualidade de produto e sobre crédito ao consumidor. Tudo que se refere a regulação econômica e regras empresarias ainda está em transição. Defendi um caso em que meu cliente foi condenado pelo juiz criminal por formação de cartel e o Cade sequer recebeu o processo. O juiz não ouviu ninguém e decidiu: “pelos depoimentos, condeno a cinco anos e meio…”. E acabou.
ConJur — Neste caso a empresa recorre a quem?
Marcos Vinícius — Ao Tribunal Regional Federal, ao Superior Tribunal de Justiça.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que, enquanto não se esgotar o processo na esfera administrativa, não pode haver condenação criminal por sonegação de tributos. O STJ segue a mesma orientação?
Marcos Vinícius — Deve seguir, já que o entendimento do Supremo deve virar inclusive Súmula Vinculante.
ConJur — Já existem mecanismos de cooperação entre Judiciário e Administrativo?
Marcos Vinícius — Os primeiros passos já foram dados. Sou diretor do Instituto Brasil de Estudo da Relações de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, o Ibrac. É um instituto criado por técnicos, advogados, economistas e empresários que promove seminários para juízes e conselheiros do Cade. O que temos é a sociedade civil criando mecanismos de aprendizado coletivo.
ConJur — Por ser uma área nova, a administrativa ainda não é bem incorporada à grade das escolas tradicionais. Faculdades de Direito como a da Faap e GV estão introduzindo um novo modelo de ensino. Como é que o senhor avalia isso?
Marcos Vinícius — Desde 1827 se ensina Direito com base no que a lei diz. A lei é resultado de um processo político e que se incorpora aos conceitos e valores do indivíduo. Esse processo de saber qual é a lei e o que a lei diz é muito complicado porque o que o aluno recebe são os valores do professor. Eu estudei na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. É uma ótima escola. Mas o problema é que a faculdade não dá aos alunos os incentivos adequados positivos e negativos para que ele se seduza, primeiro, pelo conhecimento. As faculdades particulares ensinam um método de pensar o Direito a partir da realidade e não de uma descrição da realidade que é feita pelo professor. Em uma faculdade de Direito você precisa estudar de tudo, até Direito. A realidade não é jurídica. A realidade é econômica, é política. Para entender Direito Administrativo é preciso entender o Estado. Para entender Direito Criminal, é preciso ter aulas de Psicologia. Estudar Direito é ver a sociedade. A Faap oferece até aulas de teatro para os estudantes de Direito.
ConJur — As escolas privadas tem um foco de mercado mais definido.
Marcos Vinícius — Exatamente. Posso falar da Faap, porque sou vice-diretor. Nosso objetivo é receber alunos que vieram de uma elite. Então, já sabemos que há um processo natural de seleção. Temos bolsas, atraímos bons alunos e também formamos nossa elite. E formar elite é muito complicado. Nossa função não é criar técnicos do Direito. Queremos formar administradores, diplomatas, políticos, além de juízes e advogados. Não é uma formação para passar no Exame de Ordem, embora os alunos sejam obcecados por isso. O projeto pedagógico foca a internacionalização das empresas e dos investimentos. Ensina técnicas de resolução de disputa. E não apenas ensina as regras para atuar no contencioso.
ConJur — Mas as faculdades tradicionais ainda continuam com todo o prestígio.
Marcos Vinícius — É residual. São tradicionais por quê? Em São Paulo, a Faap está, com certeza, entre as cinco melhores escolas. É uma faculdade nova, com classes com 30 alunos e aulas de diversas matérias. No Direito, existe uma característica diferente dos outros cursos, onde é raro encontrar um professor de Direito que se dedica apenas a isso. Geralmente ele é juiz, um bom advogado. Tem experiência, mas não necessariamente tem metodologia. Não adianta saber muito se você não sabe transmitir. A diferença entre Faap e faculdades públicas é a metodologia de ensino usada.
ConJur — O ensino jurídico no Brasil vai mal?
Marcos Vinícius — Péssimo. E pior ainda é dizer que o mercado vai resolver esse problema. O mercado não vai resolver esse problema porque não há condições. É óbvio que em 10, 15 anos, muitas faculdades vão fechar. Mas como vai ficar o aluno que estudou durante esse período? Não há espaço para tantas escolas. A advocacia precisa enfrentar esta questão e não vejo outro caminho, senão proibir a abertura de novos cursos de Direito. Sou claramente pró-mercado. Acredito que o Estado tenha de interferir o mínimo possível, mas nesta questão não vejo como o Estado não interferir. É preciso peneirar, avaliar com provas os alunos que estão formados. Se isso for feito, em 20 anos teremos outro cenário. Não há espaço para tanto advogado no Brasil, porque o custo de oportunidade é muito baixo.
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