Embargos Culturais

Conheça o pensamento de José Bonifácio (parte 2)

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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8 de setembro de 2013, 8h00

José Bonifácio presidiu nossa primeira Assembleia Nacional Constituinte[1], que produziu um texto considerado por D. Pedro I como excessivamente liberalizante[2]. Bonifácio enfatizou a necessidade de fortalecimento do Poder Executivo para garantia da paz e da integridade nacionais[3]. O projeto, no entanto, foi rechaçado pelo imperador, com a dissolução daquela nossa primeira assembleia[4].

Atribui-se a José Bonifácio a autoria das lembranças e apontamentos, escritas para orientar a ação dos deputados brasileiros às cortes de Portugal, quando, entre outros pontos, e um pouco antes da assembleia brasileira, teria sugerido a fundação de uma cidade central no interior do Brasil, com o objetivo de desenvolver o povoamento[5].

Bonifácio não é figura do constitucionalismo moderno em Portugal[6], embora o movimento constitucional português de 1820 tenha sido acompanhado no Brasil, na informação de Martins Júnior[7]. A assembleia nacional constituinte brasileira de 1823 não conseguiu chegar a uma constituição, a um ponto final[8], o que suscitou desavenças entre o imperador e José Bonifácio, e que serão mais tarde potencializadas com as intromissões do patriarca na vida pessoal e amorosa do proclamador da independência. Bonifácio passou a denunciar os hábitos sultânicos do imperador[9].

Para Bonifácio, a dissolução da assembleia foi mais um crime, teria sido erro palmar, o mecanismo do interesse havia destruído valores humanos sublimes, sacrificados pelos áulicos. É elemento que contribuirá mais tarde nos eventos que conduziram à abdicação de nosso primeiro imperador[10]

José Bonifácio evidenciou a distância entre a constituição imposta pelo imperador e a realidade nacional. Hostilizando a nova situação, escreveu que

(…) de que serve uma constituição em papel? A constituição deve ser estar arraigada em nossas leis, estabelecimentos e costumes. Não são comissões militares e medidas ditatoriais que deviam restabelecer a ordem e sossegar as províncias, mas sim a imediata convocação das câmaras e um novo ministério sábio, enérgico e de popularidade[11].

Bonifácio pregou uma constituição cujo critério de eficácia fosse o apoio popular. Resta imaginarmos que excluía do popular o índio e o escravo, focalizando privilégios em esfera privada[12], embora, bem entendido, José Bonifácio tivesse cogitado da redenção destes grupos que excluía. Tudo muito ambíguo.

Ainda, José Bonifácio pregou um “bom sistema de imposição, arrecadação e despesas; o que faz pagarem os vassalos com presteza e boa vontade, e chegar o pouco para o muito”[13]. A tributação poderia significar um entrave para o desenvolvimento das relações econômicas, no sentir do patriarca. O tributo teria perfil extrafiscal na medida em que “seria bom repartir, segundo a povoação e riqueza de cada capitania, os impostos necessários”[14].

Neste sentido, seu pensamento é profundamente marcado pelo liberalismo clássico. Como financista, Bonifácio anotou que “os tributos são ou direitos dos bens de raiz, ou indiretos, ou industriais; e para as nações justas e generosas, voluntários ou donativos”[15]. José Bonifácio era um entusiasta do desenvolvimento científico, um defensor do papel da ciência no Estado moderno. De acordo com Vicente Barreto,

As academias científicas aparecem para José Bonifácio como os grandes centros renovadores e preservadores do conhecimento científico. Representam fator essencial para o progresso técnico e científico, estando identificadas como tendo contribuído com conhecimentos utilíssimos para as nações européias[16].

Para Bonifácio a ciência teria uma missão na criação da riqueza nacional[17]. Concomitantemente, no poder instituído o encargo da promoção da felicidade geral, pelo que a idéia de autoridade real como fator de estabilidade aproxima os pensamentos de Silvestre Pinheiro Ferreira e de José Bonifácio de Andrada e Silva. Enquanto D. Pedro I “tinha a consciência precisa de que a legitimação de seu poder vinha diretamente da nação sem passar pela mediação dos representantes”[18], Bonifácio apegava-se num conceito nítido e bem definido de legislação, a ser colocada a favor dos povos, com fins bem claros relativos ao progresso, pelo que o “estado legal atingiria sua plenitude quando as leis servissem de instrumento para fomentar a agricultura, as artes e o comércio”[19].

A propósito desse vínculo entre administrador e administrado é princípio de seu tempo, pragmático e idealista, que o imposto deveria ser o mínimo para garantir a sobrevivência do Estado, cuja existência é justificada somente por atender aos rudimentos da vida em sociedade. Para José Bonifácio, “nenhuma nação sobrecarregada de impostos é própria para grandes coisas; sobretudo quando os impostos não são voluntários”[20].

José Bonifácio de Andrada e Silva criticava a escravidão porque o instituto não configurava um direito natural, cogitando de seu fim. Pensava os índios num enfoque etnocêntrico e paternalista. Quis uma constituição com respaldo popular, embora intrinsecamente excluísse o índio e o escravo desta base de apoio.

Imaginou um sistema tributário mínimo, racional, de modo que os negócios pudessem fluir, no ambiente de laissez-faire, de liberdade formal. São as conclusões que os excertos de José Bonifácio permitem indicar, tudo a evidenciar um ideário pragmático, individualista, paradoxal e ambíguo, como a época em que viveu e que emblematicamente representa.


[1] BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de, História Constitucional do Brasil, São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 552.
[2] CHACON, Vamireh, Vida e Morte das Constituições Brasileiras, Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 61.
[3] BARRETO, Vicente e PAIM, Antônio, Evolução do Pensamento Político Brasileiro, cit., p. 71.
[4] MONTEIRO, Tobias, História do Império, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia e São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1982, p. 24.
[5] FAUSTO, Boris, História do Brasil, São Paulo: EDUSP, 1995, p. 133.
[6] CUNHA, Paulo Ferreira da, Para uma História Constitucional do Direito Português, Coimbra: Almedina, 1995, p. 271.
[7] MARTINS JÚNIOR, Isidoro, História do Direito Nacional, p. 153.
[8] VALLADÃO, Haroldo, História do Direito, especialmente do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974, p. 16.
[9] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio, op.cit., p. 204.
[10] VIANNA, Hélio, D. Pedro I e D. Pedro II, Acréscimos às suas Biografias, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1996, p. 28 e ss.
[11] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, ob.cit., p. 235.
[12] NOVAIS, Fernando (org.), História da Vida Privada no Brasil, vol. 1, p. 16.
[13] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, ob.cit, p. 151.
[14] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, ob.cit.,p. 271.
[15] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, ob.cit., p. 272.
[16] BARRETO, Vicente, Ideologia e Política no Pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva, Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p. 99.
[17] BARRETO, Vicente, op.cit., p. 100.
[18] BARRETO, Vicente, op.cit., p. 117.
[19] BARRETO, Vicente, op.cit., p. 119.
[20] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, ob.cit., loc.cit.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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