Interesse Público

Por um contencioso administrativo do justo preço nas desapropriações

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6 de junho de 2019, 8h05

Spacca
O tema escolhido para debate na coluna desta semana é o das desapropriações. Esse tema me é particularmente caro porque o primeiro processo de Direito Administrativo que advoguei foi uma desapropriação.

Bem de ver que, atualmente, em meio a tantos assuntos relevantes que o Direito Administrativo contemporâneo traz a lume, as formas de intervenção do Estado na propriedade parecem dormitar tranquilas em torno de visões antiquadas e obsoletas.

No Brasil, além das disposições constitucionais próprias (artigos 5º, XXIV; 182, parágrafo 4º; 184; e 243), a lei geral das desapropriações é representada pelo Decreto-lei 3.365/41, uma legislação arcaica, editada em época de regime autoritário (Estado Novo).

O procedimento de desapropriação, nos termos da lei, é dividido em duas fases: a declaratória e a executiva. A primeira inicia-se com a declaração de utilidade pública do bem objeto da expropriação. A segunda envolve providências que concretizam a transferência compulsória do bem, subdividindo-se, sucessivamente, em etapa administrativa e etapa judicial.

A etapa administrativa da fase executória, que alguns sustentam ser desnecessária, é caracterizada por uma incipiente busca pela administração pública da aceitação do preço ofertado para o expropriado (artigo 10, DL 3.365/41), podendo dar origem a um acordo entre as partes (“desapropriação amigável”). Se esse acordo não se efetivar, o expropriante — ou quem lhe faça as vezes — promoverá o ajuizamento da competente ação judicial, em ordem a fazer valer a força expropriatória do Estado (artigos 3º e 10, DL 3.365/41).

Com a petição inicial da ação desapropriatória, há 99% de chance de que seja deferido um pedido initio littis de imissão provisória na posse, que, uma vez deferido (ele quase sempre o é), não tem o efeito de transferir a propriedade, mas provoca um apossamento administrativo irreversível, em prejuízo do proprietário. Na prática, a imissão provisória retira antecipadamente do proprietário todos os atributos típicos do domínio.

Uma visão simplista e atomizada dos movimentos desapropriatórios não permite aos menos avisados a compreensão de que a desapropriação, qualificada como típico ato administrativo unilateral e agressivo, isoladamente considerado, cuja imissão provisória produz antecipadamente efeitos práticos que estancam o direito de propriedade, está a reclamar uma releitura à luz de princípios e regras constitucionais, que tutelam direitos fundamentais materiais (propriedade) e processuais (devido processo legal), notadamente pela valorização da etapa administrativa do procedimento expropriatório.

Com efeito, o artigo 5º, inciso LIV da Constituição determina que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, e o inciso LV do mesmo preceptivo prescreve que aos litigantes no processo administrativo devem ser assegurados ampla defesa e contraditório com os meios e recursos a ela inerentes. Tais disposições estão a relevar que, também no âmbito da administração pública, as relações jurídicas devem ser desenhadas num esquema processual, que potencializa o debate e legitima o uso da consensualidade.

O significado dessa constatação, sobre ser mero instrumento de retórica em tempos obscuros, impõe a percepção de que, diante de qualquer atuação administrativa em que potencialmente haja risco de privação de bens do patrimônio particular (como é o caso da desapropriação), deve-se garantir ao cidadão proprietário, independente de previsão legal, a oportunidade de se manifestar legitimamente na defesa dos seus direitos perante a própria administração pública.

O que se quer significar é que modernamente, na perspectiva de uma administração pública que valoriza o diálogo, o procedimento e as relações jurídicas subjacentes, os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (aplicáveis à etapa administrativa da desapropriação) preparam o terreno para uma exegese procedimental do artigo 10 do Decreto-lei 3.365/41, em ordem a estabelecer, previamente à ação judicial de desapropriação, um “contencioso administrativo do justo preço”.

Com efeito, o que se propõe no caso, como decorrência da valorização do devido processo administrativo e da dialogicidade, é que a esfera administrativa seja transformada no locus principal de um debate constitutivo em torno do valor compensatório nas desapropriações (contencioso administrativo do justo preço), potencializando o uso de instrumentos de consenso na resolução do conflito (consensualidade), sem a necessidade de travamento de batalhas infinitas na esfera judicial[1].

Alguma dose de pragmatismo é sempre essencial a quem encena (e não apenas assiste) a novela da administração pública brasileira. Desde aquele primeiro processo que advoguei, que contou evidentemente com medidas de imissão provisória na posse, um quarto de século já se passou, e ele ainda está em curso.


[1] Inexistindo previsão específica no Decreto-lei 3.365/41, sustenta-se a viabilidade de aplicação subsidiária de lei de processo administrativo (por exemplo, Lei 9.784/99).

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