Opinião

O projeto do novo Código Eleitoral e o prazo de inelegibilidade

Autor

  • Marcelo Palma de Brito

    é juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região professor universitário mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES pós-graduado em Direito do Trabalho pela Universidade Paulista – UNIP.

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20 de setembro de 2021, 19h13

Na madrugada do último dia 16 [1], a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar nº 112/21, que busca instituir um novo Código Eleitoral no país [2]. Após aprovado, o projeto foi encaminhado ao Senado Federal.

Chama bastante atenção a redação do artigo 192 do projeto de Código Eleitoral que instituiu um período de inelegibilidade de quatro anos para juízes e membros das carreiras do Ministério Público (§1º), policiais federais, rodoviários federais, policiais civis e guardas municipais (§2º) e militares união e policiais militares (§3º), a contar da data da aposentadoria, da exoneração, do afastamento ou do agregamento/reserva, impedindo-os de se lançarem candidatos a qualquer cargo eletivo do país durante o período de "quarentena". Ex-membros das carreiras da magistratura, do Ministério Público, policiais e militares somente exerceriam a capacidade eleitoral passiva com plenitude após o decurso do prazo de quatro anos.

A justificativa para tais iniciativas reside no fato de que o exercício das funções inerentes às carreiras da magistratura, do Ministério Público, policiais e militares não pode ser maculado por eventuais intenções eleitoreiras do futuro candidato. Também é fundamento utilizado pelos defensores da ideia impedir que magistrados, membros do Ministério Público e agentes das forças de segurança que pretendam, após a aposentadoria, reserva ou exoneração, lançarem-se candidatos, usem do prestígio e da projeção dos seus cargos para criar desequilíbrio na cena política.

Não se ignoram aqui as relevantes preocupações com a imparcialidade judicial e que, principalmente os cargos da magistratura e do MP, não sejam utilizados para proveito pessoal eleitoral. A imparcialidade é um atributo essencial de um órgão julgador, significando que o Judiciário, na prestação da tutela jurisdicional, a ninguém deve privilegiar, estando afastado dos interesses particulares das partes, tratando-as com isonomia e paridade de armas. A garantia do juiz imparcial está prevista na Constituição de 1988 em seu artigo 5º, incisos XXXVII e LIII, com as garantias da vedação aos tribunais de exceção (ex post factum) e do juiz natural. A imparcialidade também está prevista no Código de Processo Civil de 2015 em seu artigo 7º (paridade de tratamento). Pode-se dizer que, juntamente com a fundamentação das decisões judiciais (artigo 93, inciso IX, da CF/88), a imparcialidade é o que legitima a atuação de um órgão julgador no exercício do poder jurisdicional.

No entanto, com todo o respeito aos defensores da ideia de se instituir um longo prazo de inelegibilidade para juízes, membros do MP e agentes das forças de segurança pública, se for feita uma comparação com a situação de outras carreiras de Estado, tais quais os defensores públicos, os integrantes das carreiras da advocacia pública e os auditores-fiscais, criar-se-ia uma distinção que não seria, ao menos a princípio, razoável. Tais carreiras, por vezes, também conferem prestígio, visibilidade e possibilidade de influência eleitoral ilícita aos seus integrantes e não foram incluídas na discussão. Assim, haveria a criação, para ex-juízes, ex-membros do MP e ex-integrantes das forças de segurança, civis e militares, de uma situação de "desincompatibilização" desproporcional se comparada com integrantes de vários outros importantes cargos e funções citados no artigo 165 do mesmo Projeto de Lei Complementar nº 112/21, dispositivo que cria datas e marcos temporais de desincompatibilização (por exemplo, até 2 de abril do ano das eleições ou até o primeiro dia posterior à escolha do candidato em convenção).

A propósito, o artigo 170 do projeto de Código Eleitoral, à exceção do inciso I (analfabetos), prevê longos períodos de inelegibilidade (oito anos) apenas para situações nas quais há infringência de dispositivos da Constituição Federal ou de lei infraconstitucional por parte do pretenso candidato, a exemplo das situações previstas no inciso V que se referem à condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado pela prática dos crimes citados em suas alíneas de "a" a "l". No caso específico de magistrados e membros do MP, o inciso XIII do artigo citado prevê a inelegibilidade por oito anos quando forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, tenham perdido o cargo por sentença judicial ou pedido exoneração ou aposentaria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar.

Ou seja, em todas as hipóteses em que o PLP nº 112/21 prevê prazos longos de inelegibilidade, elas se referem a uma espécie de reprimenda da futura legislação eleitoral para pretensos candidatos que não possuem uma vida pregressa que recomende o exercício da função pública eletiva. Seria uma forma de proteger a probidade no exercício do mandato. Nesse sentido, parece não ser razoável se equiparar o simples fato do exercício do cargo público de magistrado, de membro do MP, de policial ou de militar às situações em que a lei eleitoral busca sancionar infratores da Constituição e da lei.

Mesmo que se argumente que o prazo de quatro anos constitui metade dos prazos de inelegibilidade previstos no artigo 170 do Projeto de Lei Complementar nº 112/21, referido período de "quarentena" continua problemático por parecer desproporcional, casuístico e sancionador pelo simples exercício do cargo de magistrado, de membro do MP e das carreiras da segurança pública, civis e militares.

Mas o argumento principal que vai de encontro a tão longo prazo de inelegibilidade reside no fato de que os direitos políticos previstos no artigo 14 da Constituição Federal, entre eles o de ser votado, tratam-se de direitos fundamentais e, como tais, cláusulas pétreas nos termos artigo 60, §4º, II e IV, da mesma Constituição. E mais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos [3], em seu artigo XXI.1, prevê os direitos políticos, incluindo aqui a capacidade eleitoral passiva, como direitos humanos ao estabelecer que "todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos". Na mesma toada e citando expressamente a capacidade eleitoral passiva, ou seja, o direito de ser votado, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos diz em seu artigo 25 [4], "b", que "todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas: (…) b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; (…)". O referido pacto internacional estabelece que os direitos políticos não podem sofrer nenhuma restrição infundada. E poderia ser entendido como restrição infundada a instituição casuística de longo prazo de inelegibilidade para ex-integrantes de específicas carreiras de Estado que, a toda evidência, são cidadãos que possuem pleno gozo dos seus direitos políticos e não podem ser vertidos a cidadãos com direitos políticos de segunda classe.

Já a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) [5], incorporada ao ordenamento jurídico nacional com status de supralegalidade por ser um tratado internacional de direitos humanos (artigo 5º, §2º, CF/88), estabelece em seu artigo 23, item 1, alínea "b", que todos os cidadãos de um país têm o direito de "votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores". Já o item 2 do mesmo artigo diz, de maneira contundente, que "a lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal".

Vê-se que, pelos tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil e incorporados ao Direito interno com status supralegal, as únicas hipóteses exclusivas que justificam inelegibilidades tão longas, a exemplo do prazo de quatro anos, dizem respeito a motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental e condenação por juiz competente. O Projeto de Lei Complementar nº 112/21 e as ideias a ele correlatas que preveem longos prazos de inelegibilidade não decorrentes de sanção parecem não se enquadrar em nenhuma dessas hipóteses taxativas.

Também não parece se sustentar o argumento de que o candidato a cargo eletivo que já tenha ocupado os cargos de juiz, de membro do Ministério Público, das polícias e das instituições militares teria vantagem no pleito com relação aos demais candidatos. Ora, se assim for compreendido, deveria ser abolida toda e qualquer possibilidade de reeleição no país para ocupantes de cargos eletivos do Legislativo e do Executivo que concorrem à reeleição no exercício de seus respectivos mandatos.

Com relação à salutar preocupação de que o juiz, o membro do Ministério Público e os integrantes das forças de segurança pública, civis e militares, que pretendam se lançar candidatos não utilizem seus cargos com o fim de desbalancear o jogo eleitoral, entende-se, respeitando-se posicionamentos em sentido contrário, que a solução para a questão deveria ser tomada de maneira tópica, e não de forma geral. Além da atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho Nacional do Ministério Público e das corregedorias locais para a magistratura e o MP, e, com relação às forças de segurança, das corregedorias e das hierarquias policiais e militares, todas no âmbito administrativo, uma solução interessante para a problemática seria a previsão, no inciso IV do artigo 170 do projeto do novo Código Eleitoral (PLP 112/21), da possibilidade de ajuizamento de uma representação na Justiça Eleitoral para que, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, haja a declaração de inelegibilidade, aí, sim, por oito anos do ex-membro do Judiciário, do Ministério Público e da segurança pública, civil e militar, caso comprovado o abuso no exercício da jurisdição ou nas funções do MP, policiais ou militares para fins eleitorais. Seria algo semelhante à reprimenda do abuso do poder econômico ou político, já previsto no projeto do novo Código Eleitoral.

A solução tópica aqui sugerida seria, a princípio, suficiente para resguardar a imparcialidade judicial e a probidade no exercício das funções pelo membro do MP, das carreiras policiais e militares sem estabelecer uma regra de inelegibilidade com longo prazo, tal qual a do Projeto de Lei Complementar nº 112/21 que, salvo melhor juízo, vai de encontro aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte e ao texto da Constituição Federal de 1988.

Deve-se garantir a todo o cidadão que não cometeu irregularidades e atende aos requisitos constitucionais e legais o livre exercício dos seus direitos políticos, incluindo aqui juízes, membros do MP, integrantes das carreiras policiais e militares, pois a capacidade eleitoral passiva, o direito de ser votado, trata-se de direito humano fundamental.

Espera-se que o Senado Federal reflita melhor sobre a questão e retire do projeto de Código Eleitoral esse desproporcional e infundado prazo de inelegibilidade, impedindo que os integrantes das carreiras citadas no artigo 192 do PLP nº 112/21 sejam transformados em portadores de direitos políticos de segunda classe, algo que atinge o exercício da própria cidadania.


[1] BRASIL. Câmara dos Deputados. Câmara aprova novo Código Eleitoral com previsão de quarentena para juízes e policiais. Disponível em <https://www.camara.leg.br/noticias/806576-camara-aprova-novo-codigo-eleitoral-com-previsao-de-quarentena-para-juizes-e-policiais> Acesso em 16 set. 2021.

[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar n° 94/2019. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2292163 >. Acesso em 16 set. 2021.

[3] Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso: em 16 set. 2021.

[4] BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 16 set. 2021.

[5] Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 16 set. 2021.

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  • é juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, professor universitário, mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, pós-graduado em Direito do Trabalho pela Universidade Paulista – UNIP.

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