Opinião

Liminar de Toffoli cria "excludente de ilicitude" hermenêutico

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25 de fevereiro de 2022, 14h26

1. O papel da doutrina
Assumo de há muito aquilo que Bernd Rüthers diz em seus textos e livros (em especial Die unbegrenzte Auslegung — trad: uma interpretação não limitada ou não constrangida): quando não se coloca limites interpretativos na aplicação do Direito, corremos sérios riscos. Ele trabalha isso também no livro A Revolução Silenciosa, apontando para os riscos do ativismo judicial. Aqui mais uma vez busco esse desiderato. Como venho afirmando, faço-o como amicus da Corte e não como inimicus..

Spacca
Críticas construtivas fazem parte daquilo que é fazer doutrina e, no contexto, daquilo que é ser um aliado. Meu papel é o de contribuir por um Direito no qual se reconhece o direito fundamental a uma resposta adequada — direito do cidadão, dever jurisdicional.

A decisão que comento a seguir é uma amostra de um certo desprezo ou desdém por parte do Poder Judiciário pela discussão doutrina. E quando se trata da Suprema Corte, a questão assume maior relevância ainda. Um assunto complexo deveria trazer, no voto, no mínimo um contraponto doutrinário.

Com a lhaneza que sempre caracteriza a minha crítica, tenho o dever de trazer à lume uma desconfiança que aumenta a cada dia: a de que a doutrina serve apenas como viés de confirmação nas decisões. Em vez de fundamento, um mero ornamento.

2. O debate sobre "crime de hermenêutica" — um eterno retorno!
Volta ao debate a questão do chamado "crime de hermenêutica" no Direito brasileiro. Em decisão recente, o ministro Dias Toffoli deferiu parcialmente medida cautelar, pleiteada pela Conamp na ADPF 881.

O ponto decidido diz respeito à impugnação do art. 319 do Código Penal — frise-se, vigente e válido desde 1940 — no intuito de afastar a (alegada) possibilidade de incidência do crime de prevaricação à atividade de livre convencimento motivado (sic) dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário.1

Os argumentos do ministro vão no sentido de proteger a independência funcional de promotores e juízes, que não poderiam se ver ameaçados por sustentarem entendimentos minoritários (sic). A concessão que oferece é reconhecer que o dolo e a fraude destes atores jurídicos poderá ser objeto de criminalização. Colocado assim, tudo parece muito razoável.

Contudo, examinemos mais detidamente o que realmente está em jogo.

O tão "temido" art. 319 do CP diz apenas:

Art. 319: Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

Contra o que a Confederação de membros do MP, parte autora, insurgiu-se, então?

A autora requer a suspensão da eficácia do preceito, 'especificamente na acepção que possibilita o enquadramento da liberdade de convencimento motivado dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário como satisfação de 'interesse ou sentimento pessoal' ou como incidente no tipo objetivo, na modalidade 'contra disposição expressa de lei', para fins de tipificação como crime de prevaricação da conduta daqueles agentes que, no exercício licito e regular da atividade-fim dessas instituições, e com amparo em interpretação da lei e do direito, defendam ponto de vista em discordância com outros membros ou atores sociais e políticos.

3. Quantos juízes e promotores respondem atualmente por crimes de prevaricação?
Qual seria o periculum in mora para justificar uma medida cautelar — e monocrática? Estou atrás desses números. Mas, a julgar pela alegação de periculum in mora, deve haver um número perigosamente elevado de membros do MP ou da magistratura respondendo processos por prevaricação.

Aliás, isso inclusive se explica pelo fato de que quem denuncia o crime é um membro do MP e quem julga é um membro do PJ. É como no abuso de autoridade. A palavra final é dos destinatários da regra penal. Nesse sentido, teria a Conamp, depois de tantos anos, começado a ficar receosa com a possibilidade de denúncias irresponsáveis? E por recebimentos indevidos de peças-ovo? Seria bom que a Conamp estendesse essa preocupação com as denúncias irresponsáveis Brasil afora…!

4. Seria ruim punir decisões contra expressa disposição de lei?
Pergunto: mais alguém consegue ler o trecho em que se pune atuação ou omissão "contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" como algo ruim ou antidemocrático? Ora, uma lei só deve ser inaplicada diante de seis hipóteses. No mais, é obrigação do juiz aplicar.

Outra pergunta: mais alguém consegue ler o trecho em que se pune atuação ou omissão "contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" como uma restrição a sustentar entendimentos jurídicos minoritários? Eu não consegui. Se há um entendimento jurídico, ainda que minoritário, então não se trata de interesse ou sentimento pessoal. É tudo ou nada? Precedentes vinculantes enrijecidos numa jurisprudência que não aceita overruling ou distinguishing, ou… nada? Não é assim. É claro que não é assim. O ponto é que entendimento jurídico minoritário não é sentimento pessoal. Sentença não vem de sentire, afinal. Registro que o artigo 339 do Código Penal alemão estabelece a pena de 1 a 5 anos de prisão para o crime de prevaricação, verbis:

"Direcionar, juiz, promotor ou qualquer outro funcionário público ou juiz arbitral, o Direito para decidir com parcialidade contra qualquer uma das partes."

O daqui é bem mais brando, pois não?

Sigo. Já que a ADPF é sobre abusos na interpretação, vamos começar por uma interpretação adequada do próprio artigo impugnado (para que não se caia em uma contradição performativa), cuja leitura não oferece risco algum a autoridades que atuem de modo juridicamente fundamentado, ainda mais em uma leitura combinada com o § 2o do art. 1º da Lei 13.869/2019, o qual dispõe que

"a divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade".

Veja-se que, nem a Conamp e nem o ministro Toffoli, atentaram-se para esse parágrafo segundo do art. 1º da Lei do Abuso de Autoridade.

Sobre contrariar disposição expressa de lei, é tema que tenho pesquisado há anos (esta é uma questão doutrinária de extrema relevância, constante em livros, textos e dissertações-teses por mim orientadas na academia). Tais hipóteses são excepcionais numa democracia, sendo controladas por critérios racionalmente compartilhados e pelas vias institucionais adequadas. O Direito é a linguagem pública institucionalizada na democracia. E cumprir a lei não é feio. Por exemplo, as seis hipóteses de que venho falando. Ainda precisamos falar sobre as formas de controle de constitucionalidade e a interpretação principiológica, a essa altura da história.

5. Em nenhuma hipótese cabe aplicar lei para satisfazer interesse pessoal!
Em nenhuma das hipóteses que tanto investiguei, caberá não aplicar a lei (ou a aplicar distorcidamente) "para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". Aqui e no resto do mundo. Não entendo como a Conamp pode discordar disso. Triste é que se tenha que botar em lei. E ainda querem tirar…!

Quando parte do sistema jurídico se revoltou contra o detalhamento dos requisitos trazidos pelo CPC para a fundamentação das sentenças (art. 489), algumas associações de juízes alegaram que se estaria cerceando seu "direito de julgar". O imaginário do livre convencimento como desculpa para tudo se encontra arraigado em nossa cultura jurídica. Sugiro a leitura do seguinte texto: Como a jurisprudência prêt-à-porter se alimenta do livre convencimento.

O livre convencimento, além de ter sido banido do CPC, é uma lenda, uma ficção. Se veio para superar a prova tarifada — e isso não tem comprovação em países como o Brasil, conforme pesquisas que estou realizando — então tarifações (a CF está eivada delas) seriam coisas ruins… que poderiam ser superadas pelo convencimento pessoal de juízes.

Cá para nós, isso não tem sentido. Alguém imagina o livre convencimento sendo utilizado como argumento para deixar de aplicar uma garantia processual (que é uma taxação)? Algo como "embora a prova seja ilícita, tenho, para mim, por meu livre convencimento, que o réu cometeu o delito e por isso deve ser condenado". Pode? Não? Então, qual é a função e fundamento do LC? Simples: para que se exerça um livre interpretar.

E, pior, lá vem invocação distorcida do "crime de hermenêutica" denunciado por Ruy Barbosa, como se tivesse tudo a ver com o caso.

Indago: pode o cidadão comum fazer algo "contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" e alegar em sua defesa que não podem tolher seu livre convencimento? Pode? Não? Então, por que um membro do MP ou juiz poderia? Mais alguém nesse país goza desse odioso privilégio de estar acima da lei? O MP não é um soberano hobbesiano.

6. Os entendimentos minoritários?
Alguém poderá indagar: como protegemos o direito a sustentar entendimentos minoritários? Ora, ter um entendimento minoritário racionalmente sustentável é uma coisa absolutamente normal. Agora, por favor, chamar (equiparar) um ato ou omissão juridicamente infundada de "entendimento minoritário para satisfazer interesse ou sentimento pessoal" é outra, muito diferente. E no Brasil já controlamos isso na prática, para o "andar de baixo". Se outro servidor público qualquer cometer uma ilicitude, mas alegar estar amparado no seu próprio entendimento jurídico minoritário, não irão promotores e juízes punir seu ato? A reposta é óbvia.

7. A licença para o livre interpretar: uma recriação da Escola do Direito Livre? Juízes e membros do MP teriam privilégio cognitivo?
O que a decisão cautelar do ministro Dias Toffoli parece garantir, a pretexto das melhores intenções, é uma espécie de "excludente de ilicitude" hermenêutica. Só que essa excludente é para um "crime de hermenêutica" que não existe, porque não é a mera interpretação diferente que se está punindo. A cautelar acaba possibilitando — de novo, a despeito das melhores intenções — que promotores e juízes possam agir de forma abusiva, desde que não seja flagrantemente dolosa ou fraudulenta. Somos um dos países com maiores dificuldades em constranger (epistemologicamente) decisionismos, punir e reparar abusos judiciais.

Lembro de um caso inglês discutido por Dworkin, no Império do Direito, para elaborar seu conceito de integridade, no que se refere à aplicação dos princípios de modo equânime aos cidadãos, exceto se houver uma justificativa em outro princípio para um tratamento diferenciado. Em Saif Ali v. Sydney Mitchell & Co [1980] A.C 198, se discutiu responsabilidade de advogado devido a danos causados por negligência. A advocacia era a única profissão que não se sujeitava a esse instituto. Apesar de essa profissão ter um regime jurídico próprio, o tratamento diferenciado nesse ponto não se justificava à luz dos princípios de responsabilidade civil. Por isso, "a Câmara dos Lordes atualmente reduziu essa isenção: ao fazê-lo, preferiu a integridade à coerência estrita. A integridade, porém, não estará́ satisfeita enquanto a isenção não for totalmente eliminada".

O instituto discutido é diferente, assim como as partes envolvidas, mas a estrutura do raciocínio é a mesma: precisamos de igualdade na aplicação do Direito. Não se pode continuar insistindo em colocar promotores e juízes como agentes do Estado com privilégio cognitivo. Acima da lei.

De todo modo, com a cautelar, o MP e os juízes estão blindados para decidir da forma que querem.

8. Doutrina ornamenta ou fundamenta? Direito é o que se diz por livre convencimento?
Esse é o ponto. Direito não é e não pode ser uma questão de opinião. Se tudo é uma "questão de livre convencimento", o Direito se aproxima do negacionismo. Daquilo que MacIntyre chama de emotivismo. Cada tem sua opinião. Agora com autorização da Suprema Corte.

Austin tinha razão? Direito é o comando do soberano? No Brasil, é o que se pretende. E o soberano passa a ser o intérprete-aplicador. Que tempos.

Numa palavra final: o papel da doutrina é o de construir condições epistemológicas para que se possa, em ambiente controlado intersubjetivamente, criticar as decisões judiciais. Caso contrário, é despiciendo escrever textos, livros e teses acadêmicas. Por que, desse modo, o direito será o que, por livre convencimento, aquilo que os agentes públicos disserem. Ornamentar ou fundamentar? Eis a questão.


1 A outra parte da ação — relativa à possibilidade de o Judiciário decidir sobre medidas restritivas ou de produção de provas, sem requerimento ou manifestação previa do Ministério Público — ainda não foi analisada por apresentar maior complexidade, sendo discutida também em outra ação em trâmite no STF.

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