Opinião

A prescrição intercorrente na nova LIA: a realidade por trás da norma

Autor

  • José Carlos Fernandes Junior

    é promotor de Justiça do MP-MG ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG pós-graduado em Divisão de Poderes Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MP-MG.

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29 de março de 2022, 6h32

Inegável que, o Direito é o mecanismo que se propõe a normatizar a realidade social. Nada obstante, também é fruto dessa realidade, construído sob a égide e em função de múltiplos interesses, suscetível a mudanças que se sucedem no tempo e no espaço. Por isso, o Direito se apresenta sob múltiplas formas, em diversas e renováveis estruturas normativas. Como expressão constante da experiência social compreende um conjunto de disciplinas jurídicas, enquanto que, como expressão do saber científico, não dispensa as categorizações (ou tipologias) como formas de ordenação da realidade em estruturas ou esquemas.

Historicamente, a proteção jurídica voltou-se eminentemente aos direitos de titularidade  individual. Com a evolução social, porém, novos tipos de conflitos interpessoais reclamaram um novo modelo jurídico suficientemente capaz de pacificá-los.

Com efeito, essa nova estirpe de conflito — própria da sociedade contemporânea — passou a demandar um novo arcabouço normativo apto a conformar a novel realidade político-econômica. Os direitos humanos de segunda e terceira dimensões caracterizam-se justamente por seu caráter coletivo, uma vez que proclamam os interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas, afastando-se tanto dos direitos essencialmente "privados" (por exemplo, direito civil contratual) como daqueles tipicamente "públicos" (como o direito penal, administrativo etc). Para a adequada proteção desse novo gênero de direitos, quais seja, os direitos de massa, os sistemas normativos hodiernos são guarnecidos por princípios, regras e institutos próprios, formando o que a doutrina especializada denomina de "microssistema de tutela coletiva".

Obviamente, o reconhecimento dos direitos de massa — ocultos nos rincões de uma sociedade ferreteada pela individualidade — dependeu de expressivas transformações sociais, impulsionadas, principalmente, com o advento do Estado Social de Direito. Na realidade, a proteção dos interesses e direitos de titularidade coletiva só veio à tona quando, diante de transgressões cada vez mais intoleráveis, tornou-se urgente seu reconhecimento e concretização. Ainda hoje, há interesses (quaisquer pretensões em geral) e direitos (posições jurídicas que o ordenamento jurídico assegura às pessoas) metaindividuais (transindividuais, supraindividuais ou simplesmente direitos coletivos em sentido lato) que precisam efetivamente emergir ao plano social.

Especificamente na seara da defesa do patrimônio público, de acordo com Fernando Rodrigues Martins:

Não se perca de vista que, com o advento do "globalismo", flagrantemente capitaneado pelos ideários potencialmente mais afinados à lógica de mercado, a igualdade é apenas "uma poeira solta ao vento", ao passo que a liberdade, vetor do Code de Napoleon, volta a ter aquele caráter absoluto e propagador de abusos. Por isso, o Estado Social, ou Estado igualitário, é de melhor valia aos países cuja a sociedade ainda é visivelmente desigual. Nele a liberdade e igualdade se equilibram na legalidade constitucional, donde se percebe a preponderância de figuras jurídicas essenciais tais e qual o princípio da proporcionalidade, o princípio da aplicação direta das normas que definem garantias fundamentais, as técnicas de controle abstrato de constitucionalidade e, ainda, a hegemonia vinculante dos direitos fundamentais. Portanto, no Estado Social, a contrário do Estado-gendarme, é presente a "revolução de métodos para a compreensão axiológica" do sistema jurídico. Dadas essas anotações iniciais, necessário forcejar o sentido e a real dimensão do que seja patrimônio público. Deveras, não adianta espargir a ideia de proteção e defesa ao patrimônio público sem que se saiba seu conceito, sua abrangência e sua importância no contexto social e jurídico.[1]

É nesta percepção que chama atenção o disposto no § 5º do artigo 23 da Lei de Improbidade Administrativa.

Trata-se da inusitada redação introduzida pela Lei nº 14.230/2021 quando, ao prever a propositura da ação de improbidade administrativa como causa interruptiva da prescrição, dispõe que a contagem de seu prazo reiniciará, mas desta vez com redução pela metade.

E não para por aí! Já não bastasse a redução pela metade, de modo que, a partir da propositura da ação de improbidade administrativa o prazo passa a ser de apenas 4 anos, somente uma decisão condenatória prolatada neste período impedirá a consumação da prescrição intercorrente.

Mais diretamente: se a sentença de 1ª instância for absolutória, somente então um acórdão condenatório prolatado pelo tribunal da instância superior, no prazo de 4 anos, contados a partir da data da propositura da ação, será suficiente para impedir a consumação da prescrição.

Com todo respeito aos que creem diferente, apenas desprezando-se a atual realidade dos corredores forenses deste nosso imenso Brasil, permite-se admitir como plausível a ocorrência do julgamento de mérito de uma ação de improbidade administrativa, em segunda instância, com tramitação processual inferior há quatro anos.

O mesmo se diga no caso de uma ação ser julgada procedente em primeira instância, no prazo de quatro anos a contar de sua propositura, mas que venha a ser julgada improcedente em segunda instância, pelo respectivo tribunal. Quem ousa sustentar ser factível, na atualidade, que haja um julgamento de mérito, pelo Superior Tribunal de Justiça, no prazo de quatro anos a contar da prolação da sentença condenatória de primeira instância?

Note-se que para a consumação da prescrição intercorrente, como aponta a letra fria da novel lei, não se exige qualquer desídia do autor, bastando que haja uma absolvição em primeira ou segunda instância para, no cenário atual, tornar-se praticamente impossível evitar que se opere a prescrição intercorrente.

Nem mesmo atos processuais praticados pelo Ministério Público, com nítido viés de atuação positiva, com o evidente escopo de exigir a efetivação do jus puniedi estatal, a exemplo da interposição de um recurso de apelação em face de uma sentença absolutória de primeira instância ou de um recurso especial em face de um acórdão absolutório de segunda instância, são admitidos para justificar o afastamento da ocorrência da prescrição intercorrente que, até então, na percepção da doutrina e da jurisprudência, decorreria da inércia do autor em determinado processo.

Alguns proclamarão: trata-se de uma imposição visando um prazo razoável de duração do processo. No entanto, diante da realidade fática que impera nos corredores forenses, parece que tal dispositivo visa, de fato, validar verdadeiro impedimento ao exercício regular da jurisdição, em flagrante ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no inciso XXXV, do art. 5ª da Constituição da República/88.

Já noutro viés de abordagem, sem adentrar na flagrante inconstitucionalidade de tal dispositivo, oportuno também realçar que o período de tramitação da ação de improbidade administrativa operado anteriormente à vigência da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, não deve ser computado na contagem para fim de consumação da prescrição intercorrente.

A prescrição intercorrente introduzida na Lei 8.429/92 aponta para fases processuais, daí que, caso admitida a constitucionalidade do dito dispositivo, uma vez diante de matéria de direito processual, os quatro anos estipulados para sua consumação, nas ações já em curso quando do advento da Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021, terão necessariamente como marco inaugural o dia em que se iniciou a vigência da novel lei, nos termos do que dispõe os artigos 6º da LINDB e 14 do CPC.

Neste particular, alguns poderão, então, dizer que tal instituto seria de direito material, apontando, inclusive, para um paralelo com a prescrição enquanto causa extintiva da punibilidade na seara penal.

Se assim admitido, creio então estar configurada com ainda maior vigor a inconstitucionalidade de tal dispositivo. Explico.

Nos termos do artigo 109 do Código Penal, o prazo de quatro anos para consumação da prescrição aplica-se, sabidamente, para a extinção da punibilidade dos crimes considerados de menor potencial ofensivo (ou seja, aqueles com pena máxima não superior a dois anos). Tais crimes, nos termos da Lei nº 9.099/95, em regra, processam-se perante o Juizado Especial Criminal e cuja ação penal é precedida da lavratura pela Polícia de simples TCO, o chamado Termo Circunstanciado de Ocorrência.

Ora, nunca é demais lembrar que, assim como a atual ordem jurídica nacional encampa o Princípio Fundamental à Boa Administração Pública, também compreende o Princípio Fundamental à Proteção do Patrimônio Público, até mesmo porque este é pressuposto lógico para aquele. Ditos princípios asseguram a boa atuação estatal e são como corolários da cidadania, princípio geral estruturante e constitucionalmente conformador da ordem jurídico-constitucional brasileira.

Aliás, também é certo afirmar que o Direito à Proteção do Patrimônio Público pode ser catalogado autonomamente como direito fundamental uma vez que, ao assegurar condições materiais que viabilizam a execução de políticas públicas voltadas à concreta satisfação do interesse público, resguarda, ao fim e ao cabo, a liberdade, a igualdade e a dignidade humana.

Dessa forma, mostra-se absolutamente desarrazoado, desproporcional, pretender a consumação da prescrição do jus puniendi estatal em relação a todo e qualquer ato de improbidade administrativa, com o transcurso de prazo correspondente àquele adotado na seara penal para os crimes tidos como de menor potencial ofensivo. A exemplo da conduta de um indivíduo que, dolosamente, após uma discussão banal, agride seu companheiro de "mesa de bar", deferindo-lhe um soco, produzindo-lhe lesões de natureza leve.

Embora creia ser salutar reconhecer a retroatividade da lei benéfica na seara do Direito Administrativo Sancionador, não se permite ignorar a imprescindibilidade de que a aplicabilidade da nova lei, dita mais benéfica, respeite os pressupostos mínimos do atual sistema constitucional (em que a Constituição da República ocupa o centro do ordenamento jurídico).

A LIA integra o microssistema de tutela à probidade, encontrando fundamento constitucional e em tratados na ordem internacional – mormente a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (ou "Convenção de Mérida"), promulgada pelo decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006.

Assim, malgrado reconhecer que a retroatividade da lei mais benéfica seja adequada no âmbito do Direito Administrativo Sancionador (especialmente considerando os direitos e garantias fundamentais), é imperioso também compatibilizá-la com a proteção contra o retrocesso legislativo relacionado aos atos de corrupção (consoante dispõe o artigo 65, item 2, da Convenção de Mérida) e com os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, tanto como instrumentos limitadores dos excessos e abusos dos Estados, como também vertentes contra a proteção insuficiente dos direitos fundamentais.

Nesta linha de intelecção, a violação aos deveres de congruência e equivalência, a insuficiência da tutela disponibilizada, inadequada e ineficaz, o gravíssimo retrocesso legislativo quanto ao enfrentamento aos atos de corrupção, escancaram-se diante de qualquer interpretação que anseie conferir, inadvertidamente, no âmbito das ações de improbidade administrativa tratamento similar ao previsto, na seara penal, para os crimes tidos como de menor potencial ofensivo, no que se refere à extinção do jus puniendi estatal por força da prescrição.

Portanto, seja admitido como norma de direito processual seja como de direito material, irrefutável a inconstitucionalidade do §5º, do artigo 23, da Lei de Improbidade Administrativa, aferida ante a violação dos postulados da razoabilidade (uma vez que ofende o dever de congruência e o dever de equivalência) e da proporcionalidade (já que é desproporcional em sentido estrito por proteger, de forma deficiente, o patrimônio público e o direito a gestão pública proba). Não se ignorando, também, o flagrante desrespeito à Convenção de Mérida, da qual o Brasil é signatário, tendo em vista do gravíssimo retrocesso legislativo que representa em desfavor do enfrentamento à corrupção.

Bibliografia:
MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do patrimônio público, 6ª ed.. Revista dos Tribunais, 2021.


[1] In Controle do patrimônio público. 6ª ed. Revista dos Tribunais, 2021, p. 57/58.

Autores

  • é promotor de Justiça do MP-MG, ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Público do MPMG, pós-graduado em Divisão de Poderes, Ministério Público e Judicialização pelo Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MP-MG.

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