Opinião

Pode o servidor sob teletrabalho residir em domicílio diverso de onde é lotado

Autor

  • Rosana Cólen Moreno

    é procuradora do Estado de Alagoas membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (Clate) especialista em Regimes Próprios de Previdência pela Damásio Educacional coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso-Unesco) e denominada "Desigualdades Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe" educadora professora instrutora palestrante consultora e participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires (UBA).

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15 de março de 2022, 7h07

Hodiernamente uma das mais profundas modificações no mundo do trabalho reside no teletrabalho ou trabalho remoto. É a história confirmando ser cíclica, vez que estamos voltando à ideia de trabalho no domus (casa), situação nos retirada com a Revolução Industrial que levou os operários para as fábricas (onde as diferenças culturais entre chefes e subordinados se acentuaram e onde eram visíveis as classes sociais).

A razão para uma revolução no tecido laboral deve-se exponencialmente ao  avanço da tecnologia, que permitiu a alguns tipos de trabalhadores exercerem usas funções no ambiente doméstico, ou seja, a partir de sua residência.

Para delimitar o tema proposto, urge trabalhar precipuamente a conceituação do teletrabalho. Nesta liça, a Organização Mundial do Trabalho  OMS, conceitua o teletrabalho como "a forma de trabalho realizada em lugar distante do escritório e/ou centro de produção, que permita a separação física e que implique o uso de uma nova tecnologia facilitadora da comunicação [1]".

Destaque-se que sem a utilização de recursos tecnológicos, não há que se falar em teletrabalho. O Superior Tribunal do Trabalho deixou consignado em sua cartilha sobre o tema que "o teletrabalho é necessariamente realizado com recursos tecnológicos. Além disso, a atividade poderia ser exercida perfeitamente dentro das dependências do empregador, mas é realizada em outro local" [2].

O sociólogo Domenico De Masi faz a seguinte elucubração a respeito da afirmação acima levantada:

"Hoje, que o trabalho intelectual se confunde cada vez mais com o estudo e a diversão, os escritórios tradicionais em que ele se desenvolve são cada vez menos capazes de acolhê-lo, enquanto os sites e as redes sociais fornecem a plataforma perfeita para a atividade pós-industrial, que se mostra cada vez mais flexível, abstrata, ubíqua e criativa, permitindo aos trabalhadores que se tornem ao mesmo tempo isolados, conectados, nômades e fixados, onde quer que estejam" [3].

Não se pode esquecer que o teletrabalho tem muitas facetas positivas, as quais podemos enumerar algumas a titulo de exemplificação: 1) evita deslocamentos, o que inclui enfrentamento do trânsito, sujeição aos transportes coletivos na maioria deficitários; 2) economia de tempo, o que permite maior tempo livre, inclusive para lazer e terapias; 3) maior convivência familiar, o que representa maior apoio aos filhos, idosos e deficientes; 4) economia de energia e recursos minerais, como gasolina; 5) permite a descentralização do trabalho; 6) menos ocorrência de acidentes; 7) menos recursos financeiros despendidos na manutenção de vias públicas; viii) melhoria do meio ambiente, com menos poluição e emissão de gás carbônico; 8) menos gastos com vestiários  roupas e sapatos, uma vez que as vestimentas no âmbito familiar dispensam os rigores da moda e formalidades em eventos; e 9) menor exposição à patógenos: fungos, protozoários, bactérias e vírus.

Antes da reforma trabalhista, o teletrabalho já possuía previsão legal, conforme Lei nº 12.551/2011, que permitiu com que muitas instituições no âmbito da Administração Pública, passassem a considerá-lo. Neste sentido, temos, dentre outras, a Portaria RFB 947/12, da Secretaria da Receita Federal do Brasil; a Resolução Administrativa 1.499/12 do Tribunal Superior do Trabalho; a Portaria n° 139/09 do Tribunal de Contas da União; a Portaria MF 171 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Resolução 227/16, do Conselho Nacional de Justiça.

Por seu turno, o artigo 3º da sobre-citada Resolução 227/2016, do CNJ, enumera objetivos do teletrabalho:

"Artigo 3º São objetivos do teletrabalho:
I – aumentar a produtividade e a qualidade de trabalho dos servidores;
II – promover mecanismos para atrair servidores, motivá-los e comprometê-los com os objetivos da instituição;
III – economizar tempo e reduzir custo de deslocamento dos servidores até o local de trabalho;
IV – contribuir para a melhoria de programas socioambientais, com a diminuição de poluentes e a redução no consumo de água, esgoto, energia elétrica, papel e de outros bens e serviços disponibilizados nos órgãos do Poder Judiciário;
V – ampliar a possibilidade de trabalho aos servidores com dificuldade de deslocamento;
VI – aumentar a qualidade de vida dos servidores;
VII – promover a cultura orientada a resultados, com foco no incremento da eficiência e da efetividade dos serviços prestados à sociedade;
VIII – estimular o desenvolvimento de talentos, o trabalho criativo e a inovação;
IX – respeitar a diversidade dos servidores;
X –considerar a multiplicidade das tarefas, dos contextos de produção e das condições de trabalho para a concepção e implemento de mecanismos de avaliação e alocação de recursos".

Posteriormente e no sentido de regulamentar a matéria, a Lei nº 13.467/2017 (reforma trabalhista), incluiu no corpo da CLT, o Capítulo II-A, nomeado do teletrabalho, acrescentando os artigos 75-A, 75-B, 75-C, 75-D e 75-E à CLT. Para nossa análise, vale colacionar o caput do artigo 75-B: "considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo".

Não se pode olvidar que o teletrabalho já havia sido inserido no campo legislativo antes da pandemia Covid-19. Contudo, com esta, além do teletrabalho ter sido intensificado haja vista as restrições de circulação de pessoas e obrigatoriedade de distanciamento social, o teletrabalho atingiu em cheio o setor público.

No âmbito dos entes federativos foram editados vários decretos com autorização expressa do teletrabalho para os servidores públicos, como medida de caráter excepcional. Conjuntamente houve previsão da obrigatoriedade de atingimento de metas pelos servidores que optassem pelo sistema de teletrabalho.

Todavia, na falta de regulamentação geral e abstrata da matéria [lei em sentido estrito], muitas disparidades normativas e interpretativas podem ocorrer no setor público acerca do tema aqui proposto.

Não podemos desconsiderar que a maioria dos cargos preenchidos na Administração Pública são provenientes de certames públicos. Neste contexto, temos que muitas pessoas deixam suas terras natais quando são aprovados nos certames e o teletrabalho poderia ser uma oportunidade de retorno ao ambiente domiciliar anterior.

Acerca da temática referente à possibilidade de mudança de domicilio ocasionada pelo teletrabalho, temos que: 1) não se enquadra dentro das hipóteses de afastamento do servidor público, pois não se cuida de afastamento; 2) não se adéqua às hipóteses de trabalho no exterior [missão no exterior e missão diplomática], e nem de deslocamento à serviço;  3) não se trata de remoção,  redistribuição, aproveitamento, recondução, reintegração ou readaptação; e 4) não se pode falar em transferência do servidor público para outra localidade.

E é sobre este último que a dúvida é levantada: poderia o servidor público ser transferido voluntariamente para outra localidade com a permissão do teletrabalho que lhe foi concedida?

Para responder à indagação, urge preliminarmente escrutinar as disposições contidas nos artigos 70, 71, 72 e 76 do Código Civil Brasileiro, que cuidam do domicílio da pessoa natural.

O Estatuto Material Civil prevê a hipótese de duplicidade ou até mesmo multiplicidade de residências. No entanto, a norma contida no artigo 76, por ser norma de caráter especial prevalece sobre a norma de caráter geral. O dispositivo revela o domicilio do servidor público na classificação de legal ou necessário, sendo que "decorre de mandamento da lei, em atenção à condição especial de determinadas pessoas. Assim, têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso […]" [4]. O dispositivo fala claramente que o domicílio "do servidor público é o lugar em que exercer permanentemente suas funções; […]".

Portanto, subtrai-se que o domicilio legal ou necessário não é voluntário, pois decorre da lei. Ao não ser voluntário, não comporta opção.

Uma hipótese de exercício do teletrabalho, por estar o servidor em localidade diversa nos parece bem óbvia: a que objetiva acompanhar cônjuge. Uma vez prevista a remoção como direito do servidor, nada mais coerente do que possibilitar o teletrabalho caso o servidor não queira a remoção ou não sendo essa possível.  

Também é possível, sem maiores questionamentos, a mudança de domicílio do servidor público que ingresse em universidade pública fora de seu domicilio laboral e que se comprometa a prestar o teletrabalho a contento, inclusive com o atingimento de metas. Ora, se é obrigatório que a universidade pública aceite a transferência de servidor público que passou em concurso público fora do domicilio estudantil, também haverá se ser permitido o ingresso na universidade pública fora de seu domicilio laboral, o que pode ser realizado à vista do teletrabalho. Temos assim, a observância do artigo 205 da Constituição Federal, que preleciona: "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Vale mencionar que o STF se posicionou no sentido de que  constitucional a previsão legal que assegure, na hipótese de transferência ex officio de servidor, a matrícula em instituição pública, se inexistir instituição congênere à de origem". (RE 601.580, relator ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 19/09/2018, e DJe 20-02-2020)

Fora essas hipóteses aqui levantadas, como ficariam os servidores públicos que a despeito de estarem sob o manto do teletrabalho, resolvessem mudar para localidade diversa? De pronto exceptuam-se da indagação os servidores públicos cuja obrigatoriedade de residirem nas comarcas vem expressamente prevista em suas leis orgânicas (por exemplo: magistrados e membros do Ministério Público).

No caso do servidor comissionado ou daquele com função gratificada,  cuida-se de estar presencialmente no local de trabalho sempre que solicitado, ou seja, sem prazo para se apresentar. Descaracteriza a confiança o fato do servidor se valer do benefício de morar residir em outra localidade, uma vez que o vínculo jurídico administrativo exige proximidade das pessoas envolvidas.

Confiança é contrário de incerteza. Nesta senda, como se tratar de confiança (a presença física do servidor sempre que solicitado), estando o mesmo em domicilio distinto e por vezes distante?

Acerca da situação do servidor aprovado em concurso público e que ainda não conquistou a estabilidade, posto que não cumpriu o período do estágio probatório, deve se ponderar para o fato de que o mesmo deve ter contato físico com as dependências do serviço público de modo a conhecer as nuances que regem a Administração Pública. O estágio probatório é, por assim dizer, a escola do labor público.

Sobre o servidor público estável e efetivo, a permissão parece bem sustentável. No entanto, há argumentos em sentido contrário. Um deles reside no campo da moralidade administrativa.

A alegação mais robusta seria o fato de que o servidor [e aqui serve para todas as categorias de servidores públicos] recebe dos cofres públicos em um domicilio e gasta seus subsídios/vencimentos em outro. Essa premissa inclui tributos, que seriam recolhidos fora do âmbito da incidência da fonte pagadora. São bons exemplos o IPTU, IPVA, ICMS. Sobre este último não se pode deixar de considerar a chamada "guerra fiscal" entre os estados.  

Com base nessas ilações e em todos os casos, há que se observar com vagar o princípio da moralidade administrativa, que trabalha os valores éticos sociais, numa ideia comum de honestidade.

Celso Antônio Bandeira de Mello, analisando o princípio da moralidade administrativa leciona que de acordo com ele, "a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação do próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do artigo 37 da Constituição" [5].

Por sua vez, Hely Lopes Meirelles citando Maurice Hauriou, doutrina que "[…] o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto" [6].

Ocorre que "a moral está intrínseca e necessariamente vinculada ao trinômio: cultura/história, sociedade e natureza humana. Toda vez que contraria uma dessas dimensões, ela tem de ser questionada em seus fundamentos" [7].

Nesta liça, é a coletividade que não pode ser afetada. Em outras palavras, a diretriz da Administração Pública que é o interesse público estaria sendo prejudicado. A explicação estaria no fato de que, como já mencionado, com o deslocamento do servidor público para localidade diversa sob o manto do teletrabalho, os ganhos financeiros do servidor público pagos diretamente com recursos do Tesouro Público (a fonte pagadora), seriam desvirtuados e empregados em outras localidades.

Pelo exposto, concluímos que a lógica seria atender a sequência servidor municipal no município, servidor estadual no estado e servidor federal no território brasileiro. Essa é a única leitura do artigo 76 do Código Civil que entendemos ser possível de forma a se harmonizar com os princípios da Administração Pública. É a recognição que entendemos mais justa e que não subtrai as benesses do teletrabalho.


[1]THIBAULT ARANDA, Javier. El teletrabajo: análisis jurídico-laboral. Consejo econômico y social, Madri: 2001, p.19.

[3] DE MASI, Domenico. Uma simples revolução. Rio de Janeiro: Sextante, 2019, p. 125.

[4] GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 288-289.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 123.

[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90.

[7] PEREIRA, Otaviano. O que é moral. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 14.

Autores

  • é procuradora do Estado de Alagoas, membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (Clate), especialista em Regimes Próprios de Previdência pela Damásio Educacional, coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso-Unesco) e denominada "Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe", educadora, professora, instrutora, palestrante, consultora e participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires (UBA).

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