Opinião

A primavera brasileira e a criação do SUS

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  • Lenir Santos

    é advogada sanitarista doutora em saúde coletiva pela Unicamp professora colaboradora da Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

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8 de abril de 2022, 12h01

A primavera brasileira ocorreu nos anos que antecederam a Constituição de 1988, com o movimento político-social das Diretas Já, a mobilização popular para a anistia, o processo de redemocratização, a instalação de uma assembleia nacional constituinte para instituir um estado democrático de direito destinado a assegurar direitos sociais e individuais, com os da liberdade, do bem-estar e outros valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Esse novo pacto político, a Constituição da República Federativa de 1988, era a promessa de nosso welfare que governos europeus implementaram em seus países no pós-guerra, na efervescência das conferências de paz ocorridas ao fim da guerra, unindo nações em torno da paz e do desenvolvimento, com a instituição da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945.

Nessa esteira, em 1948, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, referência mundial do reconhecimento da dignidade e de direitos inalienáveis do ser humano, como a vida, a saúde, a liberdade, ano em que também foi instituída a Organização Mundial da Saúde (OMS) que definiu saúde não como a ausência de doença, mas como um estado de completo bem-estar físico, psíquico, social.   

Bastariam a Declaração Universal e a criação da OMS e o conceito biopsiquicossocial da saúde para o reconhecimento pelas nações do direito à saúde e a consequente necessidade de garantir serviços públicos de acesso universal, elevando a saúde para além de objeto de consumo. Se antes os serviços de saúde somente eram acessíveis às pessoas com recursos financeiros, mudou-se essa concepção ao reconhece-la como direito natural do ser humano, integrando ordenamentos jurídicos e definição compreensiva dos fatores determinantes e condicionantes econômico-sociais.

A partir daí diversas democracias europeias consideravam a saúde como serviço público de acesso universal, como é o caso do sistema inglês, estruturado em 1948; do italiano, espanhol, francês, português, criados a seu tempo, que passaram a servir de modelo para outros países.

O Brasil passou a discutir, de modo mais sistematizado, saúde como direito a partir dos anos 1970, com o movimento da reforma sanitária a ganhar corpo pelos ventos da redemocratização e da promessa de instalação de uma assembleia nacional constituinte para dar à Nação uma nova constituição, e pôr fim a de 1967, própria do regime militar, incompatível com um estado democrático de direito.

Na esteira dos movimentos pro-redemocratização, em 1987 criou-se o Programa dos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS), convênio firmado pelos estados e pela União   denominado convênio SUDS  que tornava realidade propostas do movimento da Reforma Sanitária.

Na ocasião, a antevisão da democracia levaram muitos profissionais a ocuparem cargos importantes no governo federal, no Inamps e no Ministério da Saúde, fato que permitiu a instituição do Programa SUDS cujo escopo era a união dos serviços federais do Inamps aos estaduais, garantindo à população acesso universal, até então restritos aos beneficiários da Previdência Social. Era o começo da implantação do SUS em seu sentido principiológico, ainda que só instituído em 1988 pelo artigo 198 da Constituição.

O SUDS ganhou corpo em todos os estados, fazendo surgir lideranças municipais e estaduais, dando voz a especialistas, sanitaristas; expressão ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) que, criado em 1986, nem mesmo de uma sala dispunha;  e promovendo a criação do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems).

O SUDS foi de grande importância na Assembleia Nacional Constituinte pelos frutos que estava a dar, demonstrando, na prática, as vantagens de um sistema integrado e descentralizado de saúde. A sua realidade era tal que a própria Lei n° 8.080, de 1990, em seu artigo 50, rezava que o convênio SUDS seria rescindindo na medida em que o seu objeto fosse sendo absorvido pelo SUS. E assim foi.

Por ironia, o governo eleito sob a égide da Constituição da primavera brasileira foi Fernando Collor, a defender bandeira na linha de governos neoliberais que surgiam desde 1979,  uma vez que o Brasil adotou o welfare tardiamente, 40 anos após os governos europeus o abraçarem. Pois foi justamente quando os ventos do neoliberalismo de Thatcher com a proposta de revisão dos direitos sociais, a vender a imagem de Estado mínimo, Estado forte, que o SUS começou a ser implantado.

Assim, o SUS, próprio de um estado de bem-estar social, foi sendo organizado e implementado à luz do pensamento neoliberal do Governo Collor que discutia o tamanho do Estado, sem considerar qual Estado necessário para implementar a Constituição Cidadã, sem os adjetivos mínimo, máximo, mas sim qual Estado necessário para cumprir a Constituição e construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais.

A partir do governo Collor, os governos que o sucederam propuseram reformas no aparelho do Estado, tendo a reforma administrativa do Governo FHC trazido mudanças que pouco acresceram na melhoria dos serviços públicos; esses governos também retraíram direitos sociais ao não os implementarem ou implementando-os parcialmente, pela asfixia de seu financiamento, como é o caso da saúde. Assim  la nave va até os dias de hoje, entre melhorias que não negamos existirem, mas com muita protelação e mitigação na implementação de políticas públicas sociais.   

Ainda que mitigado, o SUS foi se estruturando Brasil afora, sendo lastimável ver o desmantelamento de políticas de saúde,  com gestores e dirigentes, que além de desconhecerem o SUS e mal compreenderem o seu papel social perante a população, atuam deliberadamente na desestrutura de seu desenho institucional criando, dentre outros aspectos, animosidade federativa num sistema essencialmente interfederativo. Lastimável porque com um pouco mais do que o SUS teve durante esses 33 anos, ele poderia ser mais qualitativo, mais eficiente, mais suficiente para a população. A pandemia da Covid-19 demonstrou isso. Não precisaria de muito mais do que cumprir o paradigma de seu financiamento dado pelo artigo 55 do ADCT e cumprir o artigo 200 da Constituição e suas oito principais atribuições.

Os males da pandemia da Covid-19 evidenciou o potencial do SUS e deixando patente as boas gestões nos anos anteriores pelas respostas ao enfrentamento da Covid-19. Contudo a sua governança nacional apresentou inumeras vulnerabilidades, tendo ficado claro o poder destrutivo daqueles que não conhecem a organização e o funcionamento do SUS e não comungam de seus ideais consagrados em  princípios e diretrizes constitucionais.

O SUS é um sistema de complexa organização e funcionamento jurídico-administrativo e sanitário, que requer obrigatoriamente o conhecimento de suas estruturas e atribuições, fortemente marcadas pela prevenção e integração de serviços em âmbito regional. Infelizmente o SUS corre risco a continuar a ser subfinanciado e desestruturado, ensejando o desânimo daqueles que nele trabalham e militam a seu favor e consequentemente fazendo com que a população não seja atendida em suas  necessidades de saúde.

Já passou da hora de considerar de fato que a saúde é direito humano fundamental e que todas as suas ações e serviços, públicos ou privados, são de relevância pública, estando sob resguardo público. Que as autoridades sanitárias reconheçam e se orientem por esses conceitos e a população exerça o seu poder de controle social.

Autores

  • é advogada sanitarista, doutora em saúde pública pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

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