Opinião

Tríade para harmonia das relações consumeristas deve partir da educação

Autor

  • Ellen Gonçalves

    é advogada vice-presidente da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB e sócia-fundadora do PG Advogados especialista em Direito do Consumidor e Resolução de Conflitos e em Contencioso de Alta Complexidade mestre em Direito Político e Econômico LLM em Direito Empresarial com ênfase em Direito do Consumidor e autora de O Direito do Consumidor e os Juizados Especiais Cíveis (IOB Thomson 2006) e Uma Lei para Todos - A História dos 30 Anos do Código de Defesa do Consumidor (Atelier de Conteúdo 2020).

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14 de novembro de 2022, 10h19

Quando olhamos todo o sistema de defesa do consumidor, nos deparamos com relações consumeristas muito mais avançadas se compararmos com o que havia em 1990, ano em que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi sancionado. Claro que há muito o que melhorar, até porque as leis são vivas e devem acompanhar os avanços comportamentais da sociedade, atendendo suas necessidades, mas também precisamos celebrar os progressos. Hoje em dia, as pessoas possuem muito mais consciência de seus direitos no momento de adquirir um produto ou contratar um serviço, e as empresas também se tornaram mais conscientes e procuraram melhorar seus canais de atendimento.

O arcabouço legal é profundo e sólido. E nessas mais de três décadas de CDC, fizemos bem o nosso papel para o cumprimento da lei. Em nosso escritório, sempre busquei que os clientes adotassem as melhores práticas para atender os consumidores, porque acreditamos profundamente no princípio da harmonização das relações de consumo. Um mercado regulamentado possibilita o acesso livre às informações e aos parâmetros que garantem, no mínimo, a autonomia em toda jornada de compra das pessoas. Contudo, isso não está sendo suficiente.

Podemos dividir essa reflexão em três momentos: o primeiro deles versa sobre a discussão, criação e sanção do CDC. O segundo, a divulgação massiva dos critérios da legislação e a atuação dos órgãos reguladores para que ela fosse cumprida. Caminhamos bem até aqui. O terceiro momento agora, está relacionado com uma questão de responsabilidade social, que envolve as  iniciativas público-privadas direcionadas para a educação para o consumo. Ainda temos muito a avançar neste caminho.

Mas e o princípio da informação e da transparência? Não seria ele a bússola que garante essa educação consumerista? De fato, ele figura entre os direitos essenciais do consumidor, tendo posição de destaque no texto legal e aparecendo em vários momentos no CDC. Por exemplo, no artigo 6º, inciso III, é garantido o acesso à "informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre o risco que apresentem".

Mas obter a informação não significa entendê-la e tomar consciência para ter autonomia na hora de consumir. Parece que o princípio da educação está encoberto pelo da informação, impossibilitando reflexões por parte dos agentes que constituem toda a cadeia de consumo.  São dois fundamentos distintos que se complementam e necessariamente precisamos falar sobre isso. Defendo que o direito à educação, liberdade de escolha e informação adequada, além de serem princípios básicos do CDC, são a garantia do equilíbrio das relações entre fornecedores de produtos e serviços e àqueles que os adquirem. E isso tudo é importante, porque os impactos dessas relações nos aspectos econômicos, sociais e políticos do País são gigantescos – mas não entrarei nessa discussão por hora.

O que é, então, essa educação para o consumo? Em linhas gerais, sua finalidade é informar e aconselhar o consumidor com relação ao uso adequado dos produtos e serviços solicitados. O capítulo II, artigo 4º, do CDC, dentre outros incisos, reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, preconiza uma ação governamental de proteção efetiva, além da educação e da informação de consumidores e fornecedores em relação aos seus direitos e deveres. Nesse sentido, essa educação tem seus objetivos direcionados para o âmbito social e visa a reflexão e a mudança de atitude no comportamento do consumidor/cidadão.

É um convite fundamentado para ressignificar as relações de consumo de forma a contribuir para que as pessoas assumam postura cidadã em relação às compras de bens e serviços, compreendam suas vulnerabilidades e, sobretudo, se conscientizem acerca dos recursos financeiros disponíveis no mercado.

Em um país que contabiliza 77,3% de famílias endividadas, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada em junho deste ano, focar na educação é urgente.  Passamos anos discutindo ações que resultaram na importante Lei do Superendividamento, sancionada há mais de um ano, e que se apresenta como uma solução ótima para beneficiar consumidores inadimplentes e empresas credoras que são impactadas por essas dívidas, mas ainda estamos com dificuldades de incluí-la na rotina das pessoas. E isso também atribuo a esse gap da educação  o "calcanhar de Aquiles" do Brasil de maneira geral.

Esse diálogo vai muito além da oferta de manual de utilização, que vem nos produtos que compramos, a fim de orientar sobre como utilizar o produto ou o serviço de forma adequada. Essa discussão versa sobre orientar as pessoas sobre a saúde financeira e compreender suas possibilidades diante dos recursos que o mercado oferece; é explicitar a diferença entre ser consumidor e consumista. Para além, é revelar o jogo do consumo, mostrar com transparência total a cadeia produtiva de tudo que compram  e aqui também me refiro à consciência de sustentabilidade e fundamentos ESG, também urgentes globalmente.

O CDC é principiológico, ou seja, estabelece fundamentos que garantem o equilíbrio entre consumidor e empresa. Para tanto, empresas e o setor público podem e devem assumir a responsabilidade de promover ações efetivas que aprimorem a via da educação. Educar é algo profundo, que se fomenta na base da formação do indivíduo com valores morais e consciência sobre seu papel na sociedade em todos os aspectos.

A informação deve existir sempre, de maneira adequada e clara. A liberdade de escolha deve ser garantida. Mas tudo isso só é possível quando o consumidor estiver educado sobre sua importância na jornada do cliente, seu papel e posicionamento social, seu raio-x financeiro e, por fim, tiver a consciência de consumo como valor moral, pessoal e intransferível.

Autores

  • é advogada, vice-presidente da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB, CEO e sócia-fundadora do PG Advogados. É especialista em Direito do Consumidor e referência em Resolução de Conflitos e em Contencioso de Alta Complexidade. Mestre em Direito Político e Econômico, LLM em Direito Empresarial. É autora de “O direito do consumidor e os juizados especiais cíveis" (IOB Thomson, 2006) e “Uma lei para todos — A história dos 30 anos do Código de Defesa do Consumidor" (Atelier de Conteúdo, 2020).

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