Embargos Culturais

Fake news e lawfare em O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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8 de janeiro de 2023, 8h00

O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, estreou no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro, em 7 de julho de 1961. Definida pelo autor como "uma tragédia carioca em três atos e 13 quadros" a peça teria sido um pedido de Fernanda Montenegro, que protagonizou Selminha na primeira versão.

Spacca
Tem-se uma narrativa assustadora e atual. Um delegado corrupto (Cunha) e um jornalista inescrupuloso (Amado Ribeiro) engendram uma trama, a partir de um acidente de trânsito, imaginariamente ocorrido na Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro. Um transeunte foi atropelado por uma lotação. Caiu no chão. Foi beijado por um outro transeunte que o socorreu. Tem-se início uma farsa sinistra. O repórter inescrupuloso assistiu a tudo. Correu para a delegacia. Iria pressionar o delegado e obter daí uma história estonteante.

O delegado pretendia valer-se da tragédia para recompor sua imagem pública, que fora abalada por reportagens do jornalista inescrupuloso, ao qual se associa. Também havia sido violento com uma mulher grávida, o que lhe causara problemas com seus superiores.

O jornalista queria vender o jornal. Está nítido que trabalha na Última Hora, de Samuel Wainer, aliado de Getúlio, inimigo de Carlos Lacerda. Nelson Rodrigues tinha um colega de trabalho com o nome do jornalista inescrupuloso (Amado Ribeiro). Gustavo Bernardo, em posfácio a uma das edições de O Beijo no Asfalto nos dá conta de que o verdadeiro Amado Ribeiro não teria se incomodado com a alusão, dizendo-se, inclusive, pior do que o jornalista da peça.

A peça inicia-se com um pacto entre o delegado e o repórter. Este último narra ao delegado que tem uma história espetacular, que pode salvar a reputação do delegado. Refere-se ao atropelamento. Um transeunte (Arandir, o personagem principal) socorreu a vítima, a quem beijou, na frente de todos, inclusive do sogro (Aprígio). Tem-se a impressão de que o moribundo pedira o beijo. É um fato, o beijo existe. Lembra-nos Valmir Ayala que Arandir beijou a boca do homem atropelado, com testemunhas. Na leitura psicanalítica que Hélio Pelegrino fez da peça, há um mural primitivo pintado com sangue e excremento. O beijo no asfalto tem de fato uma conotação homossexual, e essa conotação será o fio condutor da peça.

Aprígio, indignado, conta o ocorrido a sua filha (Selminha). Esta defende o marido, em quem confia, obstinadamente. Amar, segundo Nelson Rodrigues, é dar razão a quem não a tem. Mas Selminha vai mudar de opinião. O repórter publicou matéria noticiando o ocorrido, Arandir foi pressionado para confessar que espontaneamente beijara o atropelado.

A vizinha fofoqueira (Dona Matilde) insinua com Selminha que Arandir a traíra com um homem, a quem beijara no acidente. Os colegas de trabalho de Arandir fazem brincadeiras grosseiras e o chamam de "viúvo". Isto é, teria perdido o marido no acidente, beijando-o em seguida. A viúva do atropelado é também pressionada pela polícia para reconhecer que seu marido conhecia Arandir. Selminha questiona o marido e paulatinamente deixa de mostrar a confiança que tinha até então, recusando-se inclusive a beija-lo. Arandir deixou o emprego. Tornou-se uma celebridade (negativa) e era reconhecido na rua. Envergonhava-se. Começou a duvidar das questões que o levaram ao beijo, para ao fim reconhecer que não se arrependia do que fez.

Selminha foi conduzida ao encontro do delegado e do repórter, por quem foi despida e maltratada. A viúva, que também fora pressionada, foi levada a Selminha, para quem disse que o morto e Arandir tomaram banho juntos em sua própria casa. Em discussão com Selminha o pai insistiu que Arandir e o morto eram amantes.

O jornal acusava Arandir de ter provocado o acidente, chamando-o de pederasta e criminoso. A cunhada (Dália) foi ao encontro de Arandir, para quem se declarou; desejava o cunhado. Na cena final o sogro (Aprígio) e Arandir se encontram. O desfecho é desconcertante. Não posso contar aqui. O leitor que leia a peça, ou que aguarde uma oportunidade para assisti-la, ou que então se informe com as três versões cinematográficas que há, respectivamente de 1964 (Flávio Tambellini), de 1981 (Bruno Barreto) e de 2018 (Murilo Benefício). Isto é, façamos de conta de que não há o google.

O Beijo no Asfalto é uma fortíssima crítica à violência policial, à manipulação das notícias, tendo como pano de fundo insuspeitos dramas familiares. Extremamente apropriada para os dias de hoje, a peça preocupa-nos. Quando imprensa e autoridades policiais se aliam na busca de um inimigo comum não sobra pedra sobre pedra.

Em O Beijo no Asfalto tem-se o enredo típico da destruição da imagem de uma pessoa, hoje em dia vista em episódios de "fake news" e de "lawfare". É a imprensa em associação com as autoridades constituídas para a destruição de uma pessoa. Em O Beijo no Asfalto, imprensa e polícia conseguiram, literalmente, ainda que o desate seja inesperado. Talvez todos os personagens da peça desprezam em Arandir o que não suportavam em si mesmos.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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