Garantias do Consumo

A efetivação do atendimento ao superendividado: a experiência de MG (parte 2)

Autor

  • Glauber S. Tatagiba do Carmo

    é mestre em Direito do Estado pela Unifran-SP promotor de Justiça do estado de Minas Gerais coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte e coordenador estadual do Procon-MG.

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4 de janeiro de 2023, 8h00

Apesar da classificação doutrinária de consumidor superendividado [1], e dos aspectos sociais e filosóficos [2] envolvidos, vemos na prática uma infinidade de circunstâncias e características que tornam o cidadão superendividado, portanto sabemos que a realidade é mais rica que qualquer classificação legal ou doutrinária. Dentro deste panorama, uma distinção salta aos olhos no dia a dia, que é entre o superendividado de crédito e consumo.

Devemos lembrar que entre o ato volitivo de consumir e o efetivo consumo está — em muitas situações — o crédito, não no sentido técnico, mas como meio necessário para aquisição de produtos e serviços, sem o qual, não há consumo. O superendividado de crédito representa a grande maioria dos consumidores que procuram atendimento no Programa de Atendimento ao Superendividado (PAS), situação que veio se agravando, sem dúvida alguma, a partir da Lei nº 10.820/2003, que criou a opção do crédito consignado [3].

O caráter compulsório da cobrança do empréstimo como padrão no crédito consignado trouxe um novo elemento que potencializou a situação do superendividado, qual seja, a dificuldade (impossibilidade mesmo) de negociação, já que os pagamentos das parcelas são obtidos diretamente dos vencimentos/proventos do consumidor, independente de qualquer manifestação. Assim, as tratativas que já eram desequilibradas (diante da hipossuficiência acentuada de grande parte do consumidor superendividado), tornaram-se quase inexistentes, face ao desdenho dessas instituições em realizarem qualquer negociação, em flagrante desrespeito ao princípio da exceção da ruína, negociação que quando ocorre é para prejudicar o consumidor, com o oferecimento de novos produtos e linhas de crédito, sempre com um custo maior [4].

Com a tentativa de desconcentração bancária promovida no Brasil e a participação de novos entrantes no mercado de concessão de crédito, muitas dessas instituições com grande parte de sua carteira composta exclusivamente ou quase na sua totalidade pelo crédito consignado e/ou cartão de crédito consignado, aliado à falta de atuação eficaz da autoridade reguladora, o Banco Central do Brasil e à falta de crescimento econômico (que faz com que o governo fomente o aumento do consumo com o excesso de crédito), formou-se o ambiente perfeito para que o superendividamento se tornasse o principal problema na área do direito do consumidor.

Um volume considerável de consumidores que procuram atendimento por problemas financeiros se vê premidos pelo excesso de crédito, que por vezes consome mais de 80% dos seus rendimentos líquidos, chegando a casos de 120%, tornando inviável a manutenção do mínimo existencial de qualquer cidadão, consoante dispõe o §1º do artigo 54-A do Código de Defesa do Consumidor, sobretudo daquele consumidor hipossuficiente, aposentado/pensionista que ganha até 2 salários-mínimos [5] [6]

Essa tipologia de superendividado é que prioritariamente o PAS atende e dá o tratamento nos termos do que dispõe a Lei 14.181/2021, sem excluir o atendimento e o encaminhamento dos demais casos que demandam uma atuação efetiva dos órgãos integrantes do sistema estadual de defesa do consumidor.

Repita-se aqui a percepção da dificuldade que órgãos integrantes do SNDC vêm enfrentando na tarefa de dar concretude no tratamento pré e processual do superendividado, além do caráter econômico que envolve o plano de pagamento, aliado à juventude da alteração legislativa; há ainda a falta de conhecimento por parte da magistratura nacional do alcance e possibilidades da recente legislação, somando-se ao fato de inexistir varas especializadas na seara consumerista na maioria das unidades jurisdicionais federativas.

Por isso, existe a preocupação de repassar para o Judiciário a logística da construção dos fluxos, o trabalho desenvolvido e os parâmetros traçados pela Lei 14.181/2021, a fim de que aqueles órgãos com competência para o julgamento da matéria contribuam de forma efetiva para aprimorar os procedimentos da ação de repactuação e a confecção do plano de pagamento, que no PAS já é apresentado no pré-processual nos termos do artigo 104-C do CDC, prestigiando a efetividade da atuação dos órgãos integrantes do Sistema Estadual de Defesa do Consumidor.

O plano de pagamento é confeccionado de acordo com a realidade do consumidor e apresentado por ele, devidamente assistido por defensor público, em audiência com os credores seguindo os parâmetros, verdadeiras garantias, prescritos no artigo 104-A do CDC, ou seja, dentro do prazo máximo de cinco anos, de forma global e respeitando o mínimo existencial do consumidor.

Para a confecção correta do plano de pagamento seriam necessários os seguintes documentos: data da operação, valor emprestado, valor liberado, prazo de pagamento, taxa de juros data de vencimento da primeira parcela, quantidade de parcelas pagas e saldo devedor atual. Tudo isso poderia constar de um extrato de evolução da operação [7].

Entretanto, diante das dificuldades do fornecimento destas informações pelas instituições financeiras, apesar de requerido insistentemente, o plano de pagamento tem se valido apenas do saldo devedor na data da audiência. Além disso, como registrado na primeira parte deste artigo [8], sem considerar as taxas de juros, encargos administrativos, assim como a definição da ordem cronológica das dívidas, já que o objetivo neste momento é a resolução consensual, de modo a possibilitar a recuperação e equilíbrio financeiro do consumidor superendividado [9], de forma mais rápida e eficiente possível.

Não olvidamos que o Poder Judiciário brasileiro enfrenta dois problemas crônicos: volume de processos e morosidade, ambos influenciados por fatores externos, como leis processuais, uma cultura de litigiosidade excessiva e recentemente pela denominada advocacia predatória. É com essa preocupação que o sistema do tratamento do superendividado adotado pelo PAS zela pela objetividade, delineando com contornos mais precisos possíveis o conteúdo da ação de repactuação, que terá como objeto, nesta fase inicial, prioritariamente, as dívidas provenientes do excesso de crédito. Isso porque com a adequação das dívidas com o crédito a 30% dos rendimentos líquidos do consumidor [10], será possível negociar suas eventuais outras dívidas de consumo, inclusive, com o auxílio dos órgãos integrantes do PAS, caso necessário.

 


[1] A doutrina europeia, inserida entre nós pela prof. Cláudia Lima Marques, distingue superendividamento passivo, quando o consumidor não contribuiu para a crise de solvência e de liquidez, e superendividamento ativo, quando o consumidor "consome" demasiadamente acima das possibilidades de seu orçamento, e, assim, deixa de ter condições para fazer frente às dívidas assumidas.

[2] Conferir a esse respeito LIPOVETSKY, Gilles. A FELICIDADE PARADOXAL: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo, Companhia das letras. 2007 e BAUMAN, Zygmunt. VIDA PARA O CUNSUMO: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro, Zahar. 2008.

[3] O valor concedido em 2021 nessa modalidade somou R$ 231,2 bilhões. (Banco Central do Brasil. Relatório de Economia Bancária 2021, p.26. https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioeconomiabancaria).

[4] O lucro líquido do setor bancário em 2021 foi de R$ 132 bilhões, 49% superior ao registrado pelo sistema em 2020 e 10% acima do observado em 2019. Os resultados são explicados pelo crescimento da margem de juros, a redução das despesas com provisões (reserva sobre riscos de crédito) e os ganhos de eficiência. (Banco Central do Brasil. Relatório de Economia Bancária 2021, p. 9. https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioeconomiabancaria).

[5] Em dezembro de 2020, dentre os tomadores de crédito consignado vinculados ao INSS, 73% possuíam renda de até dois salários-mínimos. Este perfil de renda foi responsável por 57% do volume financeiro concedido para clientes beneficiários do INSS. (IDEC. Os impactos de crédito consignado no endividamento de aposentados do INSS. p. 17. https://guiadosbancosresponsaveis.org.br/bancos/estudos/pesquisa-cr%C3%A9dito-consignado-2021/).

[6] Classes D e E já representam mais da metade da população brasileira, aponta estudo. Um levantamento da Tendências Consultoria aponta que as classes D/E, com rendimentos familiares mensais de até R$ 3,1 mil, representam 55,4% da população (https://valorinveste.globo.com/noticia/2022/10/15/classes-d-e-e-ja-representam-mais-da-metade-da-populacao-brasileira-aponta-estudo.ghtml)

[7] Cabe ao Banco Central do Brasil (Bacen), órgão regulador do sistema, impor às instituições financeiras a obrigação de fornecer tais informações de forma padronizada e dentro de prazo razoável, sob pena de violação dos arts. 6, III e 54-B do CDC.

[9] Outra solução estudada é o pedido de suspensão do pagamento das dívidas, nos termos do art. 104-A, §2º pelo Cejudc caso o fornecedor não apresente tais documentos até a audiência global, expressamente solicitados em notificação prévia.

[10] Critério adotado prioritariamente pela doutrina e jurisprudência para caracterizar o mínimo existencial, sobretudo daqueles consumidores que recebem até dois salários-mínimos.

Autores

  • é mestre em Direito do Estado pela Unifran-SP, promotor de Justiça do estado de Minas Gerais, coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte e coordenador estadual do Procon-MG.

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