Opinião

Considerações sobre a Lei da SAF: soerguimento do futebol ou calote?

Autores

  • Fernando Moura

    é mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) master of laws (LL.M.) pela New York University (NYU) e professor da Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC).

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  • Pepe Chaves

    é desembargador aposentado do TRT-MG presidente da União Ibero-americana de Juízes diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra) diretor da Associação Nacional dos Desembargadores (Andes) doutor em direitos fundamentais conferencista e professor na Skema Law School for Business.

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27 de fevereiro de 2023, 7h05

Este artigo tem por objetivo realizar algumas breves considerações acerca da Lei nº 14.193/21, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol no ordenamento jurídico brasileiro e que veio cercada de muita expectativa. Passado algum tempo da entrada em vigor do referido diploma, a perspectiva inicial parece estar se transformando em apreensão, que decorreria de uma suposta (in)segurança jurídica causada por entendimentos proferidos no âmbito da Justiça do Trabalho. Na visão dos autores, contudo, as decisões até aqui proferidas não parecem contrariar a lei, mas apenas uma expectativa romântica de que o Poder Legislativo poderia salvar o futebol brasileiro em um passe de mágica, sem que um controle de legalidade dos modelos de negócio efetivamente realizados pudesse ocorrer.

Uma correta compreensão do assunto precisa retornar às origens do problema. Historicamente, o futebol brasileiro foi organizado por meio de associações sem finalidade lucrativa, com uma gestão usualmente pouco profissional. O resultado não poderia ser pior. Apesar dos incontáveis talentos produzidos, exportados em larga escala para o futebol estrangeiro, os clubes acumularam dívidas de naturezas diversas, muitas delas impagáveis. Nos últimos anos, a situação parece ter atingido o fundo do poço, com entidades centenárias correndo risco de extinção, para o desespero de seus milhões de torcedores.

É justamente nesse contexto que surge a Sociedade Anônima do Futebol. Os objetivos declarados pelo legislador têm seu escopo relacionado à governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico. Claramente, os pontos que mais causam polêmica dizem respeito ao financiamento e ao tratamento dos passivos, como será abordado adiante.

Em termos mais concretos, a SAF pode ser constituída por meio da simples transformação da pessoa jurídica original em uma sociedade anônima ou pela cisão do futebol, com a versão do patrimônio cindido para uma companhia. A diferença é relevante, na medida em que a primeira opção representa apenas a alteração da forma jurídica adotada. No segundo caso, entretanto, os ativos relacionados ao futebol são transferidos para outra entidade. O legislador estabelece, em ambas as hipóteses, que a SAF será sucessora do clube nas relações com as entidades de administração e em todas as relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol. Como decorrência disso, a SAF poderá participar dos campeonatos na condição de substituta da pessoa jurídica original.

A realidade brasileira, até aqui, vem demonstrando a opção pela segunda hipótese. O clube constitui uma SAF e verte os ativos relacionados ao futebol para a nova entidade. Na sequência, um investidor promete capitalizar a companhia em troca de um determinado percentual das ações. Como resultado disso, o investidor se torna controlador de uma entidade que sucede o clube nas relações jurídicas relacionadas ao futebol. Nota-se, então, que as ações da SAF não são efetivamente vendidas, mas adquiridas diretamente pelo investidor, mediante diluição da Associação. Os recursos financeiros envolvidos não são, então, transferidos para a pessoa jurídica original em pagamento, mas aplicados diretamente no "novo negócio".

Questão de fundamental importância para a viabilidade de uma estrutura como essa diz respeito à possibilidade de que os ativos de propriedade do clube sejam transferidos a uma nova entidade. E o legislador deixou claro que a mudança de titularidade pode ocorrer sem que seja necessário o consentimento de credores, ressalvada a hipótese de previsão em sentido contrário contida em um determinado instrumento contratual. Trata-se de previsão importante, na medida em que a solução contrária certamente tornaria a operação inviável.

Na sequência, o legislador abordou o tema que vem causando polêmica: a responsabilidade (ou não) da SAF pelos passivos da entidade anterior (a sucedida, i.e.). É importante notar que a norma estabeleceu a existência de sucessão obrigatória entre SAF e pessoa jurídica original. Por essa razão, os dispositivos mais específicos devem ser interpretados à luz desse contexto.

O artigo 9º estabelece que a SAF "não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas (…), cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei". A presença de uma conjunção aditiva, associada ao conceito de sucessão necessária, parece não deixar margem para dúvida. A SAF responde pelas obrigações relacionadas ao seu objeto social (que é necessariamente o futebol), obrigatoriamente herdadas da entidade original, ainda que anteriores à data de sua constituição; e, também, responde pelas obrigações não relacionadas ao objeto social, desde que lhe tenham sido transferidas.

Superada a questão da responsabilidade, o citado artigo 9º faz referência à dinâmica de pagamento dessa obrigação, remetendo a disciplina ao dispositivo seguinte. Nesse sentido, é necessário diferenciar entre hipóteses de responsabilidade e formas de satisfação da obrigação. Acerca da última, estabelece o legislador que o clube será responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da SAF, o que se dará por meio de receitas próprias (fruto da exploração dos ativos que foram mantidos em sua titularidade), bem como de receitas transferidas pela SAF. E as transferências ocorrerão em duas situações: (1) por destinação de 20% das receitas mensais auferidas pela SAF, na hipótese de aprovação de plano de credores; (2) por destinação de 50% da remuneração recebida da SAF em razão da sua condição de acionista.

Ainda nesse contexto, o legislador estabeleceu que o clube tem a prerrogativa de efetuar o pagamento das obrigações com base em duas diferentes modalidades. São elas: (a) pela instauração de um concurso de credores, denominado de Regime Centralizado de Execuções (RCE); e (b) por meio de recuperação judicial ou extrajudicial. Em outras palavras, compete ao clube, com base em avaliações relacionadas à sua situação econômico-financeira, optar por um ou outro regime de pagamento de suas dívidas. Em ambos os casos, contudo, a SAF é responsável pelas obrigações relacionadas ao futebol, devendo financiar o clube de acordo com o previsto na legislação. Ou seja: uma coisa é saber quem é o responsável pela obrigação (SAF); e outra é identificar quem é o responsável legal por entregar os recursos aos credores (Clube).

A opção pelo RCE permite ao clube pagar as suas obrigações em seisd anos. De todo modo, caso ao final desse prazo o clube consiga comprovar ter adimplido pelo menos 60% do seu passivo, o RCE poderá ser prorrogado por mais quatro anos, hipótese em que o percentual de receitas da SAF a ser transferido poderá ser reduzido para 15%, caso deferido pelo juízo responsável pelo regime. Para que o RCE seja deferido, o clube deverá apresentar um plano de pagamento de seus credores em até 60 dias. Em termos práticos, o RCE permite que o clube liquide as suas obrigações em dez anos. A opção pela recuperação (judicial ou extrajudicial) também é uma opção, que não pode coexistir com o RCE.

Pois bem. O legislador foi engenhoso ao regular a SAF, mas não pode garantir que os casos práticos serão executados em observância aos termos da legislação de regência. Ou seja, o modelo sui generis de responsabilização da SAF por antigas dívidas do clube depende de que os mecanismos de financiamento da pessoa jurídica original estejam sendo respeitados. De forma mais didática, caso a estrutura negocial adotada esteja utilizando a proteção legal conferida à SAF como mecanismo de fraude contra credores, cabe ao Poder Judiciário atuar para corrigir eventuais abusos e distorções. Nessas hipóteses, o problema não dirá respeito à lei e ao instituto da SAF, mas ao abuso do direito de constitui-la, o que obviamente não pode ser admitido. Ninguém dirá que o regime das pessoas jurídicas no Brasil é inseguro apenas porque existem meios legais para a sua desconsideração em caso de abuso. Não se trata, portanto, de uma questão de insegurança jurídica, tampouco de ativismo da Justiça do Trabalho.

E como diferenciar as situações? O legislador parece resolver essa questão ao estabelecer um mecanismo de sucessão que permite à SAF trabalhar como se as dívidas anteriores não lhe pudessem ser exigidas imediatamente. Para tanto, estabelece que os ativos transferidos gerem receitas contínuas e perenes ao seu antigo titular, de modo que os passivos sejam liquidados de acordo com o que foi estabelecido no RCE ou no plano de recuperação. É dizer, ausente o fluxo de riquezas da SAF para a pessoa jurídica original, descumprido o cronograma de pagamentos do RCE ou não aprovado o plano de recuperação, a SAF deixa de ser apenas a responsável pelas dívidas e passa à condição de imediata responsável pela sua liquidação.

É de se imaginar, assim, que até o pagamento dos credores uma parte das receitas da SAF deverá ser necessariamente transferida para a pessoa jurídica original. Na pior das hipóteses, deverá estar reservada e ser considerada na formulação do plano de pagamento dos credores. Nada mais justo, na medida em que não se poderia conceber que os ativos fiquem descolados dos passivos sem que alguma garantia seja atribuída aos credores. Do contrário, a hipótese seria de fraude (calote, i.e.), o que não é o espírito da norma.

Nesse sentido está a própria mens legislatoris, consoante se vê do Parecer de Plenário da Comissão Especial ao Projeto de Lei 5.516 de 2019, de relatoria do Deputado Fred Costa, de 14 de julho de 2021, poucos dias antes da aprovação da Lei da SAF (Lei 14.193 de 6 de agosto de 2021). Ou seja, a SAF responde pelo passivo do Clube, só não responde pela dívidas futuras, depois de sua constituição:

"Os arts. 9o a 12 estipulam as obrigações da SAF. Especificamente, o art. 9o prevê que a SAF não responde pelas dívidas, posteriores ou futuras, do clube que a constituiu, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social."

Aduz, ainda, que o Clube continua responsável pelas obrigações anteriores, "por meio de receitas próprias ou de receitas que lhes sejam transferidas pela SAF, desde que essas últimas sejam constituídas exclusivamente por destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF, conforme plano aprovado pelos credores, ou por destinação de 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida na condição de acionista".

Importante, ainda, sublinhar, que a vontade do legislador é expressa no cuidado em não se transformar o soerguimento do futebol em calote, na medida em que responsabiliza os administradores da SAF e do clube pelos repasses não efetuados ao clube. É ver:

"Pelos repasses previstos no art. 10, os administradores da SAF respondem pessoal e solidariamente, assim como o presidente do clube responde pessoal e solidariamente pelo pagamento aos credores dos valores que forem transferidos ao clube pela SAF."

A excentricidade da novel legislação exige que a sua interpretação se diferencie do que já existe para institutos assemelhados. Basta ter em mente o caso de uma recuperação judicial como tantas já ocorridas e em curso no Brasil. No caso da RJ de uma entidade do futebol, apenas os passivos farão parte do processo, na medida em que a generalidade dos ativos terá sido previamente transferida à SAF. Nessa hipótese, a legislação deve ser interpretada no sentido da necessidade de que a SAF financie a recuperanda e de que o plano de recuperação considere as receitas que deverão ser continuamente transferidas.

Do contrário, os credores se verão obrigados a aceitar qualquer proposta de redução dos seus créditos, premidos pelo argumento de que o clube não detém mais ativos que possam fazer frente aos passivos existentes, em caso de convolação da RJ em falência. Nessa hipótese, a redução da responsabilidade da SAF pela tentativa de diminuição abusiva do passivo deverá ser imediatamente censurada pelo Poder Judiciário.

O mesmo pode ser dito a respeito de atitudes coordenadas entre pessoa jurídica original e SAF no sentido de lesar credores. Nesse caso, a hipótese será de ilicitude, cabendo aos juízes o correto entendimento das situações em que o modelo jurídico adotado foi estabelecido com a finalidade oculta (ou explícita) de fraudar credores, especialmente os titulares de créditos de natureza trabalhista. A SAF, precisamente em razão de sua condição de responsável pelas dívidas relacionadas ao seu objeto social, não pode atuar no sentido de constranger a pessoa jurídica original a se tornar economicamente inviável, dado o evidente conflito de interesses existente.

O fundamento econômico de um investimento dessa natureza, dada a presença de sucessão legal obrigatória, é tornar viável a pessoa jurídica original, o que não passa pelo espúrio objetivo de lesar credores. O maior lucro do investidor não pode decorrer do maior prejuízo infligido aos credores. A viabilidade de uma SAF, portanto, passa pela possibilidade de que as transferências de recursos para a pessoa jurídica original viabilizem o pagamento dos passivos anteriores, ainda que em prazo de tempo incerto. Nada teria de nobre a decisão do legislador de permitir a institucionalização de um calote. Ocorre que, a hipótese sequer é de nobreza (ou falta dela), mas de ilegalidade propriamente dita.

Em qualquer hipótese, a Lei nº 14.193/21 deve ter a sua execução rigidamente fiscalizada. Os seus ilustres propósitos (de soerguimento do futebol brasileiro) impõem a presença marcante do método teológico para a sua interpretação. Justamente por isso, abusos precisam ser contidos, como forma de impedir que a profissionalização do futebol brasileiro se transforme em um calote sem precedentes. Caso isso ocorra, a situação não será de respeito à segurança jurídica, mas sim de criação de uma insegurança sistêmica.

Por fim, é de se indagar: a quem interessa que os ativos do futebol sejam adquiridos por investidores que definem o capital a ser investido com base no tamanho do dano que será infligido aos credores? Ao novo futebol brasileiro, certamente não. Ao menos, assim se espera.

Autores

  • é sócio da Quality Tax, que integra o grupo CorpServices.

  • é desembargador aposentado do TRT-MG, presidente da União Ibero-americana de Juízes, diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra), diretor da Associação Nacional dos Desembargadores (Andes), doutor em direitos fundamentais, conferencista e professor na Skema Law School for Business.

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