Opinião

Problema da captação de água subterrânea diretamente por condomínios

Autores

  • Aloísio Zimmer Junior

    é advogado doutor e mestre em Direito professor consultor sócio-fundador do escritório Aloísio Zimmer Advogados Associados e autor de diversas obras jurídicas como "Direito Administrativo do Saneamento" e "Compliance Anticorrupção e das Contratações Públicas".

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  • Ana Paula Mella Vicari

    é advogada mestre em Direito MBA em Gestão e Business Law especialista em Compliance Anticorrupção e sócia no escritório Aloísio Zimmer Advogados Associados com sede em Porto Alegre.

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  • Gabriel Büttenbender Galetto

    é advogado do escritório Aloísio Zimmer Advogados Associados especialista em Tópicos Avançados de Concessões e PPPs pelo Insper Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e em PPP Professional Foundation pela APMG (CP3P).

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15 de fevereiro de 2023, 16h14

Cada vez mais condomínios urbanos vêm buscando serviços para captação de água subterrânea de forma direta, como o caso de poços artesianos e fossas, com a disponibilização de sistema alternativo aos seus condôminos, em detrimento da utilização da rede pública de água e esgoto que abastece o local.

ConJur
Cumpre avaliar se este tipo de captação está em conformidade ao ordenamento jurídico, considerando a alegação que serve à finalidade de consumo humano e limpeza geral, fundamentado ainda no direito humano à água potável.

De partida, é preciso examinar o disposto na Lei Federal 11.445/2007, que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos, recentemente alterada pela Lei 14.026/2020, conhecida como Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico.

O tema do uso de fontes alternativas  como a água subterrânea  para o abastecimento de água foi singelamente alterado com a nova redação do artigo 45 da Lei 11.445/2007, permanecendo ainda o entendimento anterior ao Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico. Aliás, na realidade, a lógica anterior à Lei 14.026/2020 foi reforçada.

Mas, antes, oportuno conferir a comparação entre o caput do artigo 45 da Lei 11.445/2007 antes e depois da Lei 14.026/2020:

Redação Anterior ao Novo Marco Legal

Redação Posterior ao Novo Marco Legal

Artigo 45. Ressalvadas as disposições em contrário das normas do titular, da entidade de regulação e de meio ambiente, toda edificação permanente urbana será conectada às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis e sujeita ao pagamento das tarifas e de outros preços públicos decorrentes da conexão e do uso desses serviços.

  1. 45. As edificações permanentes urbanas serão conectadas às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis e sujeitas ao pagamento de taxas, tarifas e outros preços públicos decorrentes da disponibilização e da manutenção da infraestrutura e do uso desses serviços. (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

Como se depreende, a Lei 11.445 antes e depois do Novo Marco Legal do Saneamento estabelece a obrigação de que toda a edificação permanente urbana seja conectada à rede pública de abastecimento de água. Quanto ao ponto, insta destacar a manutenção da redação do §2º do artigo 45 da Lei 11.445, segundo o qual "§2o A instalação hidráulica predial ligada à rede pública de abastecimento de água não poderá ser também alimentada por outras fontes".

A única alteração trazida à regra é a exclusão do seguinte trecho do dispositivo "Ressalvadas as disposições em contrário das normas do titular, da entidade de regulação e de meio ambiente". Assim sendo, desde logo, ressalta-se que a Lei 14.026 restringe ainda mais a possibilidade de flexibilização da obrigação de conexão à rede pública em prol do uso de fontes alternativas, tal como a água subterrânea.

Antes da Lei 14.026, poder-se-ia utilizar o trecho revogado do caput do artigo 45 para, eventualmente, sustentar a possibilidade de uso de fontes alternativas de abastecimento de água em localidades com disponibilidade de rede pública, com base em normas infranacionais, ainda que a regra geral advinda da legislação nacional estipulasse a obrigação de conexão das edificações permanentes urbanas à infraestrutura coletiva. Relacionando-se o tema com as águas subterrâneas, fala-se na suposta convivência entre os poços artesianos e a rede pública de abastecimento de água, ou mesmo na opção do usuário pela fonte alternativa, em detrimento da solução coletiva de saneamento básico.

Todavia, a tendência observada na regulação pelos entes federativos do artigo 45 da Lei 11.445 foi justamente a reprodução, em suma maioria, da vedação à utilização de fontes alternativas pelas edificações permanentes urbanas que tenham acesso à rede pública de abastecimento de água.

Mesmo assim, alguns pontos de conflito entre a normatização do tema e a prática social remanescem, tais como: 1) a perfuração de poços artesianos sem a autorização administrativa (a necessária outorga) para uso das águas subterrâneas; e 2) a complementação do abastecimento de água por meio de fontes alternativas em edificações com acesso à rede pública.

Ambos os temas foram regulamentados pelos Estados-membros, os quais se utilizaram de sua competência concorrente de "defesa dos recursos naturais" (artigo 24, inciso VI da CF/88) e de sua competência comum para "proteger o meio ambiente" (artigo 23, inciso VI da CF/88), no sentido de estabelecer regras específicas ao uso de fontes alternativas para abastecimento de água, sem prejuízo da competência privativa da União Federal de legislar sobre águas (artigo 22, inciso IV da CF/8).

Existe, por outro lado, uma única exceção prevista na Lei nº 11.445, qual seja, a permissão para que as edificações para uso não residencial ou condomínios se utilizem de fontes alternativas  águas subterrâneas, de reúso ou pluviais , condicionadas à autorização administrativa pelo órgão competente, bem como ao pagamento pelo uso dos recursos. Atenta-se para o aludido dispositivo legal:

"Artigo 45 […] §11. As edificações para uso não residencial ou condomínios regidos pela Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, poderão utilizar-se de fontes e métodos alternativos de abastecimento de água, incluindo águas subterrâneas, de reúso ou pluviais, desde que autorizados pelo órgão gestor competente e que promovam o pagamento pelo uso de recursos hídricos, quando devido."

Ponto importante da regra é a referência ao termo "abastecimento de água", com a posterior citação às fontes alternativas, incluindo-se a água de reúso. Isso porque não se pode confundir abastecimento de água com consumo humano: o abastecimento de água supre a demanda do recurso para diferentes finalidades, contemplando-se o uso na indústria, na limpeza geral, na irrigação e, obviamente, no consumo humano. O que deve ficar esclarecido nessa discussão é que o abastecimento de água é utilizado para diferentes fins, inclusive para atividades que não exigem água potável. 

O que se pretende esclarecer com tal explicação é o fato de que o uso das fontes alternativas não irá suprir toda a demanda de abastecimento de água existente, sobretudo porque os métodos alternativos não devem ser utilizados para o consumo humano quando haja disponibilidade de rede pública.

Nesse sentido, destaca-se o artigo 1º da Resolução do Conselho de Recursos Hídricos (CRH) nº 255/2017, in verbis:

"Artigo 1º Nas zonas servidas por rede de abastecimento pública e potável, a captação de águas subterrâneas por poços tubulares e poços de pequeno diâmetro será permitida para todas as finalidades, exceto para abastecimento das populações para consumo humano, seja individual ou comunitário, entendido como água destinada à ingestão, preparação e produção de alimentos e à higiene pessoal."
"§1º Nas zonas não servidas por rede de abastecimento pública e potável, a captação de águas subterrâneas será permitida também para consumo humano." 

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, no bojo do REsp nº 1.345.403, já exarou entendimento no sentido do reconhecimento da legalidade da limitação administrativa ao uso dos poços artesianos, especificamente no caso do Estado do Rio Grande do Sul. Veja-se: 

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO. ART. 535 DO CPC/73. INOCORRÊNCIA. EXTRAÇÃO DE ÁGUA SUBTERRÂNEA. POÇO ARTESIANO. OUTORGA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. TUTELA DO INTERESSE COLETIVO EM DETRIMENTO DO PARTICULAR. LEGALIDADE DA LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA PARA UTILIZAÇÃO DE POÇO ARTESIANO COM A FINALIDADE DE CONSUMO HUMANO DE ÁGUA POTÁVEL. I – Trata-se, na origem, de ação ordinária julgada improcedente, na qual se objetivou a outorga e a autorização para a utilização de poço artesiano para o consumo humano de água subterrânea. Em apelação, acolheu-se em parte o pedido para o prosseguimento do procedimento administrativo, a fim de que se verificasse o cumprimento dos demais requisitos por parte da autora, ora recorrida. II – Não há violação ao artigo 535 do CPC/73 quando o Tribunal de origem, ao apreciar a demanda, manifestou-se sobre todas as questões pertinentes à litis contestatio, fundamentando seu proceder de acordo com os fatos apresentados e com a interpretação dos regramentos legais que entendeu aplicáveis, demonstrando as razões de seu convencimento. III – Ao fixar as normas gerais, por se tratar de questão de política ambiental, a União tutelou o interesse coletivo em detrimento do particular, estabelecendo, inclusive, textualmente, que as edificações permanente urbanas devem estar conectadas às redes públicas de abastecimento de água e que a respectiva instalação hidráulica predial não pode ser alimentada por outras fontes. IV – Não pode ser considerada ilegal a limitação administrativa estabelecida pelo recorrente no sentido de que, nos locais dotados de rede de abastecimento de água potável, os poços serão tolerados exclusivamente para suprimento com fins industriais ou para uso em floricultura ou agricultura. V – Recurso especial provido para julgar improcedente o pedido formulado pela recorrida na petição inicial da demanda. (MINISTRO RELATOR FRANCISCO FALCÃO, DJE: 16 de fevereiro de 2017, RECURSO ESPECIAL Nº 1.345.403 – RS 2012/0197280-0)."

Em outras palavras, a exceção estabelecida no §11º do artigo 45 da Lei 11.445 não deve ser interpretada no sentido de permitir que o abastecimento de água seja suprido exclusivamente por métodos alternativos, tendo em vista a necessidade de observação da legislação estadual, que, por sua vez, veda o uso de meios alternativos para o consumo humano. Até porque o §12º do artigo 45 da Lei 11.445 prevê a necessidade de instalação de medidor para a mensuração do consumo na medida da utilização proveniente da rede pública de abastecimento de água.

Outrossim, no tema dos condomínios, o artigo 18-A da Lei nº 11.445 prevê a obrigação de o prestador disponibilizar a infraestrutura da rede pública de abastecimento de água até os pontos de conexão necessários à implantação dos serviços públicos de saneamento básico nas edificações e unidades imobiliárias decorrentes de incorporação imobiliária. Por isso, a própria lei tem como pressuposto o fato de que os condomínios estarão conectados à infraestrutura pública, ainda que contemplados pela exceção do §11º do artigo 45.

Assim, tem-se que a regra preponderante é a de que a demanda de abastecimento de água para consumo humano deve ser suprida exclusivamente pela rede pública, mesmo na hipótese de edificações decorrentes de incorporações imobiliárias.

Aliás, todo esse raciocínio jurídico foi reforçado pelo Novo Marco Regulatório, que impõe a lógico da obrigatoriedade das edificações urbanas de conexão à infraestrutura pública de saneamento (conforme o comando: "serão conectadas às redes públicas"), motivo pelo qual permite-se: 1) a cobrança pela disponibilização da infraestrutura, independentemente da efetiva ligação predial à rede pública, na forma do §4º do artigo 45 da Lei 11.445; 2) o sancionamento pecuniário do usuário que não realizar a ligação predial, consoante §5º do artigo 45 da Lei 11.445; e 3) a ligação (em um sentido de compulsoriedade) realizada pelo prestador do serviço mediante cobrança do usuário que não se conectar à rede pública, nos termos do §6º do artigo 45 da Lei 11.445.

Justamente para garantir o cumprimento de tais diretrizes regulatórias, o uso da água subterrânea está condicionado à concessão de outorga pelo Estado-membro, que tem o domínio do bem público, no devido exercício do gerenciamento dos recursos hídricos sob o seu domínio.

Diante disso, tem-se como indispensável a autorização administrativa formal, emitida pelo órgão competente, para o funcionamento de um poço artesiano, sobretudo para a garantia de que 1) não haja a utilização dos recursos hídricos para finalidades conflitantes com as diretrizes regulatórias estaduais; e 2) não haja a permissão para o uso de águas subterrâneas sem a devida conformidade técnica das instalações com as diretrizes regulatórias, como forma de proteção ao meio ambiente e à saúde pública.

Assim, reitera-se que o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico não modificou tal entendimento; pelo contrário, foi reforçado o raciocínio de que as edificações, na presença de rede pública de abastecimento de água, não podem se utilizar de métodos individualizados e alternativos para a finalidade de consumo humano.

Portanto, é possível concluir que: 1) as alterações trazidas pela Lei nº 14.026/2020 não introduziram modificação considerável na lógica até então vigente a respeito da característica residual das soluções individualizadas em face da infraestrutura pública; 2) o abastecimento de água para finalidade de consumo humano deve ser atendido exclusivamente pela rede pública, quando disponível ao usuário, mesmo no caso de edificações não residenciais ou de condomínios; 3) é ilegal a utilização de sistema alternativo de captação de água subterrânea por edificações regularmente abastecidas pela rede pública de água e esgoto e sem a respectiva outorga de uso, na forma das diretrizes estaduais.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito, árbitro na CAF/Federasul, autor de livros na área do Direito Público e sócio-fundador do escritório Aloísio Zimmer Advogados Associados, com sede em Porto Alegre/RS.

  • é advogada, mestre em Direito, MBA em Gestão e Business Law, especialista em Compliance Anticorrupção e sócia no escritório Aloísio Zimmer Advogados Associados, com sede em Porto Alegre.

  • é advogado do escritório Aloísio Zimmer Advogados Associados, especialista em Tópicos Avançados de Concessões e PPPs pelo Insper Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e em PPP Professional Foundation pela APMG (CP3P).

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