Opinião

A justa aplicação de pena frente às novas instituições processuais-penais

Autores

  • Lívia Saraiva Guimarães Bissoto

    é pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal e analista jurídica do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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  • Nelson Bissoto Júnior

    é pós-graduado em Direitos Difusos e Coletivos integrante do Grupo de Estudos Avançados em Processo Coletivo da Fundação Arcadas (Geapc – ano acadêmico 2021/2º semestre) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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28 de junho de 2023, 19h34

O homem é produto de seu próprio tempo e como o Direito é criado para regular a convivência social humana, conclui-se pela inevitável mutabilidade do direito positivo.

Com efeito, assistimos todos perplexos a morte da coerção materialmente penal, que nos dizeres de Eugenio Raul Zaffaroni deve ser entendida como "a ação de conter ou de reprimir que o direito penal exerce sobre os indivíduos que cometeram delitos" [1]. Cediço é, a esse propósito, que o sistema prisional brasileiro não vem respondendo aos anseios da sociedade e, tampouco, da população carcerária. A resposta para o diagnóstico quase que unânime normalmente envolve medidas triviais, afetas ao "direito penal do terror [2]", consistindo, sobretudo, na exasperação da austeridade e rigor do sistema de justiça.

O discurso punitivista encampado por integrantes do Poder Legislativo federal, infelizmente, ecoa por toda a sociedade brasileira [3]. Sob esse prisma, a premissa da norma constitucional de que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente" (artigo 1º, parágrafo único, CR) não é — tal qual qualquer norma jurídica  absoluta, devendo ser harmonizada e sistematizada com os demais institutos previstos em nosso ordenamento jurídico-constitucional.

Por vezes a "campanha midiática" da impunidade no Brasil e da propalada inexistência de normas penais que punam adequadamente quem as violou, potencializada pela difusão das redes sociais virtuais, acaba por impactar a opinião pública. Sucede que a gênese de tais informações, normalmente propagadas com status de verdade incontestável, pode se valer de fontes inidôneas ou equivocadas.

Em verdade, balizando a política criminal pelo atual estágio de desenvolvimento das ciências jurídicas, depreende-se que a sanção privativa da liberdade não está  de há muito  satisfazendo as finalidades para as quais foi instituída como método retributivo e correcional do indivíduo que infringiu a legislação criminal.

Isto porque, já sob a égide da laicidade estatal, a experiência humana retratada em análises doutrinárias converge, sem exagero, para a impossibilidade, absoluta ou relativa, de se obter efeitos positivos sobre o apenado e/ou ganhos efetivos para a sociedade desde a instituição definitiva das prisões como método precípuo de coerção do direito penal.

Tão vetusta quanto atual, nesse sentido, a lição preconizada por Cesare Beccaria na clássica obra Dos Delitos e das Penas, in verbis:

"É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males da vida." [4]

Delineado tal estado de coisas, exsurge a criação de institutos jurídicos afetos à justiça penal negociada, paulatinamente incorporados ao ordenamento jurídico nacional, cuja aplicabilidade vem – pari passu às inovações legislativas – adquirindo inegável protagonismo.

Com efeito, ainda na esteira do escólio de Cesare Beccaria, "é a celeridade e a certeza da pena, mais do que a sua severidade, que produz a efetiva intimidação" [5]. E, completamos: é a aplicação coerente da pena, vale dizer, proporcional ao delito e individualizada ao perfil do agente, que resulta na ressocialização do autor da infração penal.

Pois havia inequívoca resistência legislativa à implementação de soluções consensuais e negociadas na jurisdição penal. O pensamento dominante à época era lastreado no equivocado imaginário popular, reproduzido ad nauseam, no sentido de que a indisponibilidade do bem jurídico tutelado pela norma penal inviabilizaria qualquer pactuação autocompositiva.

No entanto, a evolução doutrinária já caminhava em sentido oposto, consoante bem observa Elton Venturi:

"É preciso compreender que muito embora os direitos indisponíveis, em regra, não comportem alienação (e, portanto, transação), não se pode afastar aprioristicamente a possibilidade de, por via de um juízo de ponderação a respeito de proporcionalidade e de razoabilidade, admitir processos de negociação nos conflitos a seu respeito, na medida em que isto se revele, concretamente, mais vantajoso à sua própria proteção ou concretização […].
A reconstrução do sistema de Justiça brasileiro, que começa tardiamente a apostar na institucionalização dos meios alternativos para a obtenção de soluções consensuais, passa a também depender de uma realista e pragmática reavaliação do sentido e do alcance da indisponibilidade dos direitos." [6]

Pode-se apontar que, inicialmente, o marco temporal mais perceptível dessa viragem teórica e metodológica experimentada pela legislação penal e processual penal coincide com a edição da Lei nº 9.099/95, cuja promulgação deu efetividade ao comando constitucional já desenhado pelo legislador constituinte (artigo 98, I, CR).

Cuidando-se de infrações penais de menor potencial ofensivo, o artigo 76 da Lei nº 9.099/95, previu o instituto da transação penal. Muito embora ao direito penal seja acometida a função de tutelar e salvaguardar bens jurídicos de natureza indisponível, o ordenamento jurídico concedeu ao órgão acusatório, titular privativo da ação penal pública (artigo 129, I, CR), o direito de pactuação com o autor do fato na fase extrajudicial da persecução penal, valendo-se, mutatis mutandis, do arcabouço principiológico adstrito à consensualidade (autocomposição penal), com vistas a aplicação de medidas despenalizadoras antes do formal oferecimento da denúncia criminal.

Prosseguindo, o artigo 89 da Lei nº 9.099/95 introduziu a suspensão condicional do processo, uma espécie de sursis antecipado (artigo 77, CP), pelo qual, a partir do preenchimento de certos requisitos de ordem objetiva e subjetiva, afigura-se poder-dever estatuído ao Ministério Público propor a benesse processual ao acusado na ação penal, mediante o cumprimento de determinadas condições legais e específicas  durante o curso do período de provas, estipulado entre dois e quatro anos , as quais devem ser especificadas pelo órgão acusatório e homologadas em juízo, imediatamente ao ato jurisdicional de recebimento da denúncia criminal.

Mais recentemente, acompanhando a evolução legislativa do sistema penal e, sobretudo, as recomendações da doutrina especializada, sobreveio a formatação de novo benefício despenalizador, também afeto às infrações penais de médio potencial ofensivo, com o objetivo de afastar a imprescindibilidade da instauração da ação penal e da imposição de penas privativas de liberdade em casos nos quais, decerto, o cárcere igualmente não se mostraria consentâneo.

Com efeito, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é instrumento de Justiça Negocial cujo delineamento é disciplinado pelo artigo 28-A do Código de Processo Penal. Trata-se, pois, de negócio jurídico personalíssimo entabulado diretamente entre o Ministério Público e o investigado, devidamente assistido por defensor, com submissão, a posteriori, ao crivo judicial para análise de sua legalidade e voluntariedade (artigo 28-A, §§3º e 4º, CPP).

Acerca da temática, na esteira da remansosa jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ [7]), tais benefícios cuidam de poder-dever atribuído ao Ministério Público, jamais direito subjetivo conferido aos investigados e/ou acusados, vinculados à adequada fundamentação.

Enfim, criou-se dentro da comunidade jurídica brasileira o argumento sofismático de que a inefetividade do sistema de justiça estaria necessariamente relacionada com a morosidade do Poder Judiciário e leviandade da legislação penal.

Tem-se, noutro lado, claro como o sol, que dentro do direito penal brasileiro a impunidade paira quase que exclusivamente nos estamentos sociais mais elevados, oriundos, sobretudo, do poder político atávico e da elite econômica nacionais.

Combatemos, pois, as causas erradas para o enfrentamento do problema.

Pode-se induvidosamente argumentar com casos de impunidade no Brasil. Disso ninguém tem dúvida.

Sucede que, na contramão do que é propalado, a solução eficaz encontra sim respaldo na legislação penal, pelo que, via de regra, as iniquidades produzidas pelo sistema de justiça decorrem da (in)justa aplicação e efetivação das sanções na órbita criminal.

É que de nada adianta uma nova legislação austera se a gênese da problemática remonta à aplicação ilegítima do direito posto, baseado majoritariamente no direito penal do autor e na espécie delitiva praticada.

Os indivíduos submetidos à jurisdição penal não raramente advêm de classes sociais menos privilegiadas e, no mais das vezes, a atividade interpretativa do julgador, realizada a partir de pré-compreensões latentes apreendidas e, infelizmente, reproduzidas em nossa sociedade, acaba por condená-los com lastro em razões de natureza metajurídicas, a par da ratio decidendi efetivamente exposta no decisum.

Ou, melhor: é o fenótipo e/ou a miserabilidade do sujeito ativo que normalmente estão atreladas à sua condenação, independentemente da infração penal perpetrada. Basta, para tanto, perscrutar aqueles que compõem a quase totalidade da população carcerária brasileira.

A esse propósito, não é demasiado lembrar a célebre advertência feita pelo professor Antônio Alberto Machado, in verbis:

"O sistema penitenciário brasileiro é exemplo dessa decadência dos direitos e da cidadania. É possível que os nossos presídios de hoje estejam ainda tão ruins, e em alguns casos até piores, do que as masmorras, os calabouços e enxovias do Brasil colonial e escravocrata; é provável que a situação dos nossos presos atualmente em nada difira da situação dos pobres e negros fugidos que compunham a população carcerária do Brasil Pré-moderno. Até mesmo os preconceitos e a atuação seletiva da justiça penal parecem os mesmos, numa demonstração de que a legislação moderna e os operadores progressistas do direito não foram capazes de mudar nem a realidade nem a mentalidade dos homens que hoje habitam a antiga colônia, cujo imaginário social ainda transita pelas senzalas, pela casa-grande e pelos calabouços sem grandes desconfortos éticos." [8]

Daí porque, à vista do diagnóstico e da evolução doutrinária e legislativa ao encontro de institutos jurídicos-penais alternativos à pena de prisão, tendência de difícil regresso, cumpre ao Ministério Público lançar mão desses novos instrumentos consensuais, cuja fiscalização casuística e, também, a título de política pública na seara criminal, constitui importante papel atribuído aos Poderes da República, principalmente ao Poder Judiciário, o qual, mediante compilação de dados estatísticos, poderá melhor avaliar a real efetividade dos institutos despenalizadores e seus reais impactos junto ao sistema de justiça penal.

Para além disso, a eficácia desses instrumentos processuais possibilita, ao menos, a mitigação da chaga brasileira calcada no preconceito e no racismo estrutural, que, se antes levava tal estirpe de indivíduos diretamente aos estabelecimentos prisionais, doravante viabiliza, em princípio, o sopesamento concreto da ofensividade da conduta delitiva, com supedâneo no poder-dever de oferecimento de proposta acerca dos benefícios despenalizadores afetos à justiça penal negociada.  

Nessa vereda, diversos institutos processuais penais vêm sendo criados para substituir o modelo centrado preponderantemente na aplicação da pena privativa de liberdade.

A par disso, a aplicação e a efetivação desses novos paradigmas sancionatórios e repressivos podem ficar comprometidas em decorrência da constatação da insuficiência do aparato estatal fiscalizatório, seja em relação às penas substitutivas seja àquelas pactuadas através de benefícios despenalizadores.

De modo que tal circunstância de ordem pragmática pode transmitir para a população brasileira a sensação de impunidade, notadamente em crimes nos quais a concessão das benesses legais são, no mínimo, discutíveis, como, verbi gratia, nas infrações penais de colarinho branco (contra o sistema financeiro e a ordem tributária). É o que, inspirado nos conceitos elaborados por Eugenio Raul Zaffaroni, em doutrina se denominou de "coculpabilidade às avessas" [9] .

Resta, pois, ao Ministério Público, ao Judiciário e ao Estado, através de políticas públicas, punir e fiscalizar corretamente estes novos institutos de política criminal, com o intuito de analisar criticamente quais infrações penais merecem tratamento mais brando e quais merecem tratamento mais severo aos olhos do que aspira a sociedade brasileira e do arcabouço jurídico-normativo sob as balizas que delineiam a Constituição da República.

 


[1] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 635.

[2] "A função simbólica […] manifeste-se, comumente, no direito penal do terror, que se verifica com a inflação legislativa (Direito Penal de emergência), criando-se exageradamente figuras penais desnecessárias, ou então com o aumento desproporcional e injustificado das penas para os casos pontuais" (MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. v. 1. 10ª ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Método, 2016. p. 11).

[3] FIORATTI, Gustavo. 49% dos brasileiros são contrários à pena de morte, diz pesquisa. 2022.   Publicada pelo jornal Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/09/49-dos-brasileiros-sao-contrarios-a-pena-de-morte-diz-pesquisa.shtml. Acesso em: 15 mar. 2023.

[4] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Bauru: Edipro, 1997. Tradução De Flório de Angelis. p. 27.

[5] Ibid., p. 132.

[6] VENTURI, Elton. Transação de direitos indisponíveis? Revista de Processo, São Paulo, v. 251, n. 63, p. 391-426, jan. 2016. págs. 10 e 16.

[7] STF, HC 199892 AgR; STJ, AgRg no AREsp n. 607.902/SP e AgRg no HC 504.074/SP.

[8] MACHADO. Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 269.

[9] "Em primeiro lugar, esta linha de pensamento diz respeito à identificação crítica da seletividade do sistema penal e à incriminação da própria vulnerabilidade. Em outras palavras, o Direito Penal direciona seu arsenal punitivo contra os indivíduos mais frágeis, normalmente excluídos da vida em sociedade e das atividades do Estado. Por essa razão, estas pessoas se tornam protagonistas da aplicação da lei penal: a maioria dos acusados em ações penais são homens e mulheres que não tiveram acesso ao lazer, à cultura, à educação; eles também compõem com intensa densidade o ambiente dos estabelecimentos penais. […] se os pobres, excluídos e marginalizados, merecem um tratamento penal mais brando, porque o caminho da ilicitude lhes era mais atrativo, os ricos e poderosos não têm razão nenhuma para o cometimento de crimes. São movidos pela vaidade, por desvios de caráter e pela ambição desmedida, justificando a imposição da pena de modo severo" (MASSON, Cleber. op. cit., p. 505).

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