Observatório Constitucional

O papel do contexto histórico da ANC na hermenêutica constitucional

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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26 de agosto de 2023, 8h00

No próximo mês de outubro celebraremos 35 anos da promulgação da Constituição de 1988. É um momento oportuno para reflexões sobre o grande avanço que ela representa em termos democráticos e institucionais na história do nosso país, ainda marcada por continuidades e descontinuidades. Já em uma perspectiva jurídica, deve se colocar uma questão: qual deve ser o papel do contexto histórico e dos debates da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) na interpretação da Constituição Federal de 1988?

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Partindo de suas características de "livre e soberana", como constam no artigo 1º da Emenda Constitucional nº 26, de 1985, que a convocou, a ANC deveria se revestir de grande importância como ponto de partida para as investigações do significado jurídico do texto constitucional.

Contudo, a se julgar pelas obras dogmáticas do Direito Constitucional brasileiro e decisões do Poder Judiciário no período posterior à sua promulgação, não parece ser assim. Com as devidas exceções, não é comum encontrar na análise dogmática da Constituição de 1988 e de seus dispositivos o exame do histórico dos trabalhos da ANC. Por vezes, tem-se a impressão de que o texto positivado na Constituição foi produzido por um fiat político que não guardaria relevo para sua interpretação, visão que mantém os debates desenvolvidos na Constituinte praticamente ausente dos debates constitucionais contemporâneos.

O objetivo do presente texto é, portanto, ser um convite a se redescobrirem os trabalhos da ANC não apenas com finalidade histórica, mas também para a hermenêutica constitucional. Sem qualquer pretensão de exaurimento do tema, abaixo serão elencadas algumas obras e fontes de informação que podem auxiliar o intérprete a compreender e problematizar os trabalhos constituintes em relação ao nosso texto constitucional.

Antes, entretanto, fazem-se duas advertências. Não trataremos da defesa de uma postura interpretativa em favor de alguma vertente do originalismo estadunidense, mediante o qual a interpretação atual estaria fortemente condicionada — ou mesmo limitada — à sua gênese histórica ou sua compreensão pelos constituintes. Tampouco adotamos uma noção voluntarista de soberania no sentido de um querer situado historicamente e determinado a partir de uma manifestação formal de vontade.

Como já destacado em outra oportunidade neste Observatório [1], ainda que se afaste uma linha mais rígida de originalismo, a interpretação jurídica passa por um momento de avaliação do contexto político e das justificativas públicas apresentadas no momento da tomada da decisão legislativa para que se possa — ao lado de outros argumentos — definir a melhor interpretação de um dispositivo normativo.

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Vale retomar as considerações de Dworkin no sentido de que a interpretação do texto constitucional deve partir — ainda que não se resumir — da intenção de seus elaboradores, construída mediante uma interpretação normativa de seu melhor sentido à luz das informações públicas disponíveis. Em suas palavras:

"Nós temos um texto constitucional. Nós não discordamos sobre quais inscrições estão contempladas naquele texto; ninguém discorda sobre qual série de letras e espaços o compõe. Naturalmente, identificar uma série canônica de letras e espaços é apenas o início da interpretação, pois permanece o problema do que significa uma determinada porção daquela série. (…) Nós devemos começar, na minha visão, perguntando o que – à luz das melhores evidências disponíveis – os autores daqueles textos almejavam dizer. Esse é um exercício no qual denominei de interpretação construtiva. Ela não significa espiar dentro do crânio de pessoas mortas há séculos. Ela significa tentar fazer o melhor sentido que pudermos de um evento histórico – alguém falando ou escrevendo de um determinado modo em um determinado momento" [2].

Na mesma direção, deve-se entender que a noção de soberania não mais deve ser compreendida como uma vontade determinada em um momento histórico fora dos mecanismos permanentes e presentes de representação política. Na verdade, a relação de representação política é um vínculo permanente entre representantes e representados que implica uma ideia de soberania como um agir comunicacional contínuo, que a cada dia renova sua legitimidade por um procedimento discursivo aberto e, inclusive, com pretensões de influenciar a tomada das decisões políticas. O significado atual da decisão constituinte, portanto, não se esgotou na promulgação do texto constitucional em 5 de outubro de 1988, mas permanece aberto a debates e disputas interpretativas [3].

Feitas essas observações preliminares, para colaborar com a pesquisa e reflexão sobre o tema, abaixo apontam-se alguns elementos relevantes para compreensão do significado dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 em duas dimensões: a) seu contexto político e b) os debates produzidos na ANC.

No que se refere ao seu contexto político, como destaca Leonardo Barbosa, há uma "batalha inconclusa em torno da memória constituinte" [4].

De um lado, há críticas de que a Constituição careceria de legitimidade democrática pelo fato de — retomando a crítica contundente de Fábio Konder Comparato — a ANC apresentar um "vício original": o fato de ter sido convocada por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 1985, ainda sob a égide do regime constitucional anterior, e não ter sido uma constituinte exclusiva, mas um Congresso constituinte, em que deputados e senadores acumularam suas funções legislativas ordinárias com a tarefa de elaboração uma nova Constituição [5]. Por essa visão, a Constituição de 1988 seria fruto predominantemente das elites políticas que sempre estiveram no poder e conseguiram acomodar uma transição para a democracia sem grandes rupturas institucionais, políticas e jurídicas.

De outro lado, entende-se que os trabalhos da ANC marcaram um efetivo rompimento com o regime anterior, encontrando seu fundamento de legitimidade no somatório de movimentos políticos de elites, mas também, de segmentos sociais que protagonizaram uma nova forma de elaborar uma constituição na história do direito brasileiro. Como Paulo Bonavides e Paes de Andrade ressaltam, o processo de elaboração do texto constitucional de 1988 foi heterodoxo para a tradição brasileira: a despeito de um anteprojeto elaborado pela Comissão Afonso Arinos — cujos membros foram indicados pelo presidente da República nos termos do Decreto 91.450, de 18 de julho de 1985 — o então presidente Sarney resolveu não o enviar à ANC. Dessa forma, os trabalhos constituintes foram iniciados sem um texto base para discussão, o que "acabou sendo fator deveras positivo na legitimação do processo de espontaneidade com que foi conduzido", de modo a permitir uma intensa e inédita participação social nos principais debates e arenas da Constituinte [6].

Há diversas obras que retratam o contexto político de transição para a democracia durante o momento constituinte, com diferentes narrativas de avanços e retrocessos, de modo que qualquer enumeração aqui seria extremamente incompleta.

De todo modo, com o objetivo de colaborar com a reconstrução da memória constituinte, deve ser destacada recente iniciativa do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e da Fundação Getulio Vargas de entrevistar dezenas de deputados e senadores constituintes, políticos e outros atores que atuaram na ANC [7]. Por meio desse projeto — iniciado em decorrência dos 30 anos da Constituição e ainda em andamento —, pretende-se oferecer novos elementos para a constante reinterpretação das narrativas sobre o processo constituinte e o seu significado para a Constituição hoje passados 35 anos de sua promulgação.

Em relação aos debates constituintes, há também grande espaço para reflexões e pesquisas. Salvo melhor juízo, são necessárias mais obras que se dediquem ao estudo dos debates constituintes e sua repercussão sobre os dispositivos efetivamente aprovados e promulgados.

Com o objetivo de facilitar o acesso a essas informações e incentivar as pesquisas, abaixo apresentam-se algumas iniciativas adotadas pela Câmara dos Deputados e do Senado de resgatar o material histórico da ANC e analisar a evolução do texto que culminou naquele promulgado em 5 de outubro de 1988, que podem servir de ponto de apoio para essa empreitada.

Na Câmara dos Deputados, há o "Portal da Constituição Cidadã" [8]. Nesse portal, encontram-se informações detalhadas sobre os antecedentes do processo constituinte, a organização dos trabalhos da ANC e biografias dos constituintes. Também há destaque para a atuação da bancada feminina, discursos selecionados proferidos durante os trabalhos e publicações em que se explica o passo a passo da elaboração do texto constitucional.

Um dos pontos de destaque são os "Quadros Históricos de Dispositivos Constitucionais" [9]. São publicações realizadas pela Câmara dos Deputados artigo por artigo da Constituição de 1988, em que — nas palavras de apresentação do projeto — constam os "textos dos projetos e anteprojetos, e as discussões e votações das emendas e destaques apresentados, além de sugestões e emendas apresentadas com seus respectivos pareceres e justificativas". Como exemplo, há publicação dedicada ao artigo 5º e todos os seus incisos, em que se apresentam as características do projeto como um todo, bem como as sugestões, textos de subcomissões, comissões temáticas, comissão de sistematização e Plenário em relação a cada um dos incisos desse dispositivo constitucional [10].

No Senado, há portal consolidado com várias informações sobre o processo de elaboração de todas as Constituições brasileiras [11]. Relativamente à Constituição de 1988, o portal se destaca por ter digitalizado os 25 volumes dos Diários da ANC e uma seção com "Informações Complementares". Aqui, além dos documentos oficiais que deram origem à Constituinte, há as "Fontes de Informações sobre a Assembleia Nacional Constituinte de 1987" [12] — um verdadeiro manual sobre o acesso às dezenas de bases de dados com as centenas de milhares de documentos produzidos nesse momento — e as "Bases da Assembleia Nacional Constituinte 1987-1988" [13], em que é possível fazer buscas por palavras-chave nos textos dos projetos, substitutivos e emendas para identificar a origem dos dispositivos do texto constitucional.

Uma publicação do Senado de 2013 também se destaca: a Gênese do Texto da Constituição de 1988 [14]. Trata-se de obra de fôlego, em que, de forma visualmente atrativa e clara, os autores apresentam as seis diferentes versões dos textos em discussão a partir do 1º Substitutivo do Relator da Comissão de Sistematização (deputado Bernardo Cabral) durante sua apreciação na ANC em comparação com o texto efetivamente promulgado.

Para finalizar, retomam-se as palavras de José Afonso da Silva, que assina o prefácio dessa obra:

"É alentador reconhecer, e é justo proclamar, que a Constituição tem propiciado enorme desenvolvimento da cidadania. Essa consciência cidadã, conforme já escrevi em outra oportunidade, é a melhor garantia de que os direitos humanos passaram a ter consideração popular, a fazer parte do cotidiano das pessoas, o que é o melhor instrumento de sua eficácia, com repulsa consequente do arbítrio e do autoritarismo. Nenhuma Constituição anterior teve consideração popular como a atual. Nenhuma foi tão estudada e difundida, graças especialmente aos jovens constitucionalistas que vêm se formando sob a sua égide, fazendo-a conhecida nas Escolas de Direito das capitais e do interior. É a primeira vez que o Direito Constitucional é efetivamente o ápice e fundamento efetivo do ordenamento jurídico nacional, porque, instituindo o Estado Democrático de Direito, impõe nova concepção da lei de que aquele se nutre" [15].

Levemos adiante esse projeto constitucional em constante construção para que a Constituinte, com seus embates, compromissos, participação popular, propostas e textos, possa ser recolocada no centro dos debates constitucionais como ponto de partida para compreensão das potencialidades normativas da nossa Constituição de 1988 passados 35 anos de sua promulgação.

 


[1] Victor Marcel Pinheiro, "O exame do histórico legislativo no julgamento do ARE 843.989", disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-27/observatorio-constitucional-exame-historico-legislativo-julgamento-are-843989

[2] Ronald Dworkin, Justice in Robes, Cambridge, Harvard University, 2006, p. 120.

[3] Para uma crítica profunda sobre a noção de soberania ainda fundada em paradigma voluntarista de Rousseau, ver Nadia Urbinati, Representative democracy: Principles and Genealogy, Chicago, Chicago University, 2006, pp. 124-126.

[4] Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, História Constitucional Brasileira, Brasília, Edições Câmara, 2013, p. 244.

[5] Fábio Konder Comparato, E agora Brasil?, Folha de São Paulo, Opinião, 03/03/2008.

[6] Paulo Bonavides e Paes de Andrade, História Constitucional do Brasil, 4ª ed., Brasília, OAB Editora, p. 495.

[14] João Alberto de Oliveira Lima, Edilenice Passos e João Rafael Nicola, "A gênese do texto da Constituição de 1988", Brasília, Senado Federal, 2013. Disponível: https://www.senado.leg.br/publicacoes/geneseconstituicao/

[15] José Afonso da Silva, Prefácio, in João Alberto de Oliveira Lima, Edilenice Passos e João Rafael Nicola, "A gênese do texto da Constituição de 1988", Brasília, Senado Federal, 2013, p. xxvii.

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  • é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ex-visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha), advogado, consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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