Opinião

Governança digital, transparência e a proteção de dados pessoais

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23 de agosto de 2023, 12h23

Diante do cenário de avanços tecnológicos e de implementação do modelo de administração pública gerencial, vislumbrou-se a necessidade de o Estado operacionalizar uma governança digital.

Assim, destaca-se que o escopo do artigo é aferir a importância da governança digital como forma de viabilizar o acesso à informação e a participação popular na gestão pública. Para tanto, apresentou-se a noção de administração pública gerencial, a conceituação de governança digital e sua evolução legislativa, bem como alguns instrumentos já operacionalizados em âmbito nacional.

Por fim, restou apresentado o dilema da compatibilização do dever administrativo de viabilizar o acesso à informação, sem olvidar da observância das disposições da Lei nº 13.709/2018, em especial no âmbito do tratamento de dados pessoais pela pessoa jurídica de direito público. Nesse contexto, apresentado os dois paradigmas que devem ser harmonizados pela administração pública: a necessidade de cumprimento do direito fundamental de transparência, bem como a necessidade de preservação do direito fundamental a proteção de dados pessoais.

A Administração Pública na era da governança digital
Primeiramente, cumpre elucidar que o modelo de administração pública gerencial, implementado em âmbito nacional a partir de meados da década de 1990, possui foco na gestão de resultados, visando a implementação de uma maior autonomia e eficiência administrativa, a observância da transparência e a prestação de contas, bem como a ampliação da descentralização dos serviços sociais e a implementação do papel regulador estatal.

Nesse contexto, vislumbra-se que o modelo contemporâneo de administração pública visa, principalmente, uma aproximação do cidadão com o Estado, através não apenas da melhoria na prestação dos serviços, mas também de transparência na gestão pública e efetiva participação — popular na formulação das políticas de Estado e no controle dos atos administrativos.

Diante desse cenário, tem sido cada vez mais ressaltada a importância da Governança Digital, a qual é conceituada por Guimarães e Medeiros:

"Um processo que visa à manifestação política e à participação da sociedade civil, junto ao governo e por meios eletrônicos, na formulação, acompanhamento da implementação e avaliação das políticas públicas, cujo objetivo é o desenvolvimento da cidadania e da democracia." (GUIMARAES e MEDEIROS, 2005)

Nesse diapasão, o Decreto nº 8.638/2016 instituiu a Política de Governança Digital no âmbito da Administração Pública, abordando como o governo utilizaria os mecanismos de tecnologia da informação e comunicação em sua relação com a sociedade civil. Ressalta-se que, em seu artigo 2º, inciso III, o referido Decreto também apresentou uma conceituação de governança digital, in verbis:

"Artigo 2º Para os fins deste Decreto, considera-se:
III – governança digital – a utilização pelo setor público de recursos de tecnologia da informação e comunicação com o objetivo de melhorar a disponibilização de informação e a prestação de serviços públicos, incentivar a participação da sociedade no processo de tomada de decisão e aprimorar os níveis de responsabilidade, transparência e efetividade do governo;"

Por seu turno, o Decreto nº 10.322/2020 revogou a Política de Governança Digital instituída pela normativa supracitada, instituindo a Estratégia de Governo Digital a ser implementada entre 2020 e 2023.

Posteriormente, a Lei nº 14.129/2021 apresentou regramentos e instrumentos para a prestação digital de serviços públicos, visando à desburocratização da administração pública e o aumento da sua eficiência por meio da transformação digital, da inovação e da participação do cidadão. Ademais, o artigo 3º, da Lei nº. 14.129/2021 apresenta um rol de princípios e diretrizes do Governo Digital e da eficiência pública, dentre os quais destacam-se:

"Artigo 3º São princípios e diretrizes do Governo Digital e da eficiência pública:
I – a desburocratização, a modernização, o fortalecimento e a simplificação da relação do poder público com a sociedade, mediante serviços digitais, acessíveis inclusive por dispositivos móveis;
IV – a transparência na execução dos serviços públicos e o monitoramento da qualidade desses serviços;
V – o incentivo à participação social no controle e na fiscalização da administração pública;
XVII – a proteção de dados pessoais, nos termos da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais);"

Acompanhando a evolução legislativa, percebe-se que o Brasil já apresenta diversas iniciativas de governo digital que aprimoram a prestação de serviços públicos, bem como ampliam a transparência pública e a participação popular. Assim, em âmbito nacional pode-se observar a prática de uma democracia digital que permitem aos cidadãos manifestarem diretamente suas opiniões, escolhas e a colaborarem com as políticas públicas, tais como: o voto eletrônico, os orçamentos participativos em rede, as consultas públicas virtuais. Outrossim, vislumbra-se outros mecanismos que visam a facilitar o controle popular da gestão política, como, por exemplo, o Portal da Transparência, o Portal Nacional de Contratações Públicas e o e-Social.

Portanto, a governança digital, embora ainda embrionária, já pode ser considerada uma realidade na gestão pública brasileira, devendo ser incentivada para um aumento da eficiência administrativa, primando pela transparência e pela ampliação da participação do cidadão. Os novos recursos tecnológicos devem ser vistos como uma oportunidade de otimização da governança, com melhorias nas interações entre a sociedade e o Estado, bem como no aprimoramento da prestação de serviços públicos.

A transparência e a proteção de dados pessoais pelo poder público
Com os avanços tecnológicos vivenciados nos últimos anos, a implementação do modelo de administração pública gerencial e a introdução da noção de Governança Digital, nota-se um incremento da preocupação estatal com a viabilização de formas de acesso à informação e participação popular na gestão pública.

Nesse sentido, Juliano Heinen (Curso de Direito Administrativo, pg. 83-84) explana acerca da participação do cidadão e a transparência na administração pública:

"O conceito moderno de democracia exige ampla participação do cidadão, fomentando a legitimidade das decisões administrativas. E esta legitimidade deve ser vista em vários patamares da ação administrativa, como, por exemplo, no acesso, na decisão, na execução e no resultado dela. Ligada a esta perspectiva estão o aumento dos níveis de transparência do Poder Público, bem como a processualização da administração."

Nessa conjuntura, o artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição é cristalino em prever o direito fundamental de acesso à informação. Em vista disso, a Lei nº. 12.527/2011 disciplinou os procedimentos a serem observados no âmbito da Administração Pública, com o fim de garantir o acesso às informações. No artigo 3º da normativa apresentam-se algumas diretrizes que devem ser observadas pela administração pública quando atua no fornecimento de informações:

"Artigo 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;
II – divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;
III – utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;
IV – fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;
V – desenvolvimento do controle social da administração pública."

Frisa-se que a o dever de transparência no âmbito da Administração Pública abarca não apenas um viés passivo, mas ativo, conforme explica o Superior Tribunal de Justiça:

"O direito de acesso à informação configura-se em dupla vertente: direito do particular de ter acesso a informações públicas requeridas (transparência passiva) e dever estatal de dar publicidade às informações públicas que detém (transparência ativa). Atua, ademais, em função do direito de participação social na coisa pública, inerente às democracias, embora constitua-se simultaneamente como direito autônomo". (REsp nº 1.857.098/MS, relator ministro Og Fernandes, 1ª Seção, julgado em 11/5/2022, DJe de 24/5/2022).

Por outro lado, o artigo 5º, inciso LXXIX, da Constituição Federal também estabelece o direito fundamental a proteção de dados pessoais:

"LXXIX– é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais."

Dessa forma, tornou-se imperiosa a compatibilização do dever administrativo de viabilizar o acesso à informação com a observância das disposições da Lei nº 13.709/2018, a qual disciplinou o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa jurídica de direito público, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Inclusive, ressalta-se que o artigo 23 da normativa elucidou sobre o tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público.

No mesmo sentido, Mariana Lopes (Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados, página 140) explica que a aplicação da LGPD não exclui a observância das demais normativas sobre acesso à informação:

"Vale destacar que a aplicação da LGPD não dispensa ou substitui a obediência pelo Poder Público ao disposto em outras legislações especificas, notadamente a Lei do Habeas Data, a Lei Feral do Processo Administrativo e a já mencionada Lei de Acesso à Informação."

Ressalta-se que, o Poder Público no exercício de suas atividades administrativas executa o tratamento de diversos dados pessoais, tanto de seus próprios servidores, como do público externo. Ademais, em variadas situações o agente público necessita tornar pública alguma informação ou efetuar o compartilhamento dos dados que dispõe.

Entretanto, imperiosa a menção de que, por inúmeras circunstâncias, não se trata de tarefa fácil ao administrador público essa conciliação do direito à proteção dos dados pessoais com o dever constitucional de transparência pública.

Nesse sentir, elucida Têmis Limberger (Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, pg. 284) acerca dos critérios que podem ser utilizados na harmonização do direito de acesso à informação e a proteção de dados pessoais:

"Para deslindar a questão, resulta necessário conciliar o respeito ao direito à proteção dos dados pessoais dos cidadãos com o direito a acessar a informação do setor público, e, para resolver o dilema, são apontados alguns critérios: a) valoração caso a caso da questão de se um dado de caráter pessoal pode  publicar-se, fazer-se acessível ou não, e, em caso afirmativo, em que condições e em que suporte (digitalização ou não, difusão em internet ou não, etc), b) princípios da finalidade e legitimidade, c) informação da pessoa em questão, d) direito de oposição da pessoa em questão, utilização das novas tecnologias para contribuir a respeito do direito à intimidade."

Dessa forma, verifica-se que o poder público na implementação de uma Governança Digital, objetivando a transparência e a participação popular, deverá esmerar-se para o alcance da consonância entre o direito de acesso à informação e a proteção de dados pessoais.

Conclusão
Os avanços tecnológicos e o modelo de administração gerencial influenciaram a adoção de uma governança digital, a qual é primordial para viabilizar o acesso à informação e a participação popular na gestão pública. Averiguou-se a evolução legislativa e os instrumentos aplicados em âmbito nacional como forma de demonstrar que a governança digital, embora ainda incipiente, já vêm sendo implementada na gestão pública brasileira.

Apresentada à celeuma acerca da harmonização dos princípios fundamentais do acesso à informação e da proteção de dados pessoais no âmbito da administração pública, bem como alguns critérios doutrinários que podem ser levados em consideração pelo administrador público para realizar essa ponderação.

Diante do exposto, é possível concluir o poder público tem relevante papel na implementação de uma governança digital, objetivando a transparência e a participação popular, bem como deve atentar-se para a compatibilização dos direitos fundamentais de acesso à informação e a proteção de dados pessoais.

 

 

Referências
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BRASIL. Lei nº 14.129/2021. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14129.htm> Acesso em: 12 ago 2023.

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BRASIL. Lei nº 12.527/2011. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm> Acesso em: 12 ago 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.857.098/MS. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=154035543&registro_numero=202000064028&peticao_numero=&publicacao_data=20220524&formato=PDF> Acesso: 12/08/2023.

GUIMARAES, Tomás de Aquino; MEDEIROS, Paulo Henrique Ramos. A relação entre governo eletrônico e governança eletrônica no governo federal brasileiro. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 3, nº 4, p. 01-18, Dec. 2005. Disponível: https://www.scielo.br/j/cebape/a/ttcnqbgT9WFfH7sCjkzsqrg/?lang=pt . Acesso: 12/08/2023.

HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo – 2ª ed, Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

LIMBERGER, Têmis. Capítulo IV – Do Tratamento de Dados Pessoais pelo Poder Público. Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – São Paulo: Editora Foco, 2022.

LOPES. Mariana. Capítulo IV – Tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

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