10 anos depois

Colaboração premiada e leniência são importantes, mas promoveram abusos

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1 de agosto de 2023, 8h48

A Lei Anticorrupção (12.846/2013) e a Lei das Organizações Criminosas criaram mecanismos importantes, como os acordos de leniência (para empresas) e de colaboração premiada (para pessoas físicas). Porém, falhas nas normas permitiram que ocorressem abusos na utilização dos instrumentos, especialmente na "lava jato".

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Acordos são instrumentos importantes, mas foram usados de forma abusiva por atores da "lava jato"
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Após os protestos de junho de 2013, a classe política se viu obrigada a dar respostas à população. No campo legislativo, o Congresso aprovou, e a presidente Dilma Rousseff sancionou em 1º e 2 de agosto daquele ano, respectivamente, a Lei Anticorrupção e a Lei das Organizações Criminosas.

A Lei 12.846/2013 responsabiliza administrativa e civilmente empresas por atos de corrupção praticados em seu interesse. A norma criou os acordos de leniência para companhias que colaborarem com as investigações.

Já a Lei 12.850/2013 tipifica o crime de organização criminosa no país e estabeleceu medidas especiais para combater o delito. Entre elas, a colaboração premiada — que existia previamente como delação premiada, mas foi detalhadamente regulamentada pela norma. Com isso, as delações deixaram de ser feitas de modo informal, e com a redução da pena dependente da decisão do juiz, e passaram a ser formalizadas em contratos com cláusulas detalhando todos os benefícios e as condições necessárias para obtê-los.

A "lava jato" foi turbinada pelos acordos de leniência e de colaboração premiada. O caso, que começou com suspeitas de lavagem de dinheiro por meio de um posto de gasolina em Brasília, cresceu por causa das delações do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e do doleiro Alberto Youssef — eles foram os primeiros a mencionar irregularidades na estatal.

A partir dali, diversos outros investigados resolveram colaborar com a Justiça, seja pela possibilidade de receber uma punição mais branda — já que a regra era ser condenado —, seja por medo de ficar preso preventivamente por tempo excessivo, prática corriqueira da "cultura lavajatista".

Ao mesmo tempo, diversas empreiteiras, como Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa, firmaram acordos de leniência. Por meio deles, as empresas se comprometeram a pagar pesadas multas.

Legado dos acordos
O jurista Lenio Streck aponta que os acordos de leniência e de colaboração premiada são importantes instrumentos, mas que foram deturpados na "lava jato".

"Os acordos de leniência acabaram sendo um fator de destruição da economia e das empresas. Acordos forçados, empresas constrangidas. O ambiente jurídico era praticamente um Estado de exceção nos últimos anos, até o advento do grande acordo em 6 de agosto de 2020 [quando diversos órgãos públicos firmaram termo de cooperação técnica para acordos de leniência]. Já o acordo de colaboração (delação premiada) é outro mecanismo que foi um tiro no pé. Em si, tanto o acordo de leniência quanto a delação são instrumentos importantes. Mal-usados, em face da má redação legislativa, tornam-se um desastre", avalia Lenio.

O procurador da República Vladimir Aras afirma que a Lei Anticorrupção e a Lei das Organizações Criminosas trouxeram avanços.

"O impacto foi bastante importante na atividade dos órgãos de persecução competentes para lidar com o crime organizado e a corrupção no campo penal e não penal. A expansão dos acordos no âmbito administrativo é um avanço louvável. A regulamentação da colaboração premiada com a natureza jurídica de negócio processual também foi um passo relevante para sedimentar o consenso no sistema judicial brasileiro."

As duas normas tiveram um impacto muito grande no cenário jurídico nacional, opina o criminalista Pierpaolo Cruz Bottini. Porém, ele ressalta que algumas lacunas da Lei das Organizações Criminosas resultaram na deturpação das colaborações premiadas e acabaram gerando problemas práticos, o que aconteceu na "lava jato".

"A falta de limites para o uso da delação como meio de prova permitiu a determinação de medidas cautelares e o recebimento de denúncias com base única e exclusivamente na palavra do colaborador. Isso deu ensejo a muitas injustiças, ao uso da colaboração como instrumento de vingança ou de perseguição política", cita Bottini.

Os acordos foram instrumentos importados pela pauta americana que se fortaleceu após os atentados de 11 de setembro e serviram para formatar uma interferência internacional no Brasil, como ocorreu na "lava jato", opina o advogado Fernando Augusto Fernandes.

Ele classifica a colaboração premiada de "anomalia". E diz que o acordo de leniência deveria dar prioridade a recuperar a empresa e a reparar não apenas danos causados pela corrupção, mas também prejuízos ambientais ou decorrentes de apoios a regimes autoritários. Fernandes cita o exemplo da Volkswagen, que assinou acordo por ter colaborado com a ditadura militar no Brasil.

Na visão do advogado Walfrido Warde, as leis têm falhas. "A utilização abusiva das delações premiadas e de acordos de leniência sob coação sistemática no âmbito da 'lava jato' mostra que ambos os institutos precisam ser mais bem disciplinados."

O criminalista Aury Lopes Jr. analisa que a Lei das Organizações Criminosas é uma "colcha de retalhos", com diversas alterações que não se harmonizam com o sistema penal e processual penal.

Ele ressalta que a "lava jato" promoveu uma "verdadeira farra" de delações ilegais e "à la carte". "O que se viu no pós-2014 foram absurdos, com a força-tarefa do Ministério Público Federal definindo — ilegalmente e previamente — penas, criando (junto com o juiz) regimes de cumprimento de penas ao arrepio da lei, estabelecendo cláusulas de natureza moral e sem qualquer legalidade. Enfim, um bizarro espetáculo punitivista e inquisitório", declara o advogado, destacando que as reformas promovidas pela Lei "anticrime" (Lei 13.964/2019) melhoraram um pouco o cenário ao estabelecer limites ao uso das delações.

Lopes Jr. defende a criação de um órgão encarregado de analisar o impacto social, jurídico e até econômico de novas leis, especialmente o seu impacto penal. "Cumpriram o que prometeram? Deram conta daquilo que foi apontado na justificativa legislativa para sua elaboração? Não temos essa cultura e seguimos com uma produção legislativa casuística, populista (punitivismo) e, não raras vezes, de baixa qualidade técnica, sem acompanhar sua implantação e impacto."

Possíveis melhorias
Há consenso entre especialistas de que a Lei Anticorrupção e a Lei das Organizações Premiadas precisam de melhorias.

Isso pode ser feito pelo Supremo Tribunal Federal — Lenio Streck menciona que, na ADPF 919, o PT pede que a Corte promova interpretação limitando e delimitando os modos de delatar. Ele é um dos advogados que assina a ação, ao lado de André Karam Trindade, Fabiano Silva dos Santos e Marco Aurélio de Carvalho.

Um parecer de Lenio reforça o pedido de revisão dos acordos de leniência firmados até agosto de 2020, feito por Psol, PCdoB e Solidariedade na ADPF 1.051. Atuam no caso os advogados Walfrido Warde, Pedro Serrano, Rafael Valim, Georges Abboud, Valdir Simão, Fernando Marcelo Mendes e Gustavo Marinho de Carvalho.

"Delações premiadas não podem ser celebradas com réus presos, sem a presença do juiz das garantias. Leniências não devem ser celebradas sem as devidas proteções de manutenção existencial das empresas, com calibragem adequada de multa e indenização, sob a ideia do ability to pay. E sempre com a presença da CGU, quando os ilícitos forem praticados contra a União", avalia Warde.

Pierpaolo Cruz Bottini cita os avanços trazidos pela Lei "anticrime", mas sustenta ser preciso tornar as regras da leniência mais claras.

"No que se refere à colaboração premiada, a Lei 'anticrime' trouxe inovações importantes, como a limitação do uso da delação premiada, e a vedação da decretação de medidas cautelares ou do recebimento de denúncia com base apenas na palavra do colaborador. Essa foi uma inovação importante, que garantiu racionalidade e prudência no uso do instrumento. No que se refere à leniência, seria importante reorganizar o sistema, estabelecendo competências, atribuições, e critérios mais claros para fixação das multas e dos valores a restituir."

Para Vladimir Aras, a Lei Anticorrupção deveria ser mais clara quanto às competências para a celebração dos acordos de leniência e a forma de coordenação dos órgãos legitimados, o que abrange as advocacias públicas e os Ministérios Públicos.

"Na Lei das Organizações Criminosas, é preciso corrigir a falha de redação do crime de obstrução da justiça; aperfeiçoar a regulamentação da colaboração premiada para haver mais segurança jurídica; e disciplinar meios especiais de obtenção de provas mais modernos, como o espelhamento de mensageiros instantâneos, a introdução de malwares para cópia de dados em tempo real, a varredura de torres de telefonia (cell tower dump), o geofence (cerco digital), e a quebra de dados a partir de busca terminológica — estes últimos usados no caso Marielle Franco", opina o procurador.

Ele ainda aponta ser urgente editar uma lei geral de proteção de dados em matéria penal, para regulamentar a garantia prevista no artigo 5º, LXXIX, da Constituição Federal, "a fim de que o tratamento de dados na persecução criminal seja feito de modo a fornecer um nível adequado de proteção aos direitos do titular".

Já Fernando Fernandes entende ser preciso restringir a delação a casos em que o réu confessa mesmo sem prêmio e em relação a crimes contra a vida e contra a democracia.

É preciso aperfeiçoar a regulamentação da colaboração premiada. Mas isso, por si só, não melhorará o sistema, avalia Aury Lopes Jr. "Um aspecto precisa ser sublinhado: de nada serve mudarmos leis penais e processuais penais (especialmente) se não mudarmos a cultura dos atores judiciários. E as reformas pontuais não têm força, muitas vezes, para romper o tecido autoritário e mudar — efetivamente — as práticas."

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