Processo Familiar

Prévia outorga conjugal e o interesse familiar do patrimônio empresarial

Autor

  • é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado Consultor e parecerista.

    Ver todos os posts

30 de março de 2025, 8h00

1) Introdução

A obrigatoriedade de prévia averbação da autorização conjugal em caso de alienação ou gravame de imóveis, afetados à atividade empresarial e sob a gestão do empresário casado, dispensando a outorga a cada ato, é objeto do Projeto de Lei 4.926/2024, de 17/12/2024, e pretende constituir maior segurança jurídica nas implicações do patrimônio comum [1].

Jones Figueirêdo Alves

A averbação em registro imobiliário importa em significativa alteração ao artigo 978 do Código Civil [2], que em sua redação atual [3] não exige formalidades específicas e permite que o empresário casado aliene ou grave imóveis do patrimônio da empresa sem a necessidade de outorga conjugal.

Anote-se, lado outro, que o Projeto de Lei do Senado 04/2025, que atualiza o Código Civil, altera o reportado dispositivo apenas para incluir o empresário “que viva em união estável”, em tratamento paritário com o empresário casado [4].

A proposta legislativa, de autoria do deputado federal Jonas Donizete, estabelece mecanismos formais de publicidade, especialmente no âmbito do registro imobiliário, e proteção ao cônjuge. Ao mesmo tempo que preserva a autonomia do empresário na gestão de seu patrimônio empresarial, gera uma maior segurança para terceiros envolvidos nas negociações.

O autor justifica a proposta com base no Enunciado 58 da II Jornada de Direito Comercial [5], que recomenda a prévia averbação da autorização conjugal como forma de dar clareza e segurança à destinação do imóvel ao patrimônio empresarial. A medida visa equilibrar a proteção do núcleo familiar — um valor constitucionalmente assegurado (artigo 226 da CF/88) — com a agilidade nas operações comerciais, frequentemente necessárias à dinâmica empresarial.

O mencionado enunciado, aprovado em Plenária do Conselho de Justiça Federal (CJF), de 27/2/2015, figurando como coordenador da Comissão de Trabalho Empresa e Estabelecimento o jurista Alfredo de Assis Gonçalves Neto, teve a redação seguinte:

“O empresário individual casado é o destinatário da norma do art. 978 do CCB e não depende da outorga conjugal para alienar ou gravar de ônus real o imóvel utilizado no exercício da empresa, desde que exista prévia averbação de autorização conjugal à conferência do imóvel ao patrimônio empresarial no cartório de registro de imóveis, com a consequente averbação do ato à margem de sua inscrição no registro público de empresas mercantis”.

A sua aprovação alterou o Enunciado 6 da I Jornada de Direito Comercial, referindo-se esse a procedimentos que inexistem legalmente no regime do registro imobiliário, como o “prévio registro de autorização conjugal”, ato estranho ao elenco do artigo 167 da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos).

De efeito, a nova redação foi sugerida por comissão integrada por Márcia Maria Nunes de Barros, Thiago Carapetcov e Wilges Bruscato que apresentaram contribuição ao tema.

A justificativa do Enunciado 58, porém, teve estações temporais diversas, não compreendidas, como se observa, no próprio enunciado e, presentemente, pelo PL 9.426/2024, a saber que a autorização conjugal poderia se dar “no momento da aquisição do bem, em apartado, a qualquer momento, ou no momento da alienação ou gravação de ônus”. Vejamos o seu teor:

“(…) Também é importante que os enunciados atentem para a compatibilidade com outras normas legais, no caso em tela, especialmente, ao direito de família. Dessa forma, o texto deveria fazer menção à averbação e não ao registro. O art. 246 da Lei n. 6.015/1973 permite, genericamente, tal averbação, enquanto o rol do art. 167, que trata do registro, faz ‘numeros clausus’. É importante, portanto, revê-lo, substituindo-o pelo que está acima proposto.

Embora a alienação e a gravação de ônus sobre o imóvel utilizado no exercício da empresa pelo empresário individual sejam livres do consentimento conjugal, no teor do art. 978, CCB, a sua destinação ao patrimônio empresarial necessita da concordância do cônjuge, para passar da esfera pessoal para a empresarial.

Essa autorização para que o bem não integre o patrimônio do casal, mas seja destinado à exploração de atividade empresarial exercida individualmente por um dos cônjuges pode se dar no momento da aquisição do bem, em apartado, a qualquer momento, ou no momento da alienação ou gravação de ônus”.

O projeto tramita em regime ordinário e em caráter conclusivo na Câmara dos Deputados e será analisado agora pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), onde ali aguarda a designação de relator.

Nessa linha do princípio da publicidade, ao tornar público o consentimento do cônjuge e a destinação do imóvel ao patrimônio empresarial, a averbação prévia reduz o risco de litígios futuros. Vem proteger o equilíbrio patrimonial entre os cônjuges e resguarda o interesse familiar.

A nova redação ao artigo 978 do Código Civil cumpre uma função estrutural e estratégica em prestígio da proteção do interesse familiar.

De ver que a outorga conjugal, prevista em diversos dispositivos do Código Civil (como o artigo 1.647), é uma manifestação do princípio do equilíbrio patrimonial entre os cônjuges. O PL 4.926/2024, ao condicionar a dispensa da outorga à uma averbação prévia, mantém essa proteção ao exigir que o cônjuge concorde expressamente com a afetação do imóvel à empresa, evitando que decisões unilaterais do empresário comprometam o patrimônio familiar.

2) Contexto e objetivo

O projeto em seu contexto inovador supre lacuna atual do artigo 926 do Código Civil, cumprindo a proteção ao cônjuge e ao núcleo familiar e noutro giro, efetivando a autonomia empresarial quando o empresário casado assume maior flexibilidade na gestão dos bens.

De efeito, sublinhe-se a doutrina em suas áreas especificas:

1) Em face do Direito Imobiliário, pelo princípio da publicidade e da segurança jurídica, tem-se Sílvio de Salvo Venosa, em sua obra Direito Civil: Direitos Reais. Com precisão, indica que o registro público é o instrumento que confere eficácia erga omnes às relações jurídicas envolvendo bens imóveis, garantindo transparência e proteção a terceiros. A exigência de averbação prévia da autorização conjugal, conforme proposta no PL, reforça esse princípio.

2) Em face do Direito de Família, pelo princípio de proteção familiar, tem-se Maria Helena Diniz em seu Curso de Direito Civil. Destaca o regime de bens no casamento objetivando proteger o equilíbrio patrimonial entre os cônjuges, em face da autonomia da vontade de ambos a respeito.

3) Em face do Direito Comercial, tem-se Fábio Ulhoa Coelho, em seu Curso de Direito Comercial. Ele argumenta que o empresário deve ter liberdade para gerir os bens afetados à atividade empresarial, desde que respeitadas as normas de ordem pública. O PL, ao dispensar a outorga em cada ato de alienação ou gravame após a averbação inicial, busca atender a essa necessidade de agilidade, alinhando-se à função social da empresa (artigo 170, III, da CF/88).

4) Em face do Direito Constitucional, tem-se Luís Roberto Barroso, em sua obra O Novo Direito Constitucional Brasileiro. O ministro presidente do Supremo Tribunal Federal enfatiza que a legislação deve adaptar-se às realidades sociais sem perder de vista os direitos fundamentais. A exigência de averbação prévia pode ser vista como uma medida proporcional, pois protege o cônjuge sem inviabilizar a atividade empresarial, desde que o procedimento seja simples e acessível. Daí, sob a ótica constitucional, o PL aparece alinhado aos princípios da segurança jurídica (artigo 5º, caput) e da proteção à família (artigo 226).

3) Implicações Práticas e Críticas

A proposta traz vantagens claras, como a redução de incertezas em transações imobiliárias envolvendo empresários casados e a proteção do cônjuge contra decisões que possam afetar o patrimônio comum. Por outro lado, a obrigatoriedade de um ato formal em cartório pode ser criticada por aumentar a burocracia e os custos operacionais, especialmente para pequenos empresários.

Além disso, a aplicação indistinta a todos os regimes de bens (inclusive separação total) pode gerar questionamentos, já que, em alguns casos, o cônjuge não teria interesse patrimonial direto no imóvel.

Cuide-se necessária, entretanto, diante do projeto legislativo em curso, uma maior atenção acerca da especial circunstância da outorga preordenada, sem tempo e prazo certos, estabelecer “carta de indenidade” ao empresário casado para gravar ou alienar imóveis.

Especificamente, o PL busca exigir o registro em cartório de uma autorização conjugal prévia no momento em que um bem é incorporado ao patrimônio da empresa. Essa averbação seria uma condição para que o empresário possa, posteriormente, vender ou usar esses imóveis como garantia sem a necessidade de nova autorização do cônjuge, independentemente do regime de bens do casamento.

Eis o cerne da questão: a ausência de um tempo e prazo certos para essa autorização levanta questões práticas e jurídicas. Como a autorização é dada sem prazo definido, ela poderá se tornar uma espécie de “carta branca” permanente, o que pode conflitar com a dinâmica de um casamento e com a proteção patrimonial prevista no regime de bens.

Pois bem. Em se interpretando a “carta de indenidade” como uma metáfora para a autonomia ou segurança jurídica que o PL busca conferir ao empresário, o projeto intenta criar mecanismo de dispensa de autorizações futuras, desde que a vontade do cônjuge tenha sido manifestada e registrada previamente. Isso poderá, realmente, simplificar operações imobiliárias no âmbito empresarial, mas também levanta algumas preocupações. Veja-se que uma autorização dada anos antes, em um contexto conjugal e econômico diferente, poderá não refletir a vontade atual do cônjuge, especialmente em regimes como a comunhão parcial de bens, onde os imóveis adquiridos na constância do casamento pertencem a ambos.

A exigência de uma outorga preordenada, sem prazo certo, pode ser problemática sob a ótica da proteção do cônjuge não empresário. Em um cenário onde a relação conjugal se deteriora ou as condições financeiras mudam, o cônjuge que deu a autorização poderá, por certo, ficar desprotegido, sem meios de contestar decisões que afetam o patrimônio familiar.

Para além disso, a proposta não parece prever como lidar com situações em que o bem incorporado ao patrimônio empresarial deixe de ser usado para essa finalidade — o que poderia exigir uma nova avaliação da outorga.

4) Conclusões

Apoiado na doutrina civilista e comercial, o projeto reflete a busca por equilíbrio entre autonomia e responsabilidade, embora sua implementação prática dependa de regulamentação que evite excesso de formalismo.

Caso aprovado, alterará o artigo 978 do Código Civil de forma a exigir a averbação prévia como condição para a dispensa da outorga conjugal, marcando uma evolução no tratamento dos bens empresariais no âmbito do casamento.

Em comentário ao dispositivo, em sua atual redação, o jurista Mário Delgado acentua:

“A exigência da vênia conjugal tem por escopo a proteção ao patrimônio da família, uma vez que o patrimônio do empresário (e aqui o artigo está se referindo ao empresário individual), confunde-se com o patrimônio da pessoa natural” (…) Assim, se o empresário e a pessoa física constituem-se em uma mesma pessoa (o Código não atribui personalidade jurídica ao empresário), o patrimônio empresarial e o individual também formam um todo único, não sendo possível na literalidade do art. 1.647, prescindir da autorização do outro cônjuge no caso de alienação ou gravame”. Mais adiante, admite, porém, a flexibilização, especialmente quando o bem imóvel compõe o próprio objeto da atividade empresarial, excepcionando-se a regra do dispositivo [6].

Em suma, o PL 4.926/2024 pretende representar um avanço na harmonização entre os interesses do empresário e a proteção do cônjuge, quando de há muito discute-se uma pretendida hierarquização do Direito Empresarial em relação ao direito de família.

Não há, contudo, em nosso sistema jurídico, uma supremacia intrínseca de um sobre o outro, pois ambos derivam do mesmo nível normativo, pertencem ao âmbito do Direito Privado e operam em esferas distintas, com propósitos e objetos específicos. Não obstante, o Direito de Família, ao definir o regime de bens, pode impactar o Direito Empresarial se um cônjuge for sócio de uma empresa ou quando a escolha do regime pode limitar ou ampliar a responsabilidade patrimonial em dívidas empresariais. Noutro giro, assinale-se a interação com o Direito Empresarial, em face da morte de um empresário, especialmente na continuidade de uma sociedade ou na partilha de quotas.

O projeto simplifica as regras para empresários casados, facilitando a gestão de bens empresariais, mas levanta preocupações sobre a proteção patrimonial do cônjuge. Este, aprovado, trará maior dinamismo ao ambiente de negócios, mas deve-se exigir mecanismos adicionais para evitar abusos e proteger os direitos do outro cônjuge, designadamente ao dispor sobre a nova figura jurídica de autorização antecipada.

Assim, impende sublinhar, sempre, as maiores garantias ao cônjuge não empresário ao conferir a outorga.


[1] PL 4.926/2024. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2843770&filename=PL%204926/2024.

[2] Art. 978, CC. Redação proposta: “O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real, desde que exista prévia averbação de autorização conjugal à conferência do imóvel ao patrimônio empresarial no cartório de registro de imóveis, com a consequente averbação do ato à margem de sua inscrição no registro público de empresas mercantis (NR)”.

[3] Art. 978, CC. Redação atual: “O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real”.

[4] PL n. 04/2025, que dispõe sobre a atualização do Código Civil. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2843770&filename=PL%204926/2024.

[5] II Jornada de Direito Comercial. CJF/2015. Web: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-de-direito-comercial/enunciados_aprovados-referencia_legislativa-justificativa_ii_jornada.pdf.

[6] DELGADO, Mário Luiz e all. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 4ª ed., 2022, p. 750.

Autores

  • é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, Consultor e parecerista.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!