Flagrante preparado e ilusão do crime impossível: crítica à Súmula 145 do STF
30 de março de 2025, 15h24
A Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, ao afirmar que “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”, institui um entendimento que, à primeira vista, parece ser uma forma de proteger os cidadãos contra abusos da autoridade policial. No entanto, tal premissa está longe de ser inquestionável. Embora amplamente aceita nos tribunais, essa abordagem ignora um aspecto crucial: o agente que demonstra intenção criminosa deveria ser responsabilizado, ainda que a consumação do crime tenha sido frustrada por uma ação estatal. O flagrante preparado, em muitos casos, deveria ser tratado como tentativa punível, uma vez que, mesmo sem consumação, o dolo e os atos executórios já estão presentes.

No Brasil, a concepção de crime impossível, em que o flagrante preparado se insere, não é tão clara quanto se tenta apresentar. Ao classificar o flagrante preparado como um caso de crime impossível, a jurisprudência brasileira cria uma falsa ilusão de que a intervenção do Estado apaga a intenção criminosa do agente. No entanto, a própria estrutura do Direito Penal nos diz que o agente que age com dolo, ainda que sua ação não se concretize devido à atuação de outro agente (como o Estado), deve responder por seus atos. A argumentação da jurisprudência vigente, que visa proteger a liberdade do indivíduo de ser preso sem culpa, acaba por desconsiderar a periculosidade do agente e sua real disposição criminosa.
A teoria do crime impossível, como tradicionalmente aplicada, sustenta que quando o meio empregado para cometer o crime é absolutamente ineficaz, ou quando o objeto do crime não existe, a consumação não se verifica. Isso poderia justificar a absolvição do agente. Contudo, no flagrante preparado, não estamos diante de uma ineptidão do meio ou inexistência do objeto; o que ocorre é que o crime não se consuma por uma intervenção externa, o que deveria, no mínimo, caracterizar a tentativa.
O reconhecimento de que a tentativa deve ser punida em casos de flagrante preparado não é apenas uma questão técnica, mas uma necessidade de coerência com o princípio da proporcionalidade e da punição justa. Excluir a tentativa em flagrantes preparados representa uma falha na aplicação do Direito Penal, que deveria ser mais eficaz em responsabilizar aqueles que, com dolo específico, começam a praticar um crime, mesmo que ele não se consuma.
Exemplo prático
Considere a seguinte situação: um policial se infiltra em uma organização criminosa e, por meio de seu disfarce, induz um traficante a vender-lhe drogas. No momento em que o traficante entrega a substância, o policial o prende em flagrante. Pela interpretação da Súmula 145 do STF, esse traficante não responderia criminalmente, pois o crime de tráfico nunca se concretizaria. No entanto, a crítica doutrinária aponta que houve um início de execução do crime, com o agente praticando atos executórios e evidenciando a sua intenção criminosa. Logo, a responsabilização por tentativa é não apenas justificada, mas essencial para a efetiva repressão ao crime.

Jurisprudência contraditória
Embora a Súmula 145 seja o entendimento majoritário, a jurisprudência não é completamente uniforme. O julgamento do Habeas Corpus 92507/SP, por exemplo, reafirma a aplicação da súmula, mas com votos divergentes que reconhecem que, em alguns casos, a punição deveria ser admitida.
Essa divergência reforça a importância de adotar uma abordagem mais rigorosa na responsabilização de agentes que demonstram dolo evidente, mesmo em casos de flagrantes preparados.
Comparação com outras jurisdições
No cenário internacional, a abordagem brasileira se mostra extremamente leniente. Em sistemas jurídicos como o norte-americano e o alemão, a tentativa de crime é punível, mesmo que a consumação do delito seja frustrada pela intervenção policial. Nos Estados Unidos, o conceito de “entrapment” (indução ao crime) admite que o agente que demonstra predisposição criminosa e inicia a execução do crime, mesmo que induzido por agentes estatais, deve ser responsabilizado. De forma semelhante, na Alemanha, a tentativa é punível quando há o início da execução, independentemente da ação estatal que impeça a consumação do crime. A diferença do Brasil, ao absolver automaticamente o agente em flagrante preparado, configura um incentivo à impunidade, criando um vácuo que pode ser explorado por criminosos contumazes.
Implicações de política criminal
A manutenção da Súmula 145 representa uma falha nas políticas públicas de combate ao crime, ao permitir que criminosos, cientes de que sua conduta será isenta de punição caso haja intervenção policial prematura, se sintam encorajados a testar os limites da lei. Esse posicionamento enfraquece a prevenção criminal e gera um problema de segurança pública, uma vez que pode gerar um efeito de leniência nas ações estatais. Além disso, desconsidera-se a real intenção criminosa do agente, que, ao iniciar um ato criminoso, já demonstra uma disposição perigosa para o ilícito, independentemente de sua consumação.
Uma reinterpretação da Súmula 145, permitindo a punição pela tentativa em flagrantes preparados, seria um passo fundamental para garantir maior coerência com os princípios do Direito Penal. Tal mudança não apenas tornaria o sistema mais eficaz no combate ao crime, mas também promoveria maior justiça penal, responsabilizando adequadamente aqueles que se dispõem a cometer crimes.
Conclusão e proposta de reinterpretação
Em face das críticas expostas, é imperativo que o STF reinterprete a Súmula 145, permitindo que casos de flagrante preparado, especialmente quando houver início de execução do crime, sejam tratados como tentativa punível. Isso não apenas adequaria o entendimento à lógica do Direito Penal, mas também contribuiria para uma política criminal mais eficaz, mais justa e mais alinhada aos princípios da proteção à ordem pública e à segurança jurídica.
Além disso, a distinção clara entre flagrante preparado e flagrante esperado deve ser um critério rigoroso na aplicação da lei, para evitar que abusos por parte das autoridades policiais se perpetuem. Garantir um equilíbrio entre a repressão ao crime e a proteção dos direitos fundamentais é essencial para um sistema penal mais equilibrado e eficiente.
Referências bibliográficas
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 145. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2025.
HABIB, André Estefam. Direito Penal – Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 92.507/SP. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 06 maio 2008. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 24 mar. 2025.
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