Inquérito n° 4.781 do STF completa 6 anos e cria precedente único
23 de março de 2025, 8h17
Em 14 de março de 2019 foi instaurado no Supremo Tribunal Federal o Inquérito nº 4.781, tendo por objeto a “investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros, bem como de seus familiares”… [1]

Distribuído ao Ministro Alexandre de Moraes, após investigações preliminares foi proferida decisão em 26 de maio, determinando uma série de providências como, exemplificativamente, bloqueio de contas em redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Instagram, dos investigados, afastamento do sigilo bancário, pesquisa no Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS) e oitiva de testemunhas, decretando-se, desde logo, segredo de justiça. [2]
Menos de um mês depois, o ministro Marco Aurélio votou contra o prosseguimento do inquérito, dando-lhe o nome de “inquérito do fim do mundo”, atribuindo-lhe a condição de natimorto e “uma afronta ao sistema acusatório do Brasil”. [3] Enganou-se Sua Excelência, pois o inquérito vem tendo longa existência, com tramitação contínua e abrangente por seis anos. Como foi decretado segredo de justiça, desconhecem-se quais são as provas nele existentes.
Nesta análise não serão enfrentados os diversos aspectos relacionados em 2020 pelo então Presidente da OAB do Paraná, Cássio Lisandro Telles. [4] Aqui o foco será o tempo de duração e o passo seguinte, ou seja, a conclusão das investigações.
Extremos da legislação quanto à segurança do Estado
Nos tempos da Colônia, o Brasil regeu-se pelas Ordenações Filipinas e nestas o livro 1, título 65, previa a realização das devassas. Como ensinam Sabadell e Costa Manoel,
As devassas eram divididas em gerais e especiais. As primeiras eram tiradas em casos excepcionais e sobre delitos incertos. Já na segunda, o crime era conhecido e a investigação buscava o agressor. Se caracterizavam como o instrumento de investigação de delitos no Brasil colônia. Deste modo, eram poderosas ferramentas para demonstrar o poder do Estado e obter informações. [5]
No Império, a Constituição disciplinou no artigo 179 a inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, sendo as devassas excluídas do ordenamento jurídico.
Mais de um século depois, a Lei 244, de 11 de setembro de 1936, instituiu o Tribunal de Segurança Nacional, órgão da Justiça Militar, com sede no Distrito Federal (então Rio de Janeiro), com a finalidade de processar e julgar ações contra instituições políticas e sociais e jurisdição em todo o território nacional.
O draconiano TSN tinha previsões processuais que impediam o exercício da defesa, como o dever do réu de apresentar as suas testemunhas no dia do julgamento ou o fato de o Tribunal não ficar vinculado à qualificação do crime na denúncia, o que, por falta de previsão de aditamento pelo MP, poderia resultar em uma sentença mais grave do que a acusação feita na denúncia.
Durante o regime militar, os crimes contra a Lei de Segurança Nacional eram investigado através de inquérito policial militar, conforme previsto no Código de Processo Penal Militar,[vi] podendo o encarregado do IPM manter o acusado incomunicável e decretar a sua prisão por 30 dias, prorrogáveis por mais 20 (arts. 17 e 18).
O Brasil atual e o secular conflito norma x segurança do Estado
O tema em discussão envolve o antigo e complexo conflito entre a proteção dos direitos individuais e a segurança do Estado. Por óbvio, nenhum conflito existirá em um país governado por um ditador. Ninguém ousaria confrontar as conclusões da “Section Spéciale”, tribunal criado pelos alemães quando dominaram a França, e que Arnaldo Godoy comenta, lembrando, entre outras coisas, que “aplicou uma lei retroativa em matéria penal” e que “as sessões do julgamento se processavam a huis clos (portas fechadas)”. [7]
No regime democrático, obviamente, é muito mais difícil. Ainda mais no Brasil, onde a Constituição Federal de 1988 foi pródiga na concessão de direitos sociais, individuais e políticos. O equilíbrio entre estes e a segurança do Estado é de difícil concretização, mas precisa ser procurado da forma mais próxima do ideal.
Se a balança pender apenas no sentido da proteção dos direitos do cidadão, sem atenção aos seus deveres, o Estado poderá vir a ser anárquico. O Brasil, em alguns aspectos, já chegou a esta situação. Por exemplo, no domínio de partes do território por organizações criminosas. Mas se a balança pender para o outro, ter-se-á o risco de situações extremas, como o Esquadrão da Morte, existente em São Paulo nos anos 1970, que eliminava criminosos reincidentes que, ao seu critério, merecessem.
Por tal motivo, a decisão que determinou as providências e o sigilo no inquérito nº 4.781 procurou apoio na doutrina e jurisprudência da Corte. E nem poderia ser de outra maneira, pois é de todos conhecido o forte currículo do Ministro Alexandre de Moraes [8] e seus conhecimentos do Direito Constitucional.
Nas folhas 24 a 28 da decisão inicial, externa seu prolator a sua preocupação em achar o ponto conciliatório e o faz com base em precedente relatado pelo ministro Celso de Mello, na doutrina estrangeira e na Declaração de Direitos do Homem, ONU, 1948. Expressamente afirma na 24ª folha que “Os direitos e garantias individuais, consequentemente, não são absolutos e ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas)”.
E assim tiveram início e depois continuaram investigações contra uma grande quantidade de pessoas físicas ou jurídicas, com bloqueio de valores depositados, suspensão de contas em redes sociais e outras medidas coercitivas. Na decisão, o ministro relator fez constar: “Nesse contexto, nos termos da LC 105/01 e sempre em caráter de absoluta excepcionalidade, é possível o afastamento dos sigilos bancários e fiscais dos investigados…” (fls. 28).
Perspectivas do inquérito nº 4.781 do STF
Após seis anos de tramitação, é de se presumir que o inquérito nº 4.781 já tenha chegado a relevantes conclusões e que venha, agora, fundamentar denúncias ou pedidos de arquivamento pela Procuradoria Geral da República, além de ações civis.
Os motivos que justificaram a sua instauração, acatados pela maioria dos ministros da Corte, por certo foram identificados. Afinal, se um inquérito policial tem o prazo de 30 dias para acabar (art. 10 do CPP), ainda que por vezes ele se exceda por força das dificuldades da investigação, nada mais lógico que um inquérito judicial, com a atenção máxima da Polícia Federal, chegue a uma conclusão tendo tempo muito maior.
Não será agora, com uma Constituição garantista, que tem merecido este tratamento pelo STF em centenas de recursos ou habeas corpus criminais, que a Corte agirá como alguns tribunais do passado, dos tempos da Colônia ao regime militar. Em outras palavras, o STF precisa manter a coerência, pois só esta grangeia a confiança da sociedade. Ademais, a Corte tem a responsabilidade de orientar com os seus julgados cerca de 17.000 magistrados brasileiros.
Da mesma forma a PGR e a OAB nacional, ambas certamente cientes de detalhes no inquérito que justificariam a excepcional investigação, mas que seis anos depois devem ter destino definido e serem levados ao conhecimento da sociedade.
Conclusão
Em suma, na opção brasileira pela democracia, ao contrário de tantos países próximos ou distantes que optaram por um regime ditatorial, é tempo de dar-se destino ao Inquérito 4.781, precedente único após a Independência do Brasil. Por tudo o que foi dito e também porque os 11 ministros da Corte, o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e o Procurador Geral da República merecem passar à história como legítimos defensores daquele regime que, segundo Churchill “é a pior forma de governo, exceto por todas as outras formas que já foram tentadas na história”. Aguardemos.
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[1] STF. Portaria GP nº 69 de 14 de março de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/co/comunicado-supremo-tribunal-federal1.pdf. Acesso em: 21 mar. 2025.
[2] STF. Decisão. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/mandado27maio.pdf. Acesso em: 21 mar. 2025.
[3] R7. É um inquérito do fim do mundo, diz ministro Marco Aurélio. Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/e-um-inquerito-do-fim-do-mundo-diz-ministro-marco-aurelio-29062022/. Acesso em 21 mar. 2025.
[4] TELLES, Cássio Lisandro. OAB Paraná. Artigo: O inquérito do fim do mundo, 3 ago. 2020. Disponível em: https://www.oabpr.org.br/artigo-o-inquerito-do-fim-do-mundo/. Acesso em 21 mar. 2025.
[5] SABADELL, Ana Lúcia e COSTA MANOEL, Júlio César. Considerações sobre as Inquirições Devassas no Brasil: os casos do Recôncavo Baiano – Séculos XVIII e XIX. Disponível em: https://rbdpp.emnuvens.com.br/RBDPP/article/view/624/417#content/contributor_reference_2. Acesso em: 21 mar. 2025. Acesso em: 21 mar. 2025.
[6] BRASIL. DECRETO-LEI Nº 1.002, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. Código de Processo Penal Militar. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm
[7] GODOY, Arnaldo. “Sessão Especial de Justiça”, de Costa-Gravas. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 6 de junho de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-06/embargos-culturais-sessao-especial-justica-costa-gravas/. Acesso em: 21 mar. 2025.
[8] STF. Alexandre de Moraes. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/ostf/ministros/verMinistro.asp?periodo=STF&id=50. Acesso em: 21 mar. 2025.
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