História do Cerco de Lisboa, de José Saramago
23 de março de 2025, 7h50
“História do Cerco de Lisboa” (HCL) é, ao mesmo tempo, o livro mais fácil e o livro mais difícil de José Saramago. É o livro mais fácil porque o enredo é simples. Um revisor dolosamente coloca um “não” em um texto que revisava, confundindo e subtraindo todo o sentido na história.

Trata-se da conhecida história oficial do cerco de Lisboa, tantas vezes contada. Os cristãos, com ajuda dos cruzados, teriam desalojado os muçulmanos, que ocupavam a parte alta da cidade. O “não” retirou a ajuda dos cruzados. A história, então, ficou substancialmente alterada.
No pano de fundo, penso, há uma provocação sublimar que afeta o leitor: a literatura pode alterar a história? Nesse sentido, HCL é um desafio aos pontos fundamentais do gênero chamando romance histórico, que muitos acreditam não ser romance e não ser história também. Nesse quesito HCL é romance e é história.
O revisor (Raimundo é seu nome) foi advertido. A editora contratou uma profissional que chefiará os revisores, de modo que esses erros não ocorram mais. A nova chefe (seu nome á Maria Sara) sutilmente o incentiva a reescrever a história do cerco de Lisboa, sob essa nova perspectiva. Antes, no entanto, há um conflito entre os dois. Maria Sara, porém, será a redenção de Raimundo. Há uma paixão repentina no ar.
Porém, na medida em que a história do cerco é recontada, o livro de Saramago fica complicado. Complicadíssimo. É como se o leitor fosse obrigado a ler todos os antigos cronistas portugueses, com uma multiplicação exponencial de pormenores. São detalhes cansativos. Há uma tendência ao desvio da atenção. O leitor tem que estar atento. É muita gente, muito discurso, muito descrição de lugares e de falas.
Além disso o revisor (agora narrador) coloca a si mesmo e à chefe amada no meio da guerra, nos papeis de um guerreiro e de uma galega lutadora. O leitor enfrenta duas narrativas, uma delas extremamente simples e direta (o revisor e sua nova chefe), a outra delas extremamente complexa (o revisionismo da história do cerco de Lisboa).
Encantam a timidez, a sobriedade e a organização de Raimundo. Extremamente responsável, pode ser dizer que colocou o “não” porque freudianamente falando não aceitava o discurso tradicional do cerco. Ou então, também freudianamente, a situação pode colocar em evidência a insurgência de Saramago com a história oficial.
Há uma contestação muito nítida da historiografia romântica, que em Portugal triunfou com Alexandre Herculano e Almeida Garrett. Segundo uma das mais importantes estudiosas dos personagens de Saramago (Salma Ferraz) Maria Sara é um exemplo das mulheres preferidas de Saramago: feminina, audaz, proativa, dinâmica, resolutiva. É uma mulher que conduz discretamente o universo masculino. Uma mulher que toma iniciativas.
HCL é um livro que trata de vários temas aliciantes: crítica literária (a relação do romance com a história), crítica histórica (os modos como se escreve a história), crítica genética (a forma como se constrói um texto). É um livro que se propõe a questionar as fronteiras que há entre o evento histórico e a criação literária.
Saramago discorre sobre o complexo tema do anacronismo (ou do presenteísmo), quando impomos aos tempos antigos nossa visão contemporânea. Ilustra essa tensão com o tema do amor. O amor romântico é atemporal? O autor também discorre sobre o tema das fontes da escrita histórica, seu nível de confiabilidade, o que consiste em um dilema historiográfico complexo demais.
Um dos tópicos conceituais do livro é a questão da permanência das dúvidas históricas: afinal, os cruzados ajudaram os não ajudaram os cristãos no cerco de Lisboa? A guerra era total contra os infiéis ou a guerra era apenas em relação a Jerusalém?
Descrições alucinadas
Há passagens do livro que nos lembram as descrições alucinadas de Jorge Luís Borges e de Umberto Eco. Há uma discussão em torno da explicação de nossos atos impensados (no caso, o uso do “não”). Saramago registrou em entrevista que o “não” lhe parecia a palavra mais importante do idioma. O “não” revela-se como um ato essencial e definitivo em nossas vidas. Além do que, há muitos de nós que simplesmente não conseguimos dizer “não”. O quanto sofremos por essa incapacidade cognitiva e comportamental?
HCL é um estudo sobre as relações entre autor, editor e revisor. Saramago investiga a responsabilidade do revisor na cadeia produtiva de um livro. HCL estuda problemas de hierarquia, opondo reis e soldados, editores e revisores.
HCL é um livro no qual Saramago desafia, desconstrói e reinventa. Joga abruptamente o leitor em uma jornada alucinante entre o poder do “não” e o abismo entre a história oficial e a imaginação literária. Com o simples gesto de um revisor rebelde, um ponto de virada emerge e se instaura: e se a narrativa que define uma civilização pudesse ser alterada por um único pormenor? A história deveria ser reescrita?
Raimundo e Maria Sara conduzem, ora com delicadeza, ora com intensidade, ora com um antagonismo enervante, para um fecho no qual amor e insurreição intelectual se entrelaçam. Sim, esse enlace é possível. Há muita ironia história, muito personagem marcante, e uma questão central, já colocada por Bertold Brecht no célebre poema: “Perguntas de um operário que lê”: afinal, quem escreve a história?
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