Recorribilidade da decisão que determina a reformulação da proposta de ANPP
18 de março de 2025, 19h32
Contextualizando o ANPP: um mecanismo de difusão de categorias econômicas alçado a instituto de Justiça Penal Negocial
A utilização de critérios macroeconômicos para amplificar a barganha no Processo Penal não é novidade, embora a tentativa de transpor a racionalidade dos institutos norte-americanos análogos tenha dado à luz, em solo pátrio, o Acordo de Não Persecução Penal (artigo 28-A do CPP).
É bem possível que tenha sido melhor assim: a prática judiciária certamente confirmaria a conclusão, já anunciada pelo professor Luigi Ferrajoli, de que “os poderes, livres de limites e controles, tendem a concentrar-se e acumular-se em formas absolutas: a converterem-se, na falta de regras, em poderes selvagens” [1].
De toda sorte, na busca de novos paradigmas para a verificação das consequências práticas das decisões judiciais [2], o Supremo Tribunal Federal tem registrado que a corte está à procura de certa estabilidade jurisprudencial em relação às controvérsias que rondam o ANPP. Algumas dessas controvérsias, em especial as discussões acerca da constitucionalidade de determinados dispositivos, foram enfrentadas no julgamento conjunto das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 pelo STF; que, bem, fez o que fez com o juiz das garantias.
Neste fôlego, a Suprema Corte decidiu que a Justiça Penal Negocial adota, na linha teórica de Ronald Coase, a premissa de que se está diante de um Mercado Judicial Penal, em que a eficiência é alcançada por meio da redução dos custos de transação. Esse objetivo seria resultado de concessão de amplos poderes negociais às partes [3].
A propósito, ao tratar do ANPP em um voto recheado de referências a expoentes chicaguianos do Law and Economics, o ministro Gilmar Mendes já advertiu que o modelo consensual é independente e mesmo antecedente ao procedimento penal de conhecimento. Essa característica permitiria que o consenso seja obtido pela “livre disposição de vontades das partes, no exercício da autonomia conferida pelo art. 28-A do CPP”.
De acordo com essa intelecção, o ato negocial trata o “evento histórico objeto do caso penal” como “algo a ser construído e estabelecido pelos negociados”, o que é diametralmente distinto da formação de uma sentença de mérito proferida por órgãos do Poder Judiciário, em que intervém um terceiro imparcial cuja atuação, no âmbito do acordo de não persecução penal, seria restrita à homologação, sem incursões sobre a verificação da hipótese acusatória [4].
A natureza jurídica do ANPP — negocial e atrelada a uma certa discricionariedade regrada conferida ao Ministério Público, limitada pela legalidade — tem feito com que a jurisprudência seja comedida no que diz respeito às possibilidades de intervenção judicial para o controle dos atos praticados nessa arena peculiar da Justiça Criminal.
Assim é que o STF já decidiu que o “ANPP, introduzido pelo Pacote Anticrime, é negócio jurídico processual que depende de manifestação positiva do legitimado ativo (Ministério Público), vinculada aos requisitos previstos no art. 28-A do CPP, de modo que a recusa deve ser motivada e fundamentada, autorizando o controle pelo órgão jurisdicional quanto às razões adotadas”, embora o acusado/investigado não tenha “direito subjetivo ao ANPP, mas sim o direito subjetivo ao eventual oferecimento ou a devida motivação e fundamentação quanto à negativa”.
Portanto, dado o caráter negocial do ANPP, o “Órgão Judicial exerce controle quanto ao objeto e termos do acordo, mediante a verificação do preenchimento dos pressupostos de existência, dos requisitos de validade e das condições da eficácia, podendo decotar ou negar, de modo motivado e fundamentado, a respectiva homologação” (HC 185913/DF, rel. min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 18/9/2024).
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, decidiu que o acordo de não persecução penal, de modo semelhante ao que ocorre com a transação penal ou com a suspensão condicional do processo, introduziu, no sistema processual, mais uma forma de justiça penal negociada. Se, por um lado, não se trata de direito subjetivo do réu, por outro, também não é mera faculdade a ser exercida ao alvedrio do Parquet.
O ANPP é um poder-dever do Ministério Público, negócio jurídico pré-processual entre o órgão (consoante sua discricionariedade regrada) e o averiguado, com o fim de evitar a judicialização criminal, e que culmina na assunção de obrigações por ajuste voluntário entre os envolvidos. Como poder-dever, portanto, observa o princípio da supremacia do interesse-público – consistente na criação de mais um instituto despenalizador em prol da otimização do sistema de justiça criminal – e não pode ser renunciado, tampouco deixar de ser exercido sem fundamentação idônea, pautada pelas balizas legais estabelecidas no art. 28-A do CPP (HC 657165/RJ, rel. min. Rogerio Schietti, 6ª Turma j. 9-8-2022).
A natureza sui generis do ANPP – que abarca, como dito, uma discricionariedade regrada e, pari passu, determinadas possibilidades de controle jurisdicional – trará reflexos e dificuldades em relação à recorribilidade das decisões judiciais proferidas em seu bojo.
Decisão que determina a reformação da proposta e cabimento de recurso em sentido estrito: uma leitura adequada à natureza do ANPP
Para além de toda a problemática que envolve a natureza mesma do instituto, com reflexos práticos que desaguam, ao fim e ao cabo, no filtro da jurisprudência dos tribunais, o acordo de não persecução penal também impacta um aspecto que diz respeito aos recursos processuais penais.
Sabe-se que, na sistemática recursal criminal, o Código de Processo Penal, em seu artigo 581, traz um rol taxativo de decisões interlocutórias e sentenças que desafiam a interposição de recurso em sentido estrito [5]. Esse rol é bastante amplo, embora alguns dos incisos tenham sido explicitamente revogados (caso do inciso VI), ou possam ser considerados como revogados de forma tática ou implícita (como é o caso inc. XVII), já que, como se sabe, no campo da execução penal o recurso cabível é o Agravo do artigo 197 da Lei de Execução Penal).

Lado outro, o inciso XXV do artigo 581 é claro ao prever o cabimento de Recurso em Sentido Estrito contra decisão que recusar homologação à proposta de acordo de não persecução penal nos termos do artigo 28-A. Trata-se da decisão prevista no § 7º do mesmo dispositivo legal, de acordo com a qual “[o] juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo”.
Já o § 5º estabelece que, “[s]e o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor”. A lei, como se vê, silencia quanto à recorribilidade, por via do RSE, dessa decisão que parece determinar ao Parquet a reformulação da proposta de ANPP.
Reforça-se, assim, a advertência de Aury Lopes Jr. e Vitor Paczek no sentido de que as perigosas “americanizações” de institutos incorrem no erro metodológico de inserir, a fórceps, um mecanismo típico do Common law em um Processo Penal alinhado à matriz do Civil Law, olvidando-se da metáfora de Walsh no sentido de que os norte-americanos transformaram o Processo Penal “em um luxuoso Cadillac, grande, caro e pesado”, ao qual ínfima parcela da população tem acesso, o que significa que apenas a 2% das pessoas é reservado o luxo, ao passo que os 98% restantes devem andar a pé [6].
É assim que, de forma muito sutil, a ausência de possibilidade de impugnação recursal da decisão prevista no § 5º do artigo 28-A do CPP anda na contramão da já confusa teleologia que se quer imprimir ao instituto; e, nessa toada, deve-se admitir, sem maiores constrangimentos epistêmicos e sem por óbvio regozijar-se com essa dinâmica, que a realidade pragmática está a tratar de um negócio em um ambiente de mercado.
Se assim for — e assim parece ser — o uso das expressões “inadequadas, insuficientes ou abusivas” para se referir às condições dispostas no acordo de não persecução penal remete mais a um juízo de conveniência e oportunidade/discricionaridade do que de legalidade — único terreno em que, desde essa racionalidade, a jurisdição poderia adentrar para realizar qualquer tipo de controle. Portanto, a inadmissibilidade da utilização de Recurso em Sentido Estrito para impugnar essa particular decisão não se coaduna com a distância que a jurisprudência tem reservado à intervenção do Poder Judiciário no que tange ao controle dos atos negociais praticados no bojo do ANPP.
O tema, até o momento, parece não ter se deparado com discussões de ordem prática. Pesquisa jurisprudencial, salvo melhor juízo, não foi capaz de identificar impugnações recursais a decisões dessa natureza, seja por parte da defesa, seja por parte do Ministério Público. Mas, como a realidade é sempre muito mais criativa que a teoria, isso não tardará a acontecer.
A doutrina, de seu lado, tem tratado do tema, ainda que de forma não exaustiva; talvez pela ausência de situações concretas.
Para Gustavo Badaró, “no caso de o acordo conter cláusulas consideradas ilegais, seja porque inadequadas, insuficientes, ou abusivas, antes de recursar a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta e obtida a concordância do investigado (art. 28-A, § 5º). Esse ato de determinação de reformulação não é recorrível. Somente se, depois de tal etapa de reformulação, e reapresentada a proposta de acordo de não persecução, para nova tentativa de homologação, o juiz considerar que os termos reelaborados do acordo, ainda assim, são ilegais, e recusar a homologação (art. 28-A, § 7º), caberá o recurso em sentido estrito” [7].
Aury Lopes Jr, por sua vez, refere que a “situação passível de recurso, tanto por parte do Ministério Público como também da defesa é aquele que recusa a homologação de um acordo de não persecução penal firmado pelas partes e submetida ao controle judicial de legalidade pela homologação. […] Portanto, quando o juiz recusar a homologação do acordo, deverá fundamentar nas hipóteses legais que justificam sua intervenção e controle, cabendo a qualquer das partes interessadas ou mesmo a ambas (MP e defesa) impugnar a não homologação através desse Recurso em Sentido Estrito” [8].
Reconheça-se que a redação do parágrafo não é das melhores: como dito, as expressões abusivas, insuficientes e inadequadas remetem a critérios que se circunscrevem à discricionariedade regrada conferida à capacidade de negociação do MP, e não à legalidade propriamente dita. Permitir que o juiz determine a reformulação da proposta por entender que ela seja abusiva (sob qual ponto de vista? do rol de condições negociadas?), insuficiente (em relação ao que? à prevenção e à repressão do crime?) e inadequada (a que finalidades?), ainda que na esfera sui generis da Justiça Penal Negocial, parece, sem embargo, violar o perfil acusatório que se pretende imprimir ao Processo Penal brasileiro, especialmente, a partir do advento do artigo 3-A do CPP. Se, desde esse marco, a jurisprudência reconhece a discricionaridade do Ministério Público e a excepcionalidade do controle jurisdicional dos atos negociais, limitado a casos de violação da legalidade, não parece coerente que o juiz determine ao titular dessa particular capacidade negocial que reformule a proposta — sem embargo, é claro, da participação da defesa nas tratativas.
Assim as coisas, a posição mais adequada e fundamentada parece estar com a autoridade no assunto de Vinicius Gomes de Vasconcellos, para quem “há espaços em que as decisões de não homologação e devolução findam por se aproximar ou até mesmo se confundir. Formalmente, a decisão de devolução do acordo é distinta de uma não homologação. Diante disso, as partes poderiam reanalisar o termo e, não concordando com as alterações indicadas pelo juízo, reiterar o pedido de homologação, o qual seria então negado. Contudo, materialmente a devolução é uma não homologação e pode ser diretamente recorrida por meio do RSE (art. 581, XXV), pois não há sentido em requerer que o termo seja reapresentado em termos idênticos para então ser negado” [9].
O argumento é, acima de tudo, lógico: se o juiz devolve a proposta de ANPP para que ela seja reformulada, materialmente está recusando a sua homologação. Nos limites da discricionaridade regrada titularizada pelo Ministério Público, é factível que o órgão, se de acordo a defesa, insista e reapresente a mesma proposta; afinal de contas, se ela foi objeto de uma primeira submissão, é porque, no âmbito da dita discricionariedade negocial das partes, se chegou à conclusão de que as condição não são abusivas, são suficientes e são adequadas.
Impedir que a parte maneje recurso em sentido estrito contra a decisão que, nos termos do § 5º do artigo 28-A, determine a reformulação e, implícita a materialmente, recuse a homologação dos termos da proposta a que confluíram as partes teoricamente após negociarem em condições de igualdade (outro ponto problemático), significa permitir que o Poder Judiciário invada um espaço negocial que não lhe diz respeito e, ao mesmo tempo, impedir que um provimento jurisdicional com evidente carga decisória se ressinta de mecanismo de impugnação recursal.
Já que a contemporaneidade tem insistido, sob o véu de uma suposta objetividade científica, em colocar o Direito a serviço da Economia, que ao menos se tenha a dignidade de lhe conferir coerência interna; ou então que se reconheça que se está diante de uma evidente contradição em seus próprios termos.
[1] FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes: la crisis de la democracia constitucional. Madrid: Minima Trotta, 2011, p. 24, tradução livre.
[2] TIMM, Luciano Benetti; CAON, Guilherme Maines. Análise Econômica do Direito e o Supremo Tribunal Federal. Jota, 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/analise-economica-do-direito-e-o-supremo-tribunal-federal-25092020. Acesso em: 13 mar. 2025.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos Declaratórios no Agravo Regimental nos Embargos de Divergência nos Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.267.734/PR. Agravo regimental em agravo regimental em embargos de divergência em embargos de declaração em agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. Matéria criminal. Pretendida aplicação retroativa da Lei nº 13.964/19. ANPP (acordo de não persecução penal). Inviabilidade. Sentença condenatória em grau de recurso quando da entrada em vigência da norma. Apelo extremo intempestivo. Caráter manifestamente protelatório do recurso. Possibilidade de baixa imediata dos autos independentemente da publicação da decisão. Entendimento consolidado na jurisprudência da Corte. Precedentes. Agravo não provido. Baixa imediata dos autos ao juízo de origem. 1. O magistério jurisprudencial da Suprema Corte registra que “o acordo de não persecução penal (ANPP) [se aplica] a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia” (HC nº 191.464/SC-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 26/11/20). 2. Verifica-se intenção de se procrastinar a prestação jurisdicional da Corte e, assim, se obstar a persecução penal. Hipótese absolutamente repelida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a qual consigna que a utilização de recurso manifestamente protelatório autoriza o imediato cumprimento da decisão proferida pela Suprema Corte, independentemente da publicação do acórdão (RE nº 839.163/DF-QO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 9/2/15). 3. Agravo regimental não provido. 4. Baixa imediata dos autos ao juízo de origem, independentemente da publicação do acórdão, tendo em vista o caráter manifestamente protelatório do recurso. Relator: Min. Luiz Fux, 13 de novembro de 2023.
[4] Idem, ibidem.
[5] “O CPP não utiliza exatamente a terminologia ‘recurso em sentido estrito’, que se tornou consagrada na doutrina. O art. 581 do CPP prevê um rol de hipóteses em que ‘caberá recurso, no sentido estrito (…)’. O recurso em sentido estrito se presta, normalmente, a atacar decisões interlocutórias. Grosso modo, o recurso em sentido estrito no CPP equivale ao agravo do processo civil. Todavia, há duas diferenças básicas: (i) só cabe nas hipóteses expressamente previstas em lei, e não contra toda e qualquer decisão interlocutória, como no agravo cível; e (ii) além de decisões interlocutórias, o recurso em sentido estrito também é cabível contra sentenças, e, até mesmo, contra decisões administrativas.” BADARÓ, Gustavo. Manual dos recursos penais. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 313. Para Aury Lopes Jr., o “recurso em sentido estrito está destinado a impugnar determinadas decisões interlocutórias proferidas ao longo do processo penal, sendo uma figura desconhecida no direito comparado especialmente no que tange à peculiar designação. […] Trata-se de uma forma de impugnação cujos casos de cabimento estão expressamente previstos em lei, podendo ser ordinários ou extraordinários, conforme a fundamentação legal apontada.” LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022, p. 1119.
[6] LOPES JR., Aury; PACZEK, Vitor. O plea bargaining no projeto “anticrime”: remédio ou veneno? In: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen (Org.). Plea bargaining. 1. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, p. 149-174, 2019, p. 151/155.
[7] BADARÓ, Gustavo. Manual dos recursos penais. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 325.
[8] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022, p. 1129-1130.
[9] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Acordo de não persecução penal. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 234.
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