O Direito Tributário protege a propriedade, não a liberdade
17 de março de 2025, 8h00
Será o tributo a expressão da liberdade, o que se encontra disseminado na doutrina, tendo como destaque no Brasil a obra de Ricardo Lobo Torres? Ele afirma em diversas partes de sua enciclopédica obra que o tributo libertou a humanidade da servidão, que se caracterizava pelo Estado Patrimonial, correspondente histórico do feudalismo e do absolutismo, em que o poder dos senhores feudais e dos monarcas sobre a vida das pessoas era completo. Afirma que, com o advento do Estado Fiscal, baseado na arrecadação dos tributos, a humanidade se libertou e passou a ter essas relações reguladas pelo Direito, delimitando o poder do monarca.
Para compreensão deste aspecto, é necessário dar um passo atrás e entender que a grande distinção histórica, da qual decorreu a criação da tributação, foi a modificação na estrutura da propriedade durante o período absolutista, e que, com as revoluções burguesas, se transformou em propriedade privada individual, e, após, com a revolução industrial, foi criada nova dinâmica econômica baseada não mais na conservação da propriedade, mas em sua circulação. Tudo isso impactou fortemente a forma pela qual foi feita a arrecadação para sustentação do Estado ao longo do tempo.
É necessário analisar a relação de causa e efeito, sendo a alteração do sistema de propriedade a causa, e a instituição do sistema de tributação seu efeito. O modelo de propriedade em cada fase histórica do Estado é que determina a arrecadação para sua sustentação, sendo que a tributação surge na passagem do Estado Absoluto (Estado Moderno) para o Estado Liberal, daí advindo o Estado de Direito.

Não se nega que a limitação do poder dos soberanos absolutos foi um passo importante para a civilização, e que a criação de mecanismos de contenção de seu poder de arrecadar foi muito relevante, se afigurando como essencial a concordância da assembleia dos súditos para vários dos poderes absolutos que os soberanos exerciam, como se vê na Magna Carta, de 1215, e nos documentos históricos dos direitos fundamentais que se lhe seguiram.
Nesse período se encontra o embrião do princípio da legalidade e, por conseguinte, do Estado de Direito. Posteriormente, o que era uma assembleia da nobreza passou a ser de representantes do povo, tendo sido instituídos mecanismos jurídicos mais completos e complexos para regular diversas matérias, concentradas na constituição, instituto criado pelos norte-americanos nos albores de sua independência, há pouco mais de dois séculos, e que se configurou como um marco no surgimento do Estado Liberal.
Considerando os documentos históricos dos direitos fundamentais, a afirmação da propriedade privada como um direito individual surge na Declaração de Direitos da Virgínia, ocorrida em 1776, em seu art. 6º. É obvio que existia propriedade privada individual antes dessa Declaração, como se pode ver nos debates teóricos acerca do tema, por exemplo, entre Locke e Rousseau. A novidade dessa Declaração foi sua afirmação por colonos que declaravam seu território independente da Inglaterra, isto é, contra o poder soberano da monarquia britânica.
Logo após, em 1789, os franceses proclamaram por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ser a propriedade um direito inviolável e sagrado. Observe-se que esta proclamação não se refere ao povo francês, mas a todos os homens. E nem decorre de uma declaração de independência contra o jugo de outra nação, como ocorreu com os norte-americanos, cuja afirmação foi fruto de um confronto com a nação colonizadora. Esta Declaração surge como uma afirmação de um direito de todos os homens, individualmente considerados.
A modificação no sistema arrecadatório para sustentação do Estado ocorreu nessa fase histórica, não pela criação do sistema tributário, que surgiu como um subproduto da modificação do sistema de propriedade, que passou a normativamente assegurar e proteger a propriedade privada individual. A dinâmica da circulação da propriedade foi intensificada durante a revolução industrial, influenciando, por conseguinte, a tributação das riquezas e da propriedade, modificando a sistemática da arrecadação.
O Estado protegido do poder
Essa trajetória histórica demonstra que uma das formas de resguardar a propriedade privada dos cidadãos foi a de estabelecer mecanismos limitados para a arrecadação aos cofres reais, que se tornaram cofres públicos, por meio de normas jurídicas que delimitassem esse poder e carreassem os recursos para o erário, para uso em prol da sociedade, e não do governante de plantão. Ao longo das revoluções burguesas e com o advento do constitucionalismo monárquico, até mesmo o Rei passou a ser obrigado a respeitar a Constituição de seu país e as leis que dela adviessem.
Para delimitação do poder do Estado sobre a propriedade privada é que, em decorrência, foram criados os mecanismos tributários, que se agregaram a outros institutos jurídicos para garantia do conjunto das liberdades consagradas e delimitadas pelas constituições, sendo uma delas a de usar, gozar e dispor de sua propriedade privada, podendo defendê-la contra todos.
Foi essa modificação no sistema de propriedade, e na delimitação dos poderes por parte das constituições, que se configurou efetivamente o Estado de Direito e, com isso, a separação da propriedade real absoluta, posteriormente transformada em propriedade pública, da propriedade privada, devendo os indivíduos contribuírem para o custeio dos serviços governamentais por meio da tributação, e não pela imposição forçada decorrente do poder absoluto dos monarcas. Posteriormente se chegou ao Estado Democrático de Direito, com o advento de outros institutos e direitos ao sistema.
Exatamente por isso que se deve ter cautela quando contemporaneamente se classifica as receitas públicas em originárias, decorrentes da exploração do patrimônio do Estado, e derivadas, como aquelas que decorrem do poder de império do Estado — esta afirmação requer como complemento que tal poder é exercido “de conformidade com o ordenamento jurídico existente”, e não por meio do vetusto conceito de “poder de império”, abandonado desde a queda do modelo de Estado Absoluto.
Nada obsta que se alinhe a tributação à defesa das liberdades, ao invés da defesa da propriedade privada, mas esta decorre de uma conclusão inafastável à luz do direito posto, uma vez que os direitos fundamentais são dos contribuintes, e visam defender seu patrimônio, isto é, sua propriedade privada.
É óbvio que no sistema vigente nos países ocidentais, a defesa da propriedade privada se insere como uma defesa das liberdades, mas são dois passos distintos, pois uma coisa é defender a propriedade privada, e outra coisa é considerar que ser livre é ter o direito de poder ser proprietário de algo, e dele usar, gozar e dispor.
Não é apenas a propriedade privada que faz o homem ser livre. O tributo delimita o espaço entre o reconhecimento da propriedade privada e a receita pública, que é a arrecadação do Estado. Essa delimitação decorre do Estado democrático de Direito, sendo o tributo um elemento de todo esse conjunto. Ser livre decorre de outros fatores, estudados por Amartya Sen, dentre outros, e passa pela análise de diversas disciplinas que envolvem liberdade e igualdade. O tributo, como instrumento de contenção do poder estatal em face dos governos, é um dos múltiplos institutos fundamentais para o exercício dessa liberdade, como contenção do poder governamental sobre a propriedade privada dos indivíduos.
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