Opinião

Ainda o debate sobre a diferença entre benfeitorias e acessões: breve contributo

Autor

  • é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Membro da RDCC (Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo). Associado ao IDiP (Instituto de Direito Privado). Advogado em São Paulo no Junqueira Gomide Advogados.

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17 de março de 2025, 12h13

O debate da diferença entre benfeitorias e acessões não é novo [1]. Autores do século 20 controvertiam sobre os limites categoriais de ambos os institutos, chegando a afirmar que “as bemfeitorias são acessões industriaes da coisa ou despesas feitas com ella” [2]. Esse aceso debate chegou ao século 21 ileso, no qual notáveis professores vêm escrevendo recentemente a respeito [3], sempre fundamentados na jurisprudência [4].

Em resumo, a doutrina e jurisprudência majoritárias buscam diferenciar benfeitorias e acessões as entendendo como categorias próximas, argumentando comumente: “benfeitorias visam à conservação ou valorização da coisa ou ao seu maior recreio, ao passo que as acessões alteram a substância do objeto, modificam a sua anterior aplicação” [5], ou outros argumentos similares [6].

Esse problema, da distinção entre os institutos, no entanto, aparentemente parece ter ignorado a leitura sistemática do Código Civil do que seria uma benfeitoria e do que seria uma acessão, deixando de interpretar os dispositivos da parte geral juntamente com os dispositivos da parte especial. Nessa conjectura, o Código Civil trata das benfeitorias na parte geral, no artigo 96 [7], e sobre acessão [8] no artigo 1.248 [9].

As benfeitorias são bens diversos daquele a que se incorporam, sendo bens reciprocamente considerados aos “principais” [10] (por isso seu conceito está nessa parte do Código Civil). Com efeito, benfeitorias são espécie de despesas empregadas em outro bem [11]. Há, portanto, dois bens: aquele a quem a benfeitoria se incorpora e a própria benfeitoria.

A benfeitoria, nesse sentido, ao acoplar-se a outro bem, pode se tornar parte integrante essencial ou não essencial [12], nos termos do artigo 93 do Código Civil [13]. Podendo ser, a depender da benfeitoria, necessária, útil ou voluptuária, nos termos do artigo 96 do Código.

A benfeitoria, nessa linha, caso se torne parte integrante essencial, torna-se propriedade do titular do bem principal, por meio do fenômeno jurídico da acessão, a qual é forma de aquisição originária de propriedade. Sendo mais preciso: “dar-se-á a acessão quando a coisa incorporada se tornar parte integrante essencial da coisa principal” [14].

Com efeito, haverá hipóteses em que a benfeitoria se tornará, pela acessão, parte integrante essencial, e o dono da coisa principal se torna proprietário da benfeitoria, e, em outras hipóteses a benfeitoria será parte integrante não essencial, podendo ser levantada (ius tollendi) e não sofrendo o fenômeno da acessão, como nos casos de alguns tipos de benfeitorias úteis ou voluptuárias [15].

Exemplificando: a tubulação de água pluvial, bem móvel, ao ser inserida na parede do imóvel, o bem principal imóvel, torna-se parte integrante essencial — pois: “uma coisa é parte integrante essencial de outra, se sua separação importar em destruição ou grande diminuição do valor dela ou das outras partes a compor a unidade” [16] —, por meio da acessão, em que o proprietário do bem principal se torna proprietário dos canos.

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Por sua vez, o lustre, bem móvel, ao ser pendurado no teto, bem principal imóvel, torna-se parte integrante não essencial, — pois: “pode ser separada, sem destruição ou perda substancial de valor. Assim, a moldura é parte integrante do quadro, mas, em regra, pode ser dele separada, sem que um ou outro sofra destruição” [17] —, e o proprietário do bem principal não adquire o lustre. Em ambos os casos há benfeitorias (bens móveis) e apenas em um deles se opera a acessão.

Nessa linha, pode-se notar que não há similitudes nas categorias jurídicas das benfeitorias e das acessões para as considerar próximas. Suas naturezas jurídicas são bastante distantes, já que a benfeitoria é espécie de despesa a ser empregada em dado bem e a acessão é forma de aquisição da propriedade pela qual, inclusive, a benfeitoria pode se tornar parte integrante essencial e ser adquirida pelo proprietário da coisa principal.

Caso concreto

Essa construção dogmática não é unicamente doutrinária [18], mas também encontra espaço no Poder Judiciário. Exemplificativamente, o TJ-SP, através da 6ª Câmara de Direito Privado em Acórdão de lavra do desembargador Enéas Costa Garcia proferida nos autos de nº 1000624-16.2018.8.26.0450 [19], afirmou que: “a doutrina, ao tratar das pertenças, apresenta a distinção de parte integrante, dividida em parte integrante essencial e não-essencial, e pertenças. A parte integrante essencial é aquela que integra a coisa composta e que não pode ser separada sem acarretar modificação da essência da coisa”.

A qualificação, no caso concreto, serviu para delimitar o direito dos adquirentes de exigir a entrega do bem imóvel com os bens mencionados, concluindo o acórdão que: “constatado que os bens são de natureza acessória e não partes integrantes do imóvel, assistindo ao possuidor o direito de retirá-los, não há responsabilidade civil a ser reconhecida”.

O debate, parece, situa-se em outro polo: o da diferença entre benfeitorias e construções ou plantações, todos aptos a compor o suporte fático a incidir a regra da acessão e se tornarem parte integrante essencial, oportunidade na qual o proprietário do bem principal se tornará proprietário da benfeitoria ou da construção ou da plantação. Nessa toada, menciona-se Gustavo Haical, o qual didaticamente esclareceu os conceitos:

“Primeiro, construções e plantações não são sinônimos de acessão, mas modos que, ao serem preenchidos certos requisitos, geram a acessão. Segundo, benfeitoria e acessão não são figuras jurídicas que se contrapõem. Há possibilidade de benfeitoria gerar acessão, assim como uma construção ou plantação podem não gerar acessão. Terceiro, uma construção ou uma plantação pode ser qualificada ou não como benfeitoria” [20].

Concluo que a proposta reside na integração de uma hermenêutica sistemática dos dispositivos do Código Civil, capaz de delinear com precisão as nuances que separam benfeitorias de acessões. Ao demonstrar que apenas as benfeitorias que se incorporam de forma essencial ao bem principal desencadeiam o fenômeno da acessão — enquanto aquelas que não atingem esse patamar mantêm sua autonomia, permitindo o exercício do ius tollendi — a abordagem propõe um referencial interpretativo que transcende a equiparação tradicional. Dessa forma, ressalta-se a importância de uma hermenêutica sistemática para orientar soluções jurídicas mais justas e eficazes na resolução de conflitos patrimoniais.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] “Merece especial destaque o problema da distinção entre a noção de benfeitorias e a de acessão.” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, v. VI, p. 503).

[2] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1940, v. 1, p. 295.

[3] É imprescindível a menção a dois brilhantes professores e amigos: CARNAÚBA, Daniel Amaral. Faz sentido manter distinção entre benfeitorias e acessões? Consultor Jurídico, São Paulo, 12 ago. 2024, Coluna Direito Civil atual. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-12/faz-sentido-manter-a-distincao-entre-benfeitorias-e-acessoes-compreendendo-o-problema-a-partir-da-jurisprudencia/. Acesso em 18 jan. 2025; TRAUTWEIN, José Roberto. #136. Locações: benfeitorias vs. acessões. AGIRE | Direito Privado em Ação, 18 nov. 2024. Disponível em: https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire136?r=yyjhd&utm_campaign=post&utm_medium=web&triedRedirect=true. Acesso em 18 jan. 2025. O primeiro defende a superação da diferença, elogiando o posicionamento da jurisprudência do STJ ao proceder na assimilação entre benfeitorias e acessões. O segundo, por sua vez, analisa a jurisprudência histórica do STJ e sustenta que mantém-se o afastamento da equiparação entre benfeitorias e acessões. Notável menção também se faz a João Carlos Mettlach Pinter, o qual conclui seu raciocínio: “é de que se deve distinguir claramente o regime ressarcitório do atributivo da acessão, de modo a abandonar a distinção entre o regime ressarcitório das benfeitorias e das acessões nos casos de posse não-própria, limitando a aplicação do último aos casos de posse própria em que inexista destinação econômica do bem.” (PINTER, João Carlos Mettlach. Benfeitorias e acessões nas relações contratuais: o REsp 1.931.087. Consultor Jurídico, São Paulo, 6 abril. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-06/benfeitorias-e-acessoes-nas-relacoes-contratuais-breves-reflexoes-sobre-o-resp-1-931-087/. Acesso em 27 jan. 2025).

[4] Exemplificativamente, a Súmula 619 do Superior Tribunal de Justiça: “A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”. Ainda, cf. REsp 1.931.087/SP.

[5] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil: Introdução, Parte Geral e Teoria dos Negócios Jurídicos. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, v. I, p. 396.

[6] “Acessão é o aumento do volume ou do valor da coisa principal, em virtude de um elemento externo. Quando uma coisa se une ou se incorpora a outra, aumentando-lhe o volume, temos a acessão. Temo-la, também, quando o homem faz na coisa qualquer benfeitoria que, sem aumentar o volume daquela, aumenta-lhe o valor, como por exemplo, quando se sanea uma área, pela eliminação de seus charcos e várzeas. Tais benfeitorias não aumentam o volume da coisa; mas, como lhe aumentam o valor, são consideradas acessão” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das Coisas. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1968, v. V, p. 115-116).

[7] “Art. 96. As benfeitorias podem ser voluptuárias, úteis ou necessárias. § 1º São voluptuárias as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor. § 2º São úteis as que aumentam ou facilitam o uso do bem. § 3º São necessárias as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore.”.

[8] O título da Seção IIII, do capítulo II do Título III, do livro III, do Código Civil, é elucidativo sobre sua natureza jurídica: “Da Aquisição por Acessão”.

[9] “Art. 1.248. A acessão pode dar-se: I – por formação de ilhas; II – por aluvião; III – por avulsão; IV – por abandono de álveo; V – por plantações ou construções.”.

[10] A menção a bem “principal” no presente texto é meramente didática, pois o conceito de bem principal e acessório não é dogmaticamente preciso à ciência jurídica para bens, como sustenta Pontes de Miranda: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, t. II, § 138, p. 72.

[11] “As despesas ou são necessárias, ou úteis, ou voluptuárias. Se aplicadas a coisas, dizem-se benfeitorias.” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t. XXII, § 2.731, p. 239).

[12] HAICAL, Gustavo. O ius tollendi no Código Civil: primeiras linhas. In: BENETTI, Giovana; CORRÊA, André Rodrigues; FERNANDES, Márcia Santana; NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro; PARGENDLER, Mariana; VARELA, Laura Beck. (Org.). Direito, cultura, método: leituras da obra de Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2019, p. 532-533. Como sustenta Eduardo Ribeiro de Oliveira, o conceito de parte integrante deve ser buscado em doutrina, com subsídios do direito comparado, pois o Código Civil não as conceituou, tampouco forneceu o regime jurídico (OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. II, p. 98).

[13] “Art. 93. São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro.”.

[14] HAICAL, Gustavo. O ius tollendi no Código Civil: primeiras linhas…, cit, p. 539. Ainda: “Acessão é o modo de aquisição originário da propriedade imobiliária que ocorre pela incorporação de uma coisa móvel à coisa principal imóvel ou móvel, transformando-se a primeira em parte integrante essencial da coisa principal” (HAICAL, Gustavo. O ius tollendi no Código Civil: primeiras linhas…, cit., p. 540).

[15] HAICAL, Gustavo. O ius tollendi no Código Civil: primeiras linhas…, cit., p. 541.

[16] HAICAL, Gustavo. O ius tollendi no Código Civil: primeiras linhas…, cit., p. 524.

[17] OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro de. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. II, p. 100.

[18] A categoria de partes integrantes também está presente em legislações estrangeiras, tais como o Código Civil português, no art. 204, 1, “e” e 3, e nos §§ 93, 94, 95 do BGB. Sobre o tema, a propósito, António Menezes Cordeiro traz interessante caso julgado pela jurisprudência portuguesa: “Paradigmático é o caso decidido em STJ 23-Nov.-1976. Em 21-Mar.-1968, o dono dum prédio vendeu verbalmente a um terceiro um valioso painel de azulejos nele incporadoros: por 24c., pagos na altura. Os azulejos não foram retirados do local. Em 10-Mai.-1969, o mesmo dono vende o prédio, na sua totalidade, por escritura pública: recebe 160 c.. Ambos os compradores querem os azulejos. Entendeu o Supremo que o painel era uma parte integrante e logo móvel: artigo 204.º/1, e). Nos termos do artigo 408.º/2, o comprador dos azulejos só adquiriria a sua propriedade com a separação, a qual não ocorreu. Logo, o painel pertence ao segundo comprador; o negócio celebrado com o primeiro tinha eficácia meramente obrigacional” (MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil português. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2009, v. I, t. II, p. 135).

[19] TJSP; Apelação Cível 1000624-16.2018.8.26.0450; Relator (a): Enéas Costa Garcia; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracaia – 1ª Vara; Data do Julgamento: 08/06/2021; Data de Registro: 08/06/2021.

[20] HAICAL, Gustavo. O ius tollendi no Código Civil: primeiras linhas…, cit., p. 531.

Autores

  • é mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), membro da RDCC (Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo), associado ao IDiP (Instituto de Direito Privado) e à Comissão de Novos Advogados (CNA) do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e advogado em São Paulo no Junqueira Gomide Advogados.

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