Povos originários e compensação pelo uso de potenciais hidrelétricos
16 de março de 2025, 6h44
O ministro Flavio Dino, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar nos autos da Medida Cautelar no Mandado de Injunção 7.490 DF impetrado pela Associação Yudja Miratu da Volta Grande do Xingu e outras seis associações indígenas. Em resumo, as associações pleiteavam o reconhecimento do direito de receber uma participação, à título de compensação, relativa aos resultados financeiros da geração de energia pela Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHBE). O direito, conforme sustentado pelas impetrantes, encontra amparo no § 1º do artigo 176 [1] combinado com o § 3º do artigo 231 [2] da Constituição.

A liminar concedida foi ampla e partiu do pressuposto de que “o contexto autoriza a concessão de liminar para disciplinar as condições específicas do artigo 176, § 1º, CF e o modo de participação dos indígenas nos resultados da exploração dos potenciais energéticos pelo empreendimento hidrelétrico de Belo Monte”. E acrescentou que “observo que a legislação atualmente vigente regulou a compensação financeira pela utilização de recursos hídricos e a compensação financeira pela exploração mineral tendo como destinatários entes públicos.” E mais: “[r]elativamente aos recursos hídricos, não há previsão semelhante sobre a repartição dos resultados do aproveitamento com ‘proprietários’, na medida em que a perenidade e navegabilidade são condições essenciais para que a água seja considerada bem público, de acordo com o Código de Águas”. A partir de tal raciocínio, a liminar concedida pelo ministro Flávio Dino determina que:
“a) Visto que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, em regime de posse permanente e usufruto exclusivo, são de propriedade da União, 100% do valor repassado à União, na forma do artigo 17, § 1º, I da Lei nº 9648/20, a título de Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos (CFURH) deve ser repassado aos indígenas, como participação nos resultados do empreendimento;”
O Mandado de Injunção, certamente, jogou luz no fato de que a Constituição, apesar de seu espírito muito favorável aos direitos dos povos indígenas, não especificou nada em relação à participação nos resultados das atividades de geração elétrica, limitando-se a dispor sobre a participação nos resultados da lavra (atividade de mineração). A “falha” constitucional já havia sido percebida por diversas inciativas sobre a matéria, como se passa a demonstrar.
O PL 2.057/1991 (Estatuto das Sociedades Indígenas) [3] em seu artigo 61 dispõe que:
“Art. 61 – O aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas deverá ser precedido de autorização do Congresso Nacional, observadas as mesmas condições e procedimentos estabelecidos para a mineração em terras indígenas, especialmente no tocante à elaboração de laudo antropológico e relatório de impacto ambiental, ao processo licitatório, à audiência in loco à comunidade afetada e sua subordinação a contrato escrito entre a empresa e a comunidade indígena.”
O PL 2.057/1991 foi arquivado pela Mesa Diretora em 01/01/2023, tendo “tramitado” por incríveis 32 anos! Aqui se pode constatar que é antiga a “má vontade” do Congresso Nacional com os temas indígenas.
A Comissão Nacional de Política Indigenista do Ministério da Justiça, em 2009, elaborou o Estatuto dos Povos Indígenas (EPI) o qual dispõe de um capítulo próprio sobre a exploração de recursos hídricos em terras indígenas. O § 1º do artigo 144 do EPI estipulava que a “compensação financeira (…) será de no mínimo 10% sobre o valor da energia elétrica produzida, enquanto durar o impacto do empreendimento, definida conforme procedimento estabelecido pela agência reguladora do setor elétrico”. O Estatuto dos Povos Indígenas não foi à frente.
O PLS 169/2016 [4], em seu artigo 105 dispunha que o “aproveitamento de recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, em terras indígenas deverá ser precedido de autorização do Congresso Nacional, observadas as mesmas condições e o procedimento estabelecidos para a mineração em terras indígenas, por meio dos órgãos federais competentes, especialmente no tocante à elaboração de laudo antropológico e de estudos ambientais, ao processo licitatório e sua subordinação a contrato escrito entre a empresa interessada, pública ou privada, e a comunidade indígena”. Relativamente à compensação financeira, o parágrafo único do artigo 105 determinava aplicação dos critérios dos artigos 87 e 99 [5]. O PLS foi arquivado aos 22/12/2022.
As Leis 6.001/1973 e 14.701/2023 nada dispõe sobre a matéria.

A medida liminar ao se utilizar da integração analógica para assegurar o direito à percepção de uma compensação financeira pelas comunidades indígenas, está perfeitamente adequada à evolução “legislativa” da matéria que sempre trataram ambas as hipóteses igualmente. O que se pode observar é que os diferentes anteprojetos e projetos de lei, equiparam a utilização dos potenciais hidrelétricos à mineração para diversas finalidades, inclusive a distribuição da participação nos resultados das atividades. Não cabe, neste local, a discussão sobre os percentuais constantes das iniciativas indicadas, mas a constatação de que o tema não evoluiu, provavelmente em razão de visões distorcidas sobre os direitos dos povos indígenas e os seus papeis na sociedade brasileira.
Passo importante
É importante observar que a Constituição estabelece um regime de usufruto exclusivo e perpétuo sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas em favor dos povos originários [6]. O usufruto, como se sabe, é um direito real sobre coisa alheia que atribui ao usufrutuário o direito de usar as suas utilidades e os frutos delas decorrentes. Assim, há que se indagar sobre a constitucionalidade de atribuir à União ou a qualquer outra entidade pública ou privada, os valores da compensação financeira devida em função da exploração de potenciais hidrelétricos em terras indígenas ou com impacto direto sobre elas. Nesse sentido, a decisão de atribuir, cautelarmente, os valores às comunidades indígenas, tendo em vista o disposto no § 2º do artigo 231 da CF.
A criação de norma específica para regular a matéria é da maior relevância e urgência; todavia, o histórico do Congresso Nacional, em relação ao tema, é sofrível. O Poder Executivo, que hoje conta com um ministério específico para os assuntos indígenas (Ministério dos Povos Indígenas), ao que parece, não tem qualquer inciativa nesse sentido.
A atuação das associações indígenas perante o STF é um fator novo em toda a questão, pois permite que os próprios indígenas coloquem à discussão pública os temas que entendem prioritários, segundo os seus próprios critérios.
A decisão liminar do STF representa um passo significativo na garantia de direitos dos povos indígenas, ao reconhecer sua participação nos resultados da exploração de recursos hídricos. No entanto, a falta de uma legislação específica ainda gera incertezas quanto à segurança jurídica dessa decisão, afetando os indígenas e as empresas do setor elétrico. A elaboração de uma lei específica é essencial para consolidar esse direito, minimizando a dependência de medidas judiciais e garantindo que os povos indígenas tenham assegurada sua justa compensação.
O protagonismo das associações indígenas na defesa de seus interesses junto ao STF é um fator inovador e positivo, pois permite que suas demandas sejam discutidas com maior visibilidade e legitimidade. Resta agora ao Congresso Nacional e ao Poder Executivo tomarem medidas concretas para regulamentar definitivamente a matéria, garantindo segurança e justiça para as comunidades indígenas afetadas e estabilidade econômica para o setor elétrico.
[1] Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.
[2] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (…) § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
[3] Disponível em < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1685910&filename=PL%202057/1991 > acesso em 13/03/2025
[4] Disponível em < https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3385118&ts=1674177081086&disposition=inline > acesso em 13/03/2025
[5] Art. 99. Ficam assegurados às comunidades indígenas afetadas: I – pagamento pela ocupação e retenção da área objeto do contrato de concessão; II – participação nos resultados da lavra e dos subprodutos comercializáveis dos minérios extraídos; III – indenização pelos eventuais danos e prejuízos causados em razão da ocupação da terra para fins de servidão de pesquisa ou lavra. § 1º A participação da comunidade indígena fixada no edital, não poderá ser inferior a 3% (três por cento) do faturamento bruto resultante da comercialização do produto mineral obtido. § 2º Estende-se aos subprodutos comercializáveis do minério extraído a base de cálculo sobre a qual se define a participação da comunidade indígena no resultado da lavra.
[6] CF art. 231, § 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes
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