Judicialização e assistencialismo: da omissão na estruturação de políticas para inclusão de pessoas autistas
15 de março de 2025, 6h02
Nos últimos anos, o Brasil viu uma escalada sem precedentes no número de concessões do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas autistas. Entre 2022 e 2024, o total de beneficiários mais que dobrou, saltando de 133 mil para 274 mil, um crescimento que, longe de sinalizar avanços na inclusão, evidencia a falência de políticas públicas estruturadas. No caso das crianças autistas, a explosão foi ainda mais expressiva: de 22,1 mil para 44,5 mil no mesmo período.

A realidade é clara. Diante da ausência de políticas educacionais, empregabilidade e suporte contínuo ao longo da vida, as famílias não recorrem ao BPC porque há uma incapacidade intrínseca da pessoa autista, mas porque o sistema simplesmente não oferece alternativas viáveis para a construção de autonomia. O benefício assistencial, que deveria ser um suporte pontual, torna-se a única garantia de subsistência para milhares de brasileiros que enfrentam um Estado que promete inclusão, mas entrega abandono.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), internalizada pelo Decreto nº 6.949/2009, e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI — Lei nº 13.146/2015) estabelecem diretrizes inequívocas: acesso à educação (artigo 24 da CDPD e artigos 27 a 30 da LBI), trabalho (artigo 27 da CDPD e artigo 34 da LBI) e participação social sem discriminação (artigo 29 da CDPD e artigo 5º da LBI). No entanto, essas normativas esbarram na inércia governamental. As universidades não oferecem suporte adequado para que estudantes autistas permaneçam no ambiente acadêmico, levando à evasão. O mercado de trabalho, por sua vez, carece de políticas que incentivem a inclusão e garantam o mínimo de acessibilidade para esses profissionais. O resultado é um contingente crescente de cidadãos que, sem suporte, veem no BPC a única possibilidade de sobrevivência.
O custo dessa concessão descontrolada para os cofres públicos já começa a chamar atenção do governo. O ministro Fernando Haddad já prometeu um pente-fino nos cadastros para identificar fraudes. No entanto, a resposta está, mais uma vez, mal calibrada. O problema não é apenas a expansão do benefício, mas a falha estrutural que leva as famílias a dependerem dele. O modelo perpetua um ciclo de dependência que penaliza tanto os beneficiários quanto o Estado. Sem políticas de apoio reais, a exclusão social e econômica se aprofunda, e o custo fiscal continua subindo sem que haja qualquer contrapartida estruturante.
Concessão de benefício judicializado
A judicialização do BPC, por sua vez, revela a insegurança jurídica gerada pela falta de diretrizes claras sobre a concessão do benefício para pessoas autistas. Em fevereiro de 2025, a Turma Nacional de Uniformização (TNU) iniciou a análise do processo 5006875-14.2022.4.04.7005, envolvendo um beneficiário autista cujo pedido havia sido negado pelo INSS. O ponto central do caso é a divergência interpretativa entre diferentes tribunais sobre se a condição de autista, por si só, garante o direito ao benefício assistencial ou se há necessidade de avaliação biopsicossocial para comprovar impedimentos de longo prazo.
Enquanto a 1ª Turma Recursal do Acre reconheceu que o diagnóstico de transtorno do espectro autista basta para qualificar o requerente como pessoa com deficiência para todos os fins legais, a 2ª Turma Recursal do Paraná[1] negou o benefício sob a justificativa de que a perícia médica não constatou impedimento funcional duradouro. Essa falta de uniformidade jurídica levou à afetação do tema como representativo de controvérsia, escancarando a ausência de um critério unificado e consolidado para a concessão do BPC a pessoas autistas. Essa falta de uniformidade jurídica levou à afetação do tema como representativo de controvérsia, escancarando a ausência de um critério unificado e consolidado para a concessão do BPC a pessoas autistas.
Embora o governo não tenha proposto diretamente a ação, seu interesse na contenção dos benefícios é evidente. O INSS, ao recorrer sistematicamente contra concessões do BPC, busca endurecer critérios sem apresentar qualquer solução alternativa para a inclusão social e econômica da população autista. Dessa forma, o Judiciário se transforma no epicentro de um embate que deveria ser resolvido por meio de políticas públicas eficazes e bem planejadas. A falta de clareza sobre a necessidade de avaliação biopsicossocial e a insegurança sobre os critérios para concessão do benefício reforçam a urgência de um modelo mais estruturado e intersetorial, que assegure suporte real à população autista sem depender exclusivamente do assistencialismo.
Leniência da Justiça do Trabalho
Além das deficiências estruturais, a leniência da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho (MPT) no cumprimento da Lei de Cotas (Lei nº 8.213/1991) para pessoas com deficiência agrava o problema da inclusão laboral. Um estudo de 2019 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que, em São Paulo, apenas 28% das empresas cumprem a legislação, que exige a contratação de pessoas com deficiência em percentuais proporcionais ao número de funcionários.

O descumprimento sistemático da norma, somado à fiscalização ineficaz e à baixa aplicação de penalidades, impede que milhares de pessoas autistas e com deficiência tenham acesso ao mercado de trabalho, perpetuando a dependência do BPC como única alternativa de subsistência. Esse quadro demonstra que, sem uma mudança radical na postura das instituições responsáveis pela fiscalização, o Brasil continuará lidando com políticas de inclusão apenas no papel, enquanto a realidade segue marcada pela exclusão e pela falta de oportunidades reais.
Terceirização ao Conacessi
A Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu-MEC), comandada por Alexandre Brasil, também tem sua parcela de responsabilidade no cenário atual. Em vez de liderar diretamente a formulação de políticas públicas para a inclusão de estudantes com deficiência no ensino superior, optou por terceirizar essa tarefa ao Colégio Nacional de Acessibilidade das Instituições Federais de Ensino Superior (Conacessi), coordenado pela professora Arlete Gonçalvez.
Na prática, o Conacessi opera sem transparência, sem mecanismos claros de participação da sociedade civil e sem garantir que as próprias pessoas com deficiência tenham voz ativa na construção das políticas que afetam suas vidas acadêmicas. O resultado é um conjunto de decisões tomadas à margem do debate público, ignorando a diversidade de necessidades e impondo diretrizes sem ampla consulta.
Essa modalidade de formulação de políticas conduzida pelo Conacessi, além de inconstitucional por violar o princípio da gestão democrática do ensino público (artigo 206, inciso VI, da Constituição), também fere gravemente o artigo 4º, inciso 3, do Decreto nº 6.949/2009, que assegura o direito das pessoas com deficiência a participarem ativamente da formulação e implementação de políticas públicas que lhes dizem respeito. A exclusão sistemática dessa população nesse processo vai de encontro ao princípio do “Nada Sobre Nós Sem Nós”, esvaziando a legitimidade e a efetividade das políticas educacionais inclusivas.
Debate sobre necessidades da população autista
Nesse contexto, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), sob a gestão da ministra Macaé Evaristo, informou que iria reagir. Em setembro de 2024, anunciou a criação de uma Câmara Técnica sobre Políticas Públicas e Deficiências Psicossociais e prometeu a realização de uma audiência pública para discutir as necessidades da população autista. O gesto soou como um avanço, mas, até março de 2025, nenhuma dessas iniciativas saiu do papel. A câmara técnica jamais foi instalada, e a audiência pública nunca ocorreu. O resultado? Mais uma demonstração da incapacidade governamental de transformar discurso em ação.
A inércia do MDHC escancara uma contradição: enquanto o governo reconhece a urgência de políticas intersetoriais para a população autista, na prática, a burocracia e a falta de vontade política barram qualquer avanço concreto. Sem coordenação eficaz entre os ministérios e sem implementação das medidas anunciadas, as famílias continuam desamparadas, sendo forçadas a recorrer ao BPC e à judicialização para garantir direitos básicos.
Diante desse cenário de omissão e fragmentação das políticas públicas, um modelo bem-sucedido e já testado no Brasil poderia servir de referência para a inclusão de pessoas com deficiência: o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016). Essa legislação estabeleceu um arcabouço normativo robusto e articulado entre diferentes esferas do governo, garantindo direitos fundamentais às crianças na primeira infância por meio de uma abordagem integrada que une educação, saúde, assistência social e justiça.
O êxito desse modelo se deve à sua capacidade de vincular ações governamentais em múltiplos setores, garantindo financiamento contínuo, monitoramento e implementação efetiva. Assim como a primeira infância requer um olhar multidimensional, a inclusão de pessoas com deficiência exige um modelo coordenado, que transcenda ações isoladas e ofereça respostas sistêmicas às necessidades dessa população.
Adaptar esse modelo para a política de inclusão de autistas e outras pessoas com deficiência permitiria um avanço significativo na efetividade dos programas governamentais. Ao invés de perpetuar a dependência assistencialista e fomentar a judicialização, a criação de um Marco Nacional da Inclusão das Pessoas com Deficiência, inspirado na estrutura do Marco Legal da Primeira Infância, poderia estabelecer um sistema de suporte contínuo e sustentável, garantindo autonomia e participação social plena.
Incapacidade do governo
Enquanto o governo se mostra incapaz de estruturar políticas públicas de inclusão eficazes, o que não faltam são projetos de lei populistas tramitando no Congresso Nacional. Deputados que pouco entendem da realidade das pessoas autistas se aproveitam da falta de um direcionamento governamental e inundam o legislativo com propostas que, embora vendidas como solução, reforçam um coitadismo sistêmico e não trazem qualquer perspectiva de emancipação real.
Em vez de promover mudanças estruturais, essas propostas apostam no assistencialismo desmedido e na simplificação de um problema complexo, sem considerar o impacto a longo prazo. O vácuo deixado pelo governo na condução dessa pauta permite que o debate seja capturado por medidas ineficazes, descoladas das reais necessidades da população autista e distantes da construção de um caminho sustentável para a inclusão efetiva.
[1] Vale destacar que a perícia médica do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR) aplicou, em pleno 2025, uma visão reducionista e ultrapassada sobre o autismo, como se décadas de estudos simplesmente não existissem, pois entre os critérios utilizados para negar o benefício a uma criança autista, um chamou atenção pela crueza do desconhecimento técnico: o fato de que a criança “mantém contato visual e conversa com a mãe”. Fica a dúvida: a equipe de peritos se baseou no conhecimento adquirido assistindo ao seriado Uma Advogada Extraordinária ou ao seriado The Good Doctor para chegar a conclusão que chegou?
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