Tema 1.260/STJ e o testemunho policial como indevida transformação do indício inquisitório em prova do contraditório
14 de março de 2025, 6h00
O Superior Tribunal de Justiça iniciou anteontem (12/3) o debate do Tema 1.260 [1], no qual o ministro Reynaldo Soares da Fonseca propôs a seguinte tese:
1 – A sentença de pronúncia não pode ser fundamentada exclusivamente em elementos colhidos durante um inquérito policial que não tenham sido confirmados em juízo.
2 – Testemunho indireto, ainda que colhido em juízo, não constitui, isoladamente, meio de prova idôneo para fundamentar a pronúncia.
O ministro Rogerio Schietti pediu vista no feito.
Efetivamente, julgados reiterados têm vedado admitir justa causa para o plenário do júri apenas por indícios inquisitórios e a confirmação por “ouvir dizer” não permitiria suficientemente elevar o patamar de confiabilidade na definição de autoria em homicídios — como mera repetição de provas e falas…
Ponto adicional precisa ser repensado nesse debate: em regra, é o testemunho de policiais que vem a ser utilizado como prova “de ouvir dizer” para confirmação dos indícios inquisitórios – policiais relembrando ou até concluindo sobre provas investigatórias.
O relembrar em juízo daquilo que produzido no inquérito tende a ser valorado como prova, como elemento demonstrador do fato criminoso obtido no contraditório da ação penal. E isto é problema.
É a preocupação de que a vedação à condenação pelo inquérito, ou de pronúncia por esses indícios inquisitórios, não sejam minoradas por seu simples rememorar (muitas vezes opinativo) em juízo.
1. Inquérito policial como sede da justa causa e não prova de culpa criminal
A persecução penal brasileira funda-se em investigação por órgão especializado e distinto daqueles responsáveis pela ação criminal — a polícia judiciária. Investiga, indicia, colhe elementos e cumpre ordens ministeriais ou judiciais; reúne convicção de seriedade acusatória, jamais certeza qualquer de fatos ou autoria.
O inquérito policial (conduzido pela autoridade policial) ou procedimento investigatório criminal (conduzido pelo representante ministerial), por natureza possuem caráter meramente instrumental, administrativo, sumário, secreto, não contraditório e sem exercício pleno da defesa.
Como expressão dos princípios do contraditório e da ampla defesa, exige-se que apenas a prova produzida judicialmente seja sustentáculo para a pronúncia penal ou mesmo para a sentença condenatória. É expressão da garantia de impedimento de resultados com maior grau de relevo na afetação do cidadão — condenação e pronúncia — com base em indícios colhidos sem as garantias do contraditório processual.
Sentença condenatória ou pronúncia penal fundadas essencialmente em atos de investigação, seja para o reconhecimento da prática do crime e sua autoria, seja para o reconhecimento de circunstância qualificadora, representam violação aos postulados constitucionais do princípio do devido processo legal e da presunção de inocência (artigo 5, LIV e LVII [2], CF), desrespeitam a normas legais expressas (artigo 155 e artigo 413, CPP) e materializam ofensa ao contraditório necessário à persecução criminal.
2. Testemunho de policiais – validade e limites
Prova “significa convencer ao juiz sobre a certeza da existência de um fato” (ROXIN, 1998, p. 186). E, tecnicamente, prova testemunhal é aquela produzida perante o magistrado, com o devido contraditório.
Não podem gerar convicção depoimentos do inquérito — e alguém relembrá-los em juízo não os transformarão em prova judicial.
Note-se, ademais, que como por lei a testemunha fala do fato ou suas circunstâncias, sobre o que deles viu ou ouviu, a princípio sem opiniões (artigo 213 do CPP [3]), impede-se considerar como testemunha quem narra a própria investigação criminal ou — pior — diz o que pensa terem revelado as investigações ou a relevância dessas provas.
Deste modo é que os policiais que em instrução criminal tratam do que viram nas investigações que participaram (não raras vezes até narram e concluem sobre fase investigatória que sequer participaram) em verdade não podem ser considerados testemunhas de qualquer aspecto relacionado ao crime. São testemunhas do inquérito, da ação policial, mas não do crime.
Tem a jurisprudência admitido o depoimento de policiais, como reprodutores do que teriam ouvido na fase extrajudicial, ou seja, como testemunhos de ouvir dizer (hearsay testimony), mediante confirmação. Mesmo então o tratamento é de valor probatório menor, insuficiente para isoladamente gerar a condenação ou pronúncia [4].
Em precedente, o ministro Ribeiro Dantas guia sua argumentação asseverando que o testemunho indireto não é válido para demonstra a ocorrência de nenhum elemento do crime. Por isso, se a sentença condenatória se fundamentar apenas no depoimento indireto para formar seu convencimento sobre algum componente do delito — autoria, materialidade, afastamento de causas excludentes de ilicitude etc —, haverá nulidade, impondo-se a absolvição do réu [5].
Realmente, mesmo quem repete o que ouviu possui menor credibilidade do que aquele que diretamente viu os fatos, pela menor interferência de valorações e sujeitos na percepção. O policial, porém, sequer narra o que ouviu desinteressadamente, narra o que presencia na função investigatória – por si já influenciada e daí incapaz de gerar a condenação; narra o que ouviu e viu sob ordens funcionais, sob o interesse de solução de autoria de um crime… Narra o que ouviu e, por maior cautela que possua, interessadamente…

O advogado Néfi Cordeiro
Não é inválida a oitiva dos policiais ou sujeitos auxiliares da investigação criminal. Assim como tampouco seria em princípio inválida a oitiva de promotores e advogados que nessa fase atuaram (seria curioso até o confronto de testemunhas da acusação e da defesa falando o que “acham” das investigações realizadas) — embora existam precedentes isto impedindo [6], pelo viés da incompatibilidade e da inutilidade.
Quem na fase policial atua não é testemunha do fato criminoso, possui testemunho útil apenas para relembrar o que já consta do inquérito policial (inclusive porque se mínima relevância possuía a informação, deveria nos autos estar formalizada). São depoimentos válidos para confirmar atos investigatórios — válidos, mas em regra sem utilidade de convencimento quanto ao crime.
3. Risco ao convencimento judicial
Se em princípio podem ser arroladas testemunhas que abordem circunstâncias mais distantes do crime, inclusive referindo antecedentes do acusado, sua vivência social e familiar, entre outros aspectos, nada impediria realmente serem os policiais ouvidos na instrução da ação penal.
A dificuldade surge quando esse testemunho passa a referir-se ao crime investigado, às conclusões de autoria, às opiniões do agente policial sobre a eventual organização criminosa. Deixa de relatar então, para transformar-se em opinador, especialista da prova – e isto indevidamente pode ser admitido ou, pior, levado em consideração no convencimento judicial.
Se já não poderiam pronúncia e condenação derivar do depoimento por ouvir dizer, admitir-se que derivem do que se convenceu o policial seria transformar a testemunha de atos do inquérito em testemunha do fato criminoso, seria admitir a transformação do indício do inquérito em prova apenas porque relembrada no contraditório judicial…
A jurisprudência já definiu a exigência de confirmação do ouvir dizer por outros meios probatórios, mas é preciso evoluir. O passo que será necessário caminhar nas oitivas de policiais é de considerar-se a prova no limite do que sabe o narrador: o acompanhamento interessado dos atos policiais, e não de seu conteúdo (já registrado no inquérito).
Não servem falas de policiais para o convencimento da justa causa na pronúncia, ou para a certeza na condenação, porque de fato nada viram do crime, porque repetem o que já no inquérito está (ou deveria estar) e porque não podem manifestar opiniões sobre sua atividade — sobre a qual não há neutralidade, mas natural interesse de justificação e validade.
Situação mais danosa ainda ocorre no Tribunal do Júri, onde as falas dos policiais em plenário tendem a uma admissão como verdade certa, suas opiniões relatando que investigaram todos os caminhos e que tiveram certeza da autoria do crime pelo acusado impressionam e — sem fundamentação nessa modalidade de julgamento — podem levar indevidamente à condenação.
Bastam indícios da fase policial serem retratados por policiais na oitiva ante os jurados, para que estes se convençam da culpa e nunca isto poderá se definir tendo sido decisivo. Daí porque crescem em número os julgamentos afastando a pronúncia com base em prova de ouvir dizer, com base em depoimentos de policiais — embora se costume afirmar da necessidade de confirmação por outras provas [7].
Talvez o problema não seja a confirmação necessária, mas a limitação necessária ao objeto da fala do policial: rememorar atos que constam do inquérito. Do crime e autoria, a fala do policial em princípio nada poderá esclarecer.
4. Conclusão
A função do inquérito policial é de justificação da instauração de ação penal; uma garantia contra a acusação sem provas — jamais como fonte da prova de certeza condenatória.
Embora não seja vedada a oitiva de policiais, porque como servidores públicos podem relatar atos relacionados a suas funções e atividades, este limite precisa restar claro nas perguntas e na valoração de seus depoimentos. Não podem policiais falar do crime ou sua autoria, porque dele não conhecem mais do que qualquer outro operador do processo: o que leram ou ouviram é o mesmo que podem apreender o advogado, o promotor ou o juiz – não se tornam os policiais especialistas na verdade porque eventualmente presenciaram a coleta da prova inquisitória.
Podem os policiais rememorar atos da investigação que realizaram e assim foram inseridos nos autos (excepcionalmente tentando justificar até o que ocorreu e não foi inserido por falha no inquérito policial), mas não podem trazer conclusões sobre as provas colhidas em relação ao fato criminoso.
Na valoração dessa prova testemunhal de policiais precisa o magistrado sopesar a natural parcialidade do servidor público em validar suas ações (inclusive em hipótese submissíveis a enquadramento típico criminal e administrativo) e excluir eventuais respostas de fatos não diretamente expressados nos autos investigatórios, assim como conclusões pessoais sobre a prova inquisitória.
Não é ilícita a oitiva de policiais, mas inútil na valoração da prova do crime. Mais do que testemunhas de ouvir dizer, são os policiais testemunhas da fase persecutória e esse deve ser o limite de valoração dessa prova.
Na fase de plenário do júri ao juiz presidente compete impedir perguntas de conclusão dos policiais e constantemente fixar qual a diligência e folha onde se encontram o que rememora, pois até inconscientemente pode o policial tratar englobadamente da prova (definimos que com certeza era o culpado, que as provas mostraram ser pessoa violenta, ligada a organização criminosa…). Na deliberação dos quesitos, também se torna conveniente relembrar aos jurados os limites da fala policial como testemunha – jurados não conhecem o valor da prova e sua diferenciação para indícios inquisitórios, não sabem sequer dos limites da atuação do policial e sua valoração de culpa não é fundamentada.
Assim, no Tema 1.260/STJ, espera-se a aprovação das teses propostas pelo eminente ministro Reynaldo Soares da Fonseca, pois já definiu a jurisprudência da Corte Cidadã que não é admissível justa causa em autoria indicada apenas no inquérito policial ou por seu relembrar, mas chega o momento de pensar-se efetivamente na utilidade e desvirtuamento da oitiva policial para o fim de prova indireta do crime. Ouvir depoimentos em delegacia não é ouvir o crime…
Se vale a oitiva de policiais, imprescindível é observar seu limite de rememorar o que consta do inquérito, sem conclusões. E imprescindível é observar que a oitiva em juízo não transforma em prova os indícios investigatórios.
A valorosa ação policial e o orgulho nacional na boa persecução investigatória brasileira não podem erigir sua oitiva em conclusões probatórias ou prova do fato criminoso.
É aguardar o que sabiamente definirá a Corte Cidadã como garantia de justa causa probatória para a pronúncia, evitando o risco de submissão ao julgamento popular de quem sequer se define como provável autor de crime contra a vida.
[1] No REsp 2.048.687
[2] CF – Art. 5º – LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
[3] CPP, Art. 213. O juiz não permitirá que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais, salvo quando inseparáveis da narrativa do fato.
[4] AgRg no HC nº 798.996/RS, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 28/8/2023, DJe de 30/8/2023. AREsp n. 1.936.393/RJ, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 25/10/2022, DJe de 8/11/2022.
[5] STJ, Agravo Regimental em Recurso Especial, nº 1.940.381/AL, relator ministro Ribeiro Dantas.
[6] AgRg no REsp nº 1.853.252/MS, relator ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 23/6/2020.
[7] Também nesse sentido também o HC 776.333, rel min Sebastião Reis Jr.; e o HC 839664/CE, rel min Daniela Teixeira.
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