Opinião

Não incidência do ISS sobre obras e serviços de engenharia de infraestrutura sanitária

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  • é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

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14 de março de 2025, 19h37

O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) consiste em tributo de competência municipal, encontrando-se previsto no inciso III do artigo 156 da Constituição [1] e disciplinado pela Lei Complementar nº 116/2003 [2], cujo Anexo Único estabelece em caráter taxativo o rol de serviços tributáveis [3].

Cedae

No que alude aos serviços de saneamento básico, o projeto de lei complementar que resultou na Lei Complementar nº 116/2003 sugeria a incidência do ISS sobre os serviços de “saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário e congêneres” (item 7.14) e de “tratamento e purificação de água” (item 7.15), sendo que estes foram vedados por razões de interesse público [4], compreendendo-se naquela ocasião que “a tributação poderia comprometer o objetivo do Governo em universalizar o acesso a tais serviços básicos”.

A problemática surge em relação às atividades que se caracterizam como atividade-meio ao serviço de saneamento básico [5], sem as quais este não poderia ser executado, a exemplo da realização de obras e serviços de engenharia para infraestrutura sanitária de forma satisfatória, tais como a expansão e manutenção da rede coletora de esgoto, as quais devem ser igualmente abrangidas pela não-incidência do ISS, conforme se explica.

Serviços autônomos

Primeiramente, é necessário entender que, embora as obras e serviços de engenharia estejam especificadas no Anexo da Lei Complementar nº 116/2003, é necessário distinguir entre situações em que esses serviços são autônomos e aquelas em que são intermediários ou preparatórios para outros serviços.

Por serviços autônomos, consideram-se aqueles desvinculados de qualquer outra atividade ou serviço subsequente da dependa destes, a exemplo da construção de pontes e rodovias, as quais são destinadas ao uso geral e não estão relacionadas a qualquer outra atividade ou serviço.

Já os serviços intermediários ou preparatórios são aqueles que se caracterizam como atividade-meio para possibilitar a execução de serviços mais abrangentes, como é o caso das obras de infraestrutura sanitária, as quais não possuem uma utilidade dissociada da atividade-fim para os quais são destinadas.

Nesta última situação, é fácil compreender que, quando voltadas à infraestrutura sanitária, determinadas obras e serviços de engenharia consistirão em uma etapa preparatória ao serviço de saneamento básico, de modo que estes abrangerão aqueles.

Marco Legal do Saneamento Básico

Esta percepção foi incorporada pelo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007), a partir de quando se passou a compreender como “saneamento básico” o “conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais” relacionados ao “abastecimento de água potável”, “esgotamento sanitário”, à “limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos” e à “drenagem e manejo das águas pluviais urbanas” (artigo 3º, inciso I).

Spacca

Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará decidiu corretamente que “a execução de obras de infraestrutura relativa ao serviço de fornecimento de água e esgoto integra, como dito, o conceito de saneamento básico, estando incluída, portanto, no texto objeto do veto presidencial, que exclui tal atividade da incidência de Imposto sobre Serviços” (Processo nº 0043427-85.2015.8.06.0064, Rel. Des. Francisco de Assis Filgueira Mendes, DJe 13/05/2019).

De forma semelhante, o Superior Tribunal de Justiça decidiu em mais de uma ocasião acerca da impossibilidade de incidência do ISS sobre “obras e serviços de saneamento básico”, notadamente considerando que o citado item 7.14 (vetado) engloba os serviços de “esgotamento sanitário e congêneres”, o qual, por sua vez, admite interpretação extensiva (AgInt no AREsp 1.953.446/RN, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 12/04/2022).

A doutrina tributária é uníssona ao estabelecer que “a prestação de serviço tributável pelo ISS é, pois, entre outras coisas, aquela em que o esforço do prestador realiza a prestação-fim, que está no centro da relação contratual” (Marcelo Caron Baptista, em “ISS – Do Texto à Norma”, 2005, p. 692), de sorte que o sujeito ativo do ISS “não se pode decompor um serviço porque previsto, em sua integridade, no respectivo item específico da lista da lei municipal nas várias ações-meio que o integram, para pretender tributá-las separadamente, isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente” (Aires Barreto, citação extraída do voto do ministro Luiz Fux no REsp nº 888.852, DJ de 01/12/2008).

Operações bancárias

Foi nesta esteira de raciocínio que o STJ decidiu em julgamento memorável que “os serviços de datilografia, estenografia, secretaria, expediente, etc., prestados pelos bancos não possuem caráter autônomo, pois inserem-se no elenco das operações bancárias originárias, executadas de forma acessória, no propósito de viabilizar o desempenho das atividades-fim inerentes às instituições financeiras” (RESP n° 69.986/SP, relator ministro Demócrito Reinaldo, DJ de 30.10.1995).

Em temática conexa com a presente, o STJ reafirmou a sua jurisprudência no sentido de que, “independente da cobrança pela prestação de serviço, não incide ISS sobre serviços prestados que caracterizam atividade-meio para atingir atividades-fim, no caso a exploração de telecomunicações” (2ª Turma, AREsp 2726007 / SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJEN 21/02/2025).

O Supremo Tribunal Federal adotou posição semelhante ao considerar “inconstitucional a incidência do ISS a que se refere o subitem 14.05 da Lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003 se o objeto é destinado à industrialização ou à comercialização” (Tema de Repercussão Geral nº 816 [6]), reconhecendo-se que as etapas intermediárias do ciclo de produção não sofrem a incidência deste imposto.

Além de preservar as hipóteses de incidência do ICMS e do IPI, tais decisões reafirmam que a tributação de atividades complexas (compostas por mais de uma atividade) se faz com base na atividade-fim, e não nas atividades-meio, sob pena de desvirtuamento dos respectivos campos de incidência tributária.

Tributação segregada dos serviços-meio

Não menos relevante, é necessário ter em mente que a tributação segregada dos serviços-meio necessários à execução do serviço-fim do saneamento básico implicaria em distorcer o veto presidencial aos itens 7.14 e 7.15 do Anexo da Lei Complementar nº 116/2003, cuja razão ainda é contemporânea, além de estar alinhada com a meta de universalização estabelecida no Marco Legal do Saneamento Básico [7], e que faz parte do compromisso internacional assumido pelo Brasil ao firmar a Agenda ONU 2030 [8].

Com efeito, a tributação dos serviços-meio não apenas eleva os custos dos investimentos necessários à expansão e melhoria da rede de saneamento básico, como também repercute diretamente na tarifa do serviço em razão da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, comprometendo a sua modicidade [9].

Ademais, o aumento da tributação é fator de influência negativa na atração de investimentos, uma vez que o aumento das despesas implica na redução do lucro da operação, o que desestimula investidores que buscam a rentabilidade e, no caso em debate, põe em risco o cumprimento das metas de universalização dos serviços de saneamento básico.

Ao que se confere, além dos aspectos jurídicos-tributários pelos quais se conclui pela não incidência do ISS sobre obras e serviços de engenharia de infraestrutura sanitária, é imperativo que os poderes públicos envolvidos considerem ainda a relevância destes serviços para alcançar as metas de universalização estabelecidos pelo Marco Legal do Saneamento Básico e pela Agenda ONU 2030 como meios para promover o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida da população.

 


[1] Com o advento da Reforma Tributária (Emenda Constitucional nº 132/2023), o ISS será substituído pelo Imposto sobre Bens e Serviços em 2033, vigorando até lá um regime de transição no qual ambos os tributos serão cobrados simultaneamente.

[2] A Lei Complementar nº 116/2003 se propõe a disciplinar o ISS em substituição ao Decreto-Lei 406/1968, o qual, todavia, encontra-se parcialmente em vigor.

[3] Tema 296/STF – É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva.

[4] Mesmo sendo possível o “veto parcial” a uma norma, este necessariamente “abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea” (CF, Art. 66, § 2º), de modo que, por razões técnicas, o item 7 do Anexo à Lei Complementar nº 116/2003 manteve a menção genérica à “Serviços relativos a … meio ambiente, saneamento e congêneres”.

[5] A expressão “saneamento ambiental”, contida no Projeto de Lei Complementar que resultou na Lei Complementar nº 116/2003, também era empregada no Projeto de Lei nº 1.144/2003 (“Institui a Política Nacional de Saneamento Ambiental, define diretrizes para a prestação dos serviços públicos de água e esgoto”), que o definia como “o conjunto de ações socioeconômicas que têm por objetivo alcançar níveis crescentes de salubridade ambiental, por meio do abastecimento de água potável, coleta e disposição sanitária de resíduos líquidos, sólidos e gasosos, promoção de disciplina sanitária do uso e ocupação do solo, drenagem urbana e controle de vetores e reservatórios de doenças transmissíveis, com a finalidade de proteger e melhorar as condições de vida, tanto nos centros urbanos quanto nas comunidades rurais e propriedades rurais mais carentes”. Contudo, o referido Projeto de Lei foi considerado prejudicado e arquivado em razão da aprovação da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (Marco Legal do Saneamento Básico). Deste modo, é possível afirmar que “saneamento ambiental” e “saneamento sanitário” são expressões equivalentes.

[6] Neste Tema, o STF definiu ainda que “2. As multas moratórias instituídas pela União, Estados, Distrito Federal e municípios devem observar o teto de 20% do débito tributário”.

[7] A Lei nº 14.026/2020 alterou o Marco Legal do Saneamento Básico para estabelecer que, até 31 de dezembro de 2033, 99% da população tenha acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgotos.

[8] “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Objetivo 6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos. 6.1 Até 2030, alcançar o acesso universal e equitativo a água potável e segura para todos. 6.2 Até 2030, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade. 6.3 Até 2030, melhorar a qualidade da água, reduzindo a poluição, eliminando despejo e minimizando a liberação de produtos químicos e materiais perigosos, reduzindo à metade a proporção de águas residuais não tratadas e aumentando substancialmente a reciclagem e reutilização segura globalmente […]”.

[9] O princípio da modicidade tarifária é um princípio setorial inerente ao microssistema jurídico das concessões públicas, o qual visa garantir que as tarifas dos serviços públicos sejam fixadas em níveis módicos, de modo a permitir o acesso universal a estes, especialmente daqueles considerados essenciais. Todavia, as tarifas devem ser suficientes para cobrir todos os custos operacionais, de manutenção e investimentos necessários para a prestação de tais serviços, além de proporcionar uma remuneração justa ao seu prestador, de modo que se assegure a sustentabilidade financeira dos contratos de concessão com vistas a garantir a sua continuidade. Neste caminho, o Marco Legal do Saneamento Básico estabelece que a conciliação entre o equilíbrio econômico-financeiro e a modicidade tarifária constituem um dos objetivos da Regulação (Art. 22, inc. IV).

Autores

  • é advogado, atua em questões relacionadas ao Direito Público, com ênfase em Direito Tributário, Crimes Tributários, Contratações Públicas, Improbidade Administrativas, Direito Regulatório e Litígios.

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